Comandos julgados por saberem que a “sua conduta podia provocar lesões”
Juíza de instrução criminal decide levar os 19 militares acusados a julgamento. Em causa estão as mortes de Hugo Abreu e Dylan da Silva durante o Curso 127.
A juíza do Tribunal de Instrução Criminal Isabel Sesifredo rejeitou um a um, nesta segunda-feira, os argumentos da defesa dos 19 militares do Regimento dos Comandos, acusados de crimes de abuso de autoridade por ofensa à integridade física: de que “os crimes não são de natureza militar, por não porem em causa os interesses de defesa nacional”, de que a acusação é por esse e outros motivos “nula”, ou mesmo “ilegal” devido à ordem de detenção de sete Comandos, pela procuradora do Ministério Público (MP), titular do processo, Cândida Vilar, logo no início da investigação.
Pelo contrário, como se lê no despacho de pronúncia, a juíza partilhou o entendimento da magistrada do MP de que “todos os arguidos sabiam que as suas condutas podiam provocar as lesões que os instruendos sofreram” e “não podiam deixar de as prever”. Ao fazê-lo, marcou posição entre o que acusação considera serem actos praticados com dolo e o que a defesa atribui a factores difíceis de prever ou de evitar. E decidiu que todos vão a julgamento.
Foi numa declaração breve, antes de entregar o despacho de pronúncia em suporte informático aos advogados das famílias das vítimas, que a juíza deu a conhecer a sua posição de não validar tentativas de desacreditar a investigação da procuradora Cândida Vilar, coadjuvada pela Polícia Judiciária Militar – exaustivamente repetidas por advogados de 11 arguidos, que pediram a abertura da instrução, e cujo debate instrutório se prolongou por vários dias no passado mês de Fevereiro.
Nesta segunda-feira, a magistrada abreviou um momento que juntou na mesma sala 17 dos 19 arguidos e seus advogados, de um lado, e a procuradora Cândida Vilar, advogados das famílias, os pais de Hugo Abreu e o pai de Dylan da Silva, do outro.
Para Isabel Sesifredo, não só “os indícios" que envolvem os Comandos acusados “são fortes”, como “não há nenhuma razão para não pronunciar todos” estes militares envolvidos por motivos diferentes no processo-crime em que se investigaram as circunstâncias das mortes, em 2016, de Hugo Abreu e Dylan da Silva, ambos de 20 anos. Na lista dos militares acusados, quase todos pertencem ao Quadro Permanente do Exército e há oito oficiais. Sete dos acusados incorrem em penas de prisão mais graves (se forem condenados) porque a eles é imputado o mesmo crime dos restantes mas como tendo resultado nas mortes.
Entre esses sete, estão o director do curso, tenente-coronel Mário Maia, o comandante de formação (responsável por todos os instrutores) capitão Rui Passos Monteiro, o capitão-médico do curso Miguel Onofre Domingues, o enfermeiro, sargento João Coelho, o comandante e o encarregado da instrução do grupo de graduados – no qual estava Hugo Abreu –, o tenente Hugo Pereira, sargento Ricardo Rodrigues e o comandante do grupo em que estava Dylan da Silva, o tenente Miguel Almeida.
A juíza afastou a argumentação da defesa de que os factos deveriam ser qualificados como crimes de ofensa à integridade física do Código Penal – o que tornaria as penas susceptíveis de serem aplicadas, em caso de condenação, substancialmente mais leves do que as previstas no Código de Justiça Militar.
"Abusaram da sua autoridade"
“Os arguidos abusaram da sua autoridade enquanto militares provocando graves lesões físicas e neurológicas aos instruendos, ferimentos graves e a morte a dois dos instruendos, violando gravemente os seus deveres funcionais e a disciplina militar e colocando em causa a participação dos instruendos (Comandos) em missões internacionais conferidas ao Estado Português que se comprometeu com a NATO e a ONU”, e assim comprometendo “os interesses militares de defesa nacional”, escreve a juíza no despacho de pronúncia ao qual o PÚBLICO teve acesso.
“As provas” de um curso de Comandos "visam a resistência física e psicológica dos instruendos”, reconhece a juíza no documento. “Porém, existem fortes indícios de que no dia da Prova Zero os arguidos tiveram condutas contrárias aos deveres do militar e disciplina militar proibidas pela lei penal”, continua.
E é aqui que Isabel Sesifredo aponta para a previsibilidade dos acontecimentos com o conhecimento de causa dos instrutores. “Todos os arguidos sabiam que as suas condutas podiam provocar as lesões que os instruendos sofreram (...) uma vez que sabiam a importância que a água tinha para os instruendos que faziam exercício sob temperaturas muito elevadas.”
Atribui-lhes ainda outras responsabilidades: “Os arguidos agrediram física e psicologicamente os instruendos (conforme os seus depoimentos), (...) sem se preocuparem com a temperatura corporal dos instruendos e negando-lhes água.”
Com a farda do filho
Antes da sessão, a mãe de Hugo Abreu não se conteve, e interpelou, irada e comovida, os militares que aguardavam à entrada para a sala onde depois foi proferida a decisão.
Ângela Abreu, que entrou ao lado do marido, vestia a farda do filho, a mesma com que ele porventura terá morrido na enfermaria, montada numa tenda sem refrigeração no Campo de Tiro de Alcochete para os três dias da Prova Zero.
O sonho maior de Hugo Abreu era “construir carreira no Exército Português”, como se lê no pedido de indemnização civil apresentada pelo advogado Ricardo Sá Fernandes, em nome dos pais. Era um jovem saudável e dedicado, como Dylan da Silva, que viria a morrer seis dias mais tarde, no Hospital Curry Cabral, em que dera entrada já com muito pouca esperança de vida, mas onde oficialmente ainda aguardava um transplante de fígado.
Ambos sofreram um golpe de calor que lhes viria a causar desidratação e a provocar a sucessiva paragem dos órgãos. A acusação alega que o imediato transporte para o hospital teria evitado as mortes e que tal não foi decidido, em parte, para ocultar o que ali se passara.
Ricardo Sá Fernandes entende que não havendo “responsabilidades colectivas”, esta decisão “não significa que todas estas pessoas venham a ser condenadas”.
Miguel Santos Pereira, advogado da mãe de Dylan da Silva, considera, por sua vez, que a acusação “saiu reforçada da instrução” ao contrário daquilo que se pretende com a abertura desta fase que é a de “fragilizar a acusação”. E referiu: “A gravidade não é igual para todos eles, mas há indícios suficientes para todos irem a julgamento”.