Dia de nervos à espera da prisão de Lula
O ex-Presidente começou por resistir à ordem de prisão de Sérgio Moro. Refugiado no Sindicato dos Metalúrgicos, onde começou a carreira política, rodeado de apoiantes, acabou por ceder e começou a negociar entregar-se — pediu mais um dia para ir à missa em memória da mulher e recorreu outra vez ao Supremo Federal.
“Não haverá rendição. Se quiserem Lula, terão de o vir aqui buscar”. Foi alimentado por este mote, ouvido à porta do Sindicato dos Metalúrgicos, em São Bernardo do Campo, no estado de São Paulo, que uma manifestação de solidariedade se transformou num acto de resistência colectiva simbólica à ordem de prisão do antigo Presidente do Brasil, condenado a 12 anos e meio de prisão pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro.
“Pensam que o Lula é um só, mas ele está em cada um de nós”, ouviu-se e repetiu-se junto do edifício, transformado numa fortaleza, onde o próprio Luiz Inácio Lula da Silva passou todo o dia de sexta-feira.
O Sindicato dos Metalúrgicos transformou-se num bunker para receber Lula. Apenas responsáveis sindicais e petistas de topo tinham autorização para aceder à sala do segundo andar do edifício onde o ex-Presidente e os seus familiares se encontravam. Para lá chegar, era necessário ultrapassar pelo menos dois controlos de segurança.
Depois de uma longa espera para se saber se Lula iria ou não entregar-se em Curitiba, conforme decretado pelo juiz Sérgio Moro na quinta-feira, a sua estratégia foi finalmente revelada, numa altura em que o prazo definido pela justiça – 17 horas locais (21h em Portugal Continental) – já tinha sido ultrapassado: o antigo chefe de Estado brasileiro pretendia manter-se no sindicato e aguardar que a Polícia Federal o fosse prender.
Duas horas depois do prazo esgotado, surgiu finalmente uma informação mais concreta: Lula queria passar ali mais uma noite e assistir, neste sábado, à missa em memória da mulher, Marisa Letícia, que morreu e faria 68 anos neste dia. Segundo o jornal Folha de São Paulo, já foi selado um acordo para Lula se entregar neste sábado, faltando saber como se vai processar a detenção em detalhe. Finalmente, a defesa do ex-Presidente recorreu ao Supremo Tribunal Federal para tentar evitar a prisão com o argumento de que há recursos pendentes.
Apanhados de surpresa
Lula viu seis dos 11 juízes do Supremo Tribunal Federal chumbarem na quarta-feira (madrugada de quinta em Portugal) o habeas corpus solicitado pela sua defesa, abrindo dessa forma caminho para a sua prisão pelo envolvimento num escândalo de corrupção que teve como pano de fundo o famoso apartamento de luxo em Guarujá, no estado de São Paulo, cujas obras de renovação foram pagas pela construtora OAS.
A detenção de Lula estava agendada para a próxima terça-feira, mas o juiz Sérgio Moro emitiu uma ordem de prisão na quinta-feira, apanhando tudo e todos de surpresa — inclusivamente a Polícia Federal. As razões desta pressa na prisão do antigo Presidente são apontadas pelo El País Brasil como resultante de uma necessidade de “estancar a sensação de omnipotência” de Lula. Aquele diário revela ter tido acesso a um documento que demonstra que partiu do procurador Mauricio Gotardo Gerum, do Ministério Público Federal de Porto Alegre (onde foi julgado), a iniciativa de prender Lula o mais rapidamente possível.
“Não haverá resistência, mas ele não irá para o matadouro de cabeça baixa, por livre e espontânea vontade”, dizia à Folha de São Paulo José Roberto Batochio, um dos elementos da equipa de defesa de Lula. “Não é rebelião. É um direito da pessoa preservar a sua liberdade e não contribuir para qualquer acto que possa suprimi-la”, esclarecia ainda.
Como comprovam os gritos dos manifestantes em São Bernardo, as palavras de Batochio dificilmente encontrariam apoio junto dos milhares de simpatizantes e apoiantes de Lula da Silva reunidos na sede sindical. É que a intenção formulada em primeiro lugar pela Articulação de Esquerda – uma facção dentro do Partido dos Trabalhadores (PT) – de formar uma barreira humana à volta do Sindicato dos Metalúrgicos, para impedir uma intervenção da PF, foi por eles acolhida com afinco.
E ainda que a cúpula do PT tenha feito por insistir na necessidade de levar a cabo uma resistência pacífica, poucos foram os que não entenderam que era no mar de gente acampado em São Bernardo que residia a esperança de Lula de evitar a prisão no imediato.
Apesar de preparada para prender Lula – houve relatos de polícia de choque a postos para entrar no edifício – a PF tinha consciência de que o risco de provocar uma reacção violenta nos simpatizantes de Lula era elevado e admitia, por isso mesmo, reagendar a detenção.
O presidente da Federação Nacional dos Policiais Federais, Luiz Antonio Boudens, disse que as autoridades podiam optar por prender Lula da Silva quando este regressasse a casa. E, assim sendo, poderia ser preso entre as seis da manhã e as 20h deste sábado — a Constituição proíbe a polícia de entrar em casa dos cidadãos durante a noite.
Uma decisão que pode revelar-se sensata de um ponto de vista securitário e que oferece à equipa do ex-Presidente horas para negociar com as autoridades os termos da sua entrega — os advogados de Lula pediram nas negociações que a prisão ocorra apenas na segunda-feira, apresentando os tais argumentos de falta de segurança para o fazer mais cedo.
A conduta violenta pode trazer consequências legais para quem a praticar. Segundo a legislação brasileira, o uso de violência “com o fim de favorecer interesse próprio ou alheio”, contra as autoridades chamadas a intervir, pode ser punível com um a quatro anos de prisão. “Vamos imaginar que a polícia chega e tem um cordão humano clamando para que ela se vá embora. As pessoas que eventualmente usarem de violência ou grave ameaça para favorecer o ex-Presidente praticam o crime disposto no artigo 344 do Código Penal”, explicou ao Estado de São Paulo o jurista Fernando Castelo Branco.
Manifestações ficam aquém
As manifestações pró-Lula não se ficaram apenas por São Bernardo. Em dezenas de cidades brasileiras viram-se cartazes e ouviram-se gritos e cânticos de protesto contra a prisão do homem que lidera as intenções de voto dos brasileiros para as eleições de Outubro.
O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), apoiante do ex-Presidente, organizou um bloqueio de dezenas de estradas em pelo menos 11 estados do Brasil. Num desses bloqueios, em Alhandra, uma manifestante foi baleada. Segundo a Polícia Militar de Paraíba, Lindinalva Pereira de Lima Filha, de 35 anos, foi atingida com um tiro na perna esquerda, disparado de um carro que furou o bloqueio, tendo sido transportada para o Hospital de Trauma de João Pessoa.
Outros militantes do MST atacaram com bombas de tinta o edifício onde a juíza presidente do Supremo Tribunal Federal, Cármen Lúcia, tem um apartamento, em Belo Horizonte.
A mobilização dos grupos pró-Lula não foi tão expressiva como o ex-Presidente e o PT precisariam. E a dos anti-Lula também foi menor que o esperado. Um grupo de manifestantes juntou-se perto da superintendência da PF no Paraná, mas as comemorações da prisão de Lula em São Paulo, convocadas pelo Movimento Brasil Livre (MBL), acabaram por ser canceladas.
O grupo justificou a decisão com o risco de violência que poderá advir das manifestações e aponta o dedo ao Partido dos Trabalhadores. “Pedimos que nossos apoiantes evitem a região, devido à mobilização local de grupos e entidades sindicais ligadas ao PT que devem provocar confrontos violentos a fim de desrespeitar a lei e a ordem democrática”, alertou o MBL.
Advogado desorientado
A tensão nas ruas do Brasil, nas redes sociais e nos textos e imagens nos media brasileiros foi palpável durante todo o dia desta sexta-feira e teve momentos de desorientação num país em suspense para conhecer o desfecho de um longo episódio que poderia culminar na prisão um ex-Presidente. Exemplo disso foi o falso alarme, a meio da manhã, de que o Superior Tribunal de Justiça havia negado o habeas corpus apresentado horas antes pela defesa de Lula.
Um dos seus advogados, Sepúlveda Pertence, disse à Globonews que o ministro Félix Fischer, do STJ, acabara de negar o pedido, mas foi obrigado a rectificar a informação e admitir ter feito confusão. O que o tribunal rejeitara fora um outro habeas corpus solicitado por terceiros. Apenas mais tarde foi confirmada essa rejeição, justificada pelo STJ com a falta de provas suficientes para contestar a ilegalidade da ordem de prisão.