Coisas da China (que Trump talvez ignore)
Trump iniciou uma guerra tarifária contra as importações chinesas. Mas não sei se já se deu conta de quão parecida com os EUA se tornou a China.
Para entender onde está a China, e para onde vai, podemos ler dezenas de dissertações. Ou podemos gastar duas horas a ver Lobo Guerreiro 2, um filme do ano passado que é o maior sucesso de bilheteira de sempre na China (e segundo maior sucesso de bilheteira num só país, a curta distância de Guerra das Estrelas VII: o Despertar da Força nos EUA).
Porque não? Há muito que a cultura de massas é tomada como metáfora da condição norte-americana e da sua hegemonia global. Para potências como a China sobram os debates académicos. Mas o que os chineses vêem, aos milhões, é Lobo Guerreiro 2, filme passado em África, onde Leng Feng, agente das forças especiais chinesas, tenta salvar uma fábrica chinesa e os seus trabalhadores africanos de uma situação tramada — mistura de guerra civil com epidemia de uma doença rara e ultra-mortífera ao mesmo tempo — em apenas 18 horas.
O sucesso de bilheteira chinês é, para todos os efeitos, igual aos filmes equivalentes norte-americanos. Tem as mesmas reviravoltas na intriga, os mesmos efeitos especiais e o mesmo heroísmo paternalista. A grande diferença é que em vez de serem os americanos a salvar o mundo são os chineses a salvar o mundo. Até a génese do filme é igualmente capitalista: ao contrário de outros filmes patrióticos chineses, produzidos e distribuídos pelo Estado, Lobo Guerreiro 2 é fruto da iniciativa privada de Wu Jing, que acumula numa só pessoa o papel de produtor, realizador, argumentista e ator principal. O público adorou: a mensagem é a mesma que se encontra nos filmes estatais, mas o embrulho é mais empolgante.
Ver Lobo Guerreiro 2 é como estar do outro lado do espelho em relação à imagem que os ocidentais têm do papel da China em África. No filme, os chineses não estão em África para explorar pessoas ou para extrair recursos, mas para ajudar os africanos a erguerem-se após o colonialismo ocidental. O pai do herói morreu em África e por África — e corta!, decide o realizador, para a cena em que o herói, em frente ao túmulo do pai, jura ser fiel à missão paterna de defender os africanos. Há uma história de amor em que o protagonista irrita-primeiro-e-seduz-depois uma bela médica exótica (ou seja, ocidental: a Dra. Rachel Smith). Lá se admite que haja um vilão chinês, mas só um bocadinho, na pessoa do dono da fábrica que diz que só há espaço para retirar dali os chineses e não os africanos. Após um brevíssimo momento de incerteza, o herói Leng Feng proclama que jamais seria capaz de se ir embora sem salvar toda a gente, chineses e africanos juntos. A cena que se segue, na qual africanos gratos celebram efusivamente a decisão do seu salvador chinês, é de um tal simplismo racista que não passaria hoje no teste do politicamente correto ocidental — mas não estaria deslocada num filme do Rambo de há 30 anos.
Ao largo, numa corveta da marinha de guerra chinesa, militares a quem é atribuído um coração mais mole do que o dos seus homólogos ficcionais americanos esperam ansiosos que Leng Feng consiga levar a sua missão até ao fim. E aqui entra o único pormenor relevante que não apareceria num filme americano: é que quando finalmente os chineses e os africanos da fábrica são salvos
(raios, contei-vos o fim do filme! — desculpem estragar uma surpresa tão inesperada)
o helicóptero que os transporta em segurança pertence, não ao Exército de Libertação Popular chinês, mas... à Organização das Nações Unidas. Por esta é que não estavam à espera, hein?
A mensagem da China, para si mesma e para quem estiver disposto a ouvir, é clara: ao contrário dos americanos, os chineses serão uma super-potência sob — e não sobre — a égide das Nações Unidas. Isto é propaganda, claro, mas é importante saber para onde vai a propaganda. É que, fora das telas do cinema, isto é o mesmo que martelam a televisão oficial e o Presidente Xi Jinping quando lembram, por exemplo, que a China é o maior fornecedor de capacetes azuis à ONU.
Trump iniciou ontem uma guerra tarifária contra as importações chinesas. Mas não sei se já se deu conta de quão parecida com os EUA se tornou a China. Trata-se do único outro país no mundo que assume claramente a vontade de vir a ser uma super-potência global. O espírito errático de Trump só convenceu ainda mais a liderança chinesa de que o seu propósito de atingir o estatuto de super-potência é necessário, não por interesse da China, mas porque a China está disposta a sacrificar-se pelo mundo. Ou seja: o discurso é tão simplista e ridículo como quando eram os americanos a dizê-lo. Mas é aquilo em que os chineses nos estão a dizer que acreditam. Nos discursos políticos e — um dia destes — num cinema perto de si.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico