O teatro ganha uma batalha à política
João Pedro Vaz convoca Eduardo de Filippo para falar sobre “a luta permanente” em torno do valor da cultura. O Teatro Oficina regressa ao palco este fim-de-semana com A Arte da Comédia.
Estava tudo a correr normalmente. Um director de teatro tenta convencer um político do valor da arte que faz, enquanto adia falar do tema que realmente o trouxe ali: o pedido de um apoio público para evitar a falência da companhia. Até que, através de um desses dispositivos que só o teatro permite, o jogo vira-se a seu favor e subitamente é ele que tem nas mãos o instrumento com que pode condicionar a vida do político.
“Há uma luta permanente sobre o valor da cultura”, considera o director do Teatro Oficina, João Pedro Vaz. Está no texto e está também fora dele, e era sobre isso que lhe interessava falar. Será o teatro a ganhar. Pelo menos este fim-de-semana, quando a companhia de Guimarães subir ao palco do grande auditório do Centro Cultural Vila Flor (sexta-feira e sábado, às 21h30) para mostrar a sua versão de A Arte da Comédia.
O encenador foi a esse texto de 1964 do dramaturgo e actor italiano Eduardo de Filippo (1900-1985) – que chegou ele próprio a dirigir uma companhia – buscar a matéria para esta reflexão sobre a “luta” entre o teatro e a política. Estava na peça esse dispositivo fundador da comédia de enganos a que assistimos: às mãos do director da companhia chega a lista das pessoas que, naquele dia, serão recebidas pelo presidente da câmara no seu gabinete. No meio da discussão, o artista sugere ao político que os actores da sua trupe seriam capazes de passar pelo seu gabinete e interpretar os papéis daquelas pessoas sem que ele desse pela diferença. A partir de então, o presidente da câmara nunca saberá bem se quem tem diante de si é realmente o médico municipal, um padre ou uma professora primária.
“Isso vai desgraçando o dia do presidente da câmara”, antecipa João Pedro Vaz. E nesse processo, a peça, que parece convencional, começa a adquirir um certo tom grotesco e artificial. O próprio autarca vai perder o controlo da situação, como se se fosse diminuindo cada vez mais na sua função.
Na “luta” de que o Teatro Oficina quer falar, este espectáculo permite o triunfo do teatro sobre a política. No sentido em que a confusão que se instala se baseia num pressuposto da arte. A própria ideia de crise do teatro – que é o tema central do grande diálogo entre o presidente da câmara e o director da companhia – é fruto de uma “grande confusão” colocada em cima da mesa por alguém que pretende aproveitar-se dessa ideia, defende Vaz.
"Ir a jogo"
João Pedro Vaz foi nomeado director artístico do Teatro Oficina em Setembro de 2016. Passou o primeiro ano em funções a construir uma relação com o território, aproximando-se dos grupos de teatro amador ou criando o colectivo Gangue de Guimarães, que integra artistas locais actualmente a trabalhar em vários pontos do país. A primeira fase de trabalho culminou com a estreia de Auto das Máscaras, no final do ano passado, no Centro Internacional de Artes José de Guimarães.
Na sua cabeça sempre esteve o objectivo de voltar para o palco, como agora acontece. E de fazer do segundo ano como director da companhia municipal vimaranense um tempo “de investigação sobre a arte do teatro”, a partir de textos que coloquem em jogo os dispositivos e as mecânicas desta prática artística.
A Arte da Comédia não estava, porém, ainda no seu pensamento. Foi Luis Miguel Cintra, que na segunda metade do ano passado foi presença regular em Guimarães, onde esteve a preparar Um D. João Português, quem lhe sugeriu o texto do dramaturgo italiano.
Foi também Cintra quem o convenceu a “ir a jogo”. E por isso, além de encenador, João Pedro Vaz é também actor neste espectáculo, interpretando o papel do director da companhia. Esse é o primeiro indicador de que o jogo de espelhos em que se alicerça a peça de Eduardo de Filippo alastra a esta encenação. “Se de facto o director da companhia é o director da companhia, como não acreditar que o médico é o médico e o padre é o padre?”, pergunta o encenador.
O texto também propõe a ideia de “mostrar a ossada do teatro”, algo que é reforçado por algumas opções de montagem. Por exemplo, a directora de cena está várias vezes em cena; o palco, que começa vazio, é montado à frente do espectador e novamente retirado do seu lugar, no epílogo. Há uma denúncia do próprio artifício do teatro nas opções do encenador, que acentuam o questionamento sobre os dispositivos do teatro e, o que está muito no ar do tempo, sobre o lugar da arte.