Protecção Civil pediu meios que o Governo não deu ou deu tarde
Protecção Civil pediu vários reforços de meios aéreos e humanos antes dos incêndios de 15 de Outubro e nem todos foram autorizados "a nível superior". Relatório dos peritos conclui que as diferentes instituições não puseram em marcha medidas que pudessem "minimizar" o impacto de fogos.
A Autoridade Nacional de Protecção Civil (ANPC) fez vários pedidos de reforço de meios humanos e aéreos ao longo do Verão do ano passado e nem todos foram autorizados pelo Governo antes dos incêndios de 15 de Outubro.
Aos técnicos independentes que analisaram os incêndios de Outubro, o segundo comandante nacional, Albino Tavares, que na altura estava como interino enquanto comandante nacional, disse que "atendendo às condições meteorológicas que se previam" a ANPC fez um conjunto de pedidos de reforço de meios e que "nem todos obtiveram, por diversas razões, plena autorização a nível superior". Do relato feito pelo responsável no comando, foram feitos desde Março sete pedidos ao Governo e a maior parte obteve resposta negativa ou apenas positiva em parte. Os últimos dois pedidos datam de 27 de Setembro e de 9 de Outubro. Em Setembro (fim da fase Charlie, era pedido um reforço de 105 equipas para a fase Delta (1 a 15 de Outubro) e foram "autorizadas 50".
Já cinco dias antes dos incêndios, o então comandante nacional em funções pedia para o período de 10 a 31 de Outubro o "reforço de 164 equipas, o acréscimo de 70 horas de voo para aviões anfíbios médios e o prolongamento de locação de oito helicópteros médios até 31 de Outubro". Este é um pedido dado como aprovado, mas não na sua totalidade, apurou o PÚBLICO. Foram aprovadas as equipas terrestres, mas não os meios aéreos. Aliás, "não aprovada a locação de quatro aviões anfíbios médios de 13 a 31 de Outubro", lê-se no relatório entregue ontem a Ferro Rodrigues. Acrescenta o documento que o reforço dos meios aéreos, com a locação de 15 helicópteros ligeiros, foi já oficializado "depois do período em análise", com os contratos a terem início a 17 de Outubro.
Apesar de ter havido a aprovação dos meios humanos cinco dias antes, houve dificuldade em mobilizar todos os homens para esses dias de Outubro, uma vez que como tinha sido recusado o pedido anterior, os bombeiros na sua maioria acabaram por regressar aos seus compromissos profissionais.
Esta é apenas uma das falhas na prevenção apontada pelo relatório dos 12 técnicos independentes. Era fim-de-semana, havia previsão de chuva e era altura de queimar os restos agrícolas. Se este foi o pensamento de muitos cidadãos que acabaram com isso por disparar o número de ignições naqueles dias e que provocaram incêndios incontroláveis quase desde início, a relativização do perigo não foi diferente nas instituições do Estado. Deveria ter sido "estabelecido o Estado de Calamidade Preventiva" tal como foi declarado em Agosto, o que poderia ter reduzido os impactos dos fogos, defendem os técnicos.
Desmobilização de meios
"Era possível encontrar soluções prévias de programação e de previsão que pudessem ter amenizado o que foi a expansão do incêndio", disse aos jornalistas João Guerreiro, presidente da Comissão Técnica Independente (CTI). No relatório, os peritos são ainda mais contundentes. "Perante as condições meteorológicas de Outubro poderia (deveria) ter-se antecipado o aumento do número de ignições e, por isso, poderia ter-se actuado, com medidas robustas de pré- posicionamento e de pré-supressão, de forma a prevenir o que era esperado".
Num discurso duro para as autoridades, os técnicos apontam como erro a não-antecipação deste cenário e a desmobilização de meios. "Um número significativo de forças nacionais estava já descontinuado, designadamente os meios aéreos", lê-se no relatório. No dia 15 de Outubro, tal como noticiado pelo PÚBLICO na altura, estavam ao serviço apenas 18 das 47 aeronaves alugadas a privados, uma vez que os contratos de locação tinham terminado no dia 1 e no dia 15 de Outubro.
Além dos meios aéreos, houve também uma redução significativa dos meios humanos e uma consequente desorientação da alocação dos poucos em funções. A Protecção Civil estava na fase Delta (a fase do dispositivo em que a força de combate é substancialmente reduzida) e como tal a resposta foi mais lenta, menos musculada e com menos critério. Houve uma "dificuldade de mobilizar forças suficientes perante o número de ignições que se sucediam em áreas de grande dimensão e impossibilidade de dar uma resposta a todos os incêndios por parte dos corpos de bombeiros. Esta última questão resulta de, neste período de Outubro, se estar já na fase Delta e de haver uma capacidade de mobilização limitada. Recorde-se que, entre outros factores, estava-se num fim-de-semana com condições meteorológicas extremas", dizem os técnicos.
Além da dificuldade de mobilizar recursos, os que estavam disponíveis foram distribuídos com desorientação: "A quantidade enorme de solicitações impediu que a alocação de meios se fizesse de acordo com as normas operacionais estabelecidas". No entanto, os peritos dizem que "não deixa de ser estranho" o pré-posicionamento de meios decidido, nomeadamente por se ter revelado "que ficou muito aquém das necessidades. De acordo com vários comandantes distritais, esta era uma impossibilidade uma vez que já se estava numa fase de "descontinuidade do dispositivo" e "depois de um ano que até ali já tinha sido muito difícil" as condições para pré-posicionar eram "marginais". Os mesmos comandantes lembram ainda que houve uma espécie de "vulgarização da determinação dos estados de alerta". Como houve muitos dias de risco, acabou por haver alguma "desvalorização".
Por isso, defendem os peritos, "justificar-se-ia uma chamada de atenção pública, com outros contornos, eventualmente semelhantes à situação vivida em Agosto último, em que foi estabelecido o Estado de Calamidade Preventiva", defendem.
Desvalorização dos alertas do IPMA
Um dos pontos mais focados no relatório dos técnicos prende-se com a falta de integração do conhecimento nos mecanismos de protecção civil, nomeadamente com o tratamento desadequado dos alertas do Instituto Português do Mar e da Atmosfera. Ao ser divulgado um alerta vermelho, mas com a indicação de chuva no dia seguinte, acabou por ser um convite às tradicionais queimadas. "Registou-se uma difusão apropriada da informação (muito embora com a indicação de previsão de precipitação para o dia 16 de Outubro) com origem na ANPC. Admite-se que os diversos escalões por onde flui a informação foram amenizando a gravidade da situação, pelo que o estado de alerta terá chegado às populações locais já muito suavizada. Porventura, com uma previsão meteorológica severa, como tinham indicado os briefings do IPMA, justificar-se-ia uma chamada de atenção pública, com outros contornos".
Um fenómeno meteorológico extremo
Ambos os incêndios de 2017 tiveram na sua base fenómenos meteorológicos extremos. Se em Pedrógão houve o fenómeno de downburst que tornou o incêndio incontrolável num curto espaço de tempo e num determinado local, em Outubro, os ventos quentes e fortes do furacão Ophelia tiveram como consequência tornar pequenas ignições em fogos incontroláveis quase logo desde o seu início e numa larga extensão de território. O que aconteceu naqueles dias foi tão raro que os técnicos dizem que foi "o maior fenómeno piro-convectivo registado na Europa até ao momento e o maior do mundo em 2017".
Perante a violência dos incêndios e a falta de meios, restava, dizem os técnicos, acudir às populações. Em muitas situações "não havia possibilidade alguma de combater o incêndio", as medidas de prevenção e combate teriam servido apenas para "minimizar" os efeitos. Como tal, "o esforço concentrou-se naturalmente na defesa de pessoas e bens. E nem sempre com êxito". "O panorama vivido nestes dias, sobretudo no dia 15 de Outubro, traduziu-se numa situação de dramático abandono, com escassez de meios, ficando as populações entregues a si próprias", resumem.