Cambridge Analytica, a empresa que manipula a democracia à escala global
Uma empresa especializou-se em usar dados recolhidos nas redes sociais para manipular as emoções dos utilizadores e conquistar votos para quem paga mais. Uma investigação do britânico Channel 4 começa a desmontar a teia montada pela Cambridge Analytica.
Um canal de televisão britânico, o Channel 4, passou os últimos quatro meses a investigar a empresa que dá a cara pelo maior escândalo da manipulação eleitoral da história: a Cambridge Analytica. É um trabalho dividido em cinco partes, que pode ser visto na homepage do canal e também no YouTube. Até ontem foram divulgadas as três primeiras partes, que lançam uma enorme suspeita sobre a empresa que trabalhou em muitas eleições em vários pontos do globo.
A primeira parte mostra Chris Wiley, o director de investigação da empresa, a assumir estar arrependido do papel numa empresa com uma actividade tão decisiva na destruição do sistema democrático. Enquanto descreve o processo de captação da informação, explica a forma como tudo foi feito numa escala maciça nas eleições americanas. Foram mais de 50 milhões de utilizadores cujos dados foram indevidamente recolhidos e cujas preferências foram depois usadas para manipulação de informação nas eleições americanas. O estratego: Steve Bannon, que trabalhava na candidatura de Donald Trump e à qual se juntou a empresa Cambridge Analytica.
O segundo vídeo é arrasador. Com recurso a câmaras escondidas, uma equipa de repórteres fez de conta que eram membros de um partido político no Sri Lanka e tentaram contratar a empresa. O que se vê, em vários contactos com os executivos da empresa, é assustador: não só assumem a responsabilidade por vitórias eleitorais em dezenas de países um pouco por todo o mundo, como contam as armas que usam na intervenção nos processos eleitorais. “Estivemos no México, estivemos na Malásia, estamos a chegar ao Brasil, à Austrália, à China, etc.” E admitem que traficam informação que mexe com os dois elementos fundamentais da acção humana, “a esperança e o medo”. “Não vale a pena combater uma campanha política com base em factos, é tudo sobre emoções.” Revelam também como usam empresas especializadas e “agentes de serviços secretos de países como Israel” para recolher informações e preparar uma acção; depois recorrem a tácticas como a utilização de “mulheres ucranianas” ou a criação de uma situação fraudulenta que envolva um concorrente, filmam-na e difundem-na. Como diz o seu executivo: “Pomos informação na Internet e vemo-la crescer, mas tem de acontecer sem que pareça ser propaganda.” A receita está dada: “É preciso ser muito subtil.” O administrador, Alexander Nix, diz isto tudo em frente às câmaras escondidas para tentar ganhar o contrato. E pede mesmo: “Não prestem muita atenção ao que estou a dizer, porque são meros exemplos do que podemos fazer.”
A terceira parte, revelada ao fim da tarde desta terça-feira, demonstra até onde vão as relações da Cambridge Analytica com a campanha de Donald Trump. Alexander Nix reclama a autoria da expressão “defeat crooked Hillary”, algo como “derrotem a Hillary corrupta”, fala das muitas vezes que se encontrou com Trump e explica como acertou em cheio na manipulação do sistema americano – Trump perdeu em número de votos, mas ganhou por pouco nos estados mais relevantes. E são os próprios executivos que referem esse caso: “Trump ganhou por 40 mil votos em três estados [locais onde se fizeram as movimentações decisivas].” Assim que o vídeo foi publicado, a empresa Cambridge Analytica anunciou ter suspendido Alexander Nix, numa admissão de responsabilidade inusitada. Mas o problema vai mais longe. Pela reportagem fica claro que todas as acções foram coordenadas pela família Mercer, investidora da Cambridge Analytica, que foi também a maior financiadora da campanha Trump. De acordo com a lei americana, é proibido que estas empresas partilhem informações com as candidaturas – mas terá sido precisamente isso que ocorreu.
Ainda falta saber qual foi o grau de participação consciente do Facebook em todo este processo. Sabe-se que há dois anos teve informação sobre a fuga dos dados de 50 milhões de utilizadores e optou por esconder esse facto, esperando que nunca viesse a ser público. E até agora Mark Zuckerberg, que em 2017 disse que era “ridículo pensar que o Facebook teve um papel importante nas eleições”, tem estado em silêncio. Um silêncio que é cada vez mais ensurdecedor.