A Economia que foi “extraterrestre” e começa a Circular por aí
O que têm em comum o Repair Café e a Vintage for a Cause? São dois projectos de Economia Circular, uma ideia que está a entrar na agenda política. O futuro é reciclável?
Quando se mudou para o Porto, a designer de moda Marisa Escaleira sentiu falta da oficina lisboeta onde tinha posto em prática a sua visão circular da economia. Tinha participado em algumas iniciativas do Repair Café, um projecto de eventos públicos onde se dá nova vida a objectos encostados, e a ideia de o levar a outras geografias não lhe saía da cabeça. Assim nasceu o desafio feito a Lindsey Wuisan, a holandesa que trouxe o conceito para Portugal: e se o projecto viajasse 300 quilómetros para Norte?
Podem ser móveis, aparelhos electrónicos, bicicletas, roupa. A reparação é feita por voluntários — a quem leva objectos pede-se um donativo —, mas o objectivo não é depositar a peça e ir buscá-la mais tarde. “São convidados a aprender, a conhecer as máquinas, até a produzir uma peça para ajudar a reparar se for caso disso”, explica Marisa Escaleira, que ao lado da economista Ana Coelho coordena o Repair Café no Porto.
As sessões acontecem quase sempre no OPO’ Lab — um laboratório de arquitectura e design onde se trata a economia circular por “tu” — e o próximo evento já tem data marcada: 28 de Abril. No enorme armazém da Rua D. João IV fomenta-se um sentido de comunidade e partilha. E deixa-se sempre um aviso prévio: o conserto não está garantido uma vez que não há profissionais envolvidos. Num dos eventos do Repair Café uma senhora ficou tão satisfeita por ver a sua torradeira a funcionar de novo que foi buscar pão e manteiga e fez torradas para todos. Além disso, acrescenta Marisa, ao verem um objecto ser desconstruído as pessoas percebem melhor o seu valor. Talvez pensem duas vezes antes de deitarem o próximo para o lixo quando houver alguma avaria.
O mantra está enraizado um pouco por todo o lado. Extrair, transformar, usar e deitar fora. Extrair, transformar, usar e deitar fora. Vezes e vezes sem conta. Mas com um fim anunciado. E o que faremos quando os recursos se esgotarem? A questão tem ocupado linhas infindas em publicações nacionais e internacionais e preocupa cidadãos e governos um pouco por toda a geografia mundial. O modelo económico linear tornou-se incompatível com o nosso planeta — e as consequências da sua vigência já são evidentes. A mudança é difícil e lenta. Mas o movimento existe. Em forma de círculo: produzir e consumir para depois reciclar, reparar ou reutilizar. Vezes e vezes sem conta, sem fim à vista. Será a economia circular a resposta para o futuro?
Corria o ano de 2012 quando o Manifesto para uma Europa Eficiente em Recursos se dava a conhecer e punha o conceito de economia circular a correr dentro da Comissão Europeia com promessas de crescimento económico e nascimento de novos negócios. Mas só no final de 2015, o Pacote Europeu para a Economia Circular colocava o plano em velocidade cruzeiro. Em Portugal, resume o ministro do Ambiente, João Pedro Matos Fernandes, o “acumular de evidências” de que o modelo socioeconómico actual “não é compatível com as fronteiras físicas impostas pelo nosso sistema natural” deram origem a um Plano de Acção para a Economia Circular. Corria Novembro de 2017.
Articulação é o segredo
Não é uma missão simples. Para que possa apresentar-se como uma “solução circular”, a resposta tem de ter em conta “todo o modelo de negócio”, com uma “articulação simultânea dos vários agentes”, sublinha o ministro numa entrevista por e-mail. Usando uma imagem gráfica, dir-se-ia que para erguer uma economia circular não basta “pegar nas pontas da economia linear e unir”, explica: “Isso é limitar o potencial que um verdadeiro sistema de valor, a funcionar em pleno, nos pode dar.”
Há trabalho a fazer em quase todos os sectores. Mas o Governo identificou algumas apostas prioritárias: a construção, o turismo, o têxtil, o calçado. E também o retalho e a distribuição. A ideia, em traços simples, é que, depois de utilizados, os recursos sejam devolvidos ao sistema, diminuindo o desperdício e criando um ciclo. Há cada vez mais pessoas e projectos a alinhar neste modelo antidesperdício. Mas uma mudança efectiva implica o nascimento de um novo paradigma. Um outro alinhamento de prioridades. E valerá o esforço?
Um estudo apresentado recentemente põe a resposta em números. Em 2015, segundo dados do Instituto Nacional de Estatísticas, foram eliminados 1,1 milhões de toneladas de resíduos não urbanos em Portugal. Agora faça-se um exercício de imaginação, com base na pesquisa do BCSD Portugal — Conselho Empresarial para o Desenvolvimento Sustentável, uma plataforma que agrega e representa empresas comprometidas com a economia de baixo carbono: se em vez de serem eliminados estes resíduos fossem usados como matérias-primas, haveria, no espaço de um ano, uma redução de consumos intermédios de 165 milhões de euros e uma contribuição de 32 milhões de euros em valor acrescentado bruto. Isto traduzir-se-ia em 1300 novos postos de trabalho e menos cinco milhões de toneladas de extracção de materiais.
Lindsey Wuisan deixou-se seduzir pelo estado ainda inicial de desenvolvimento do conceito em Portugal. Tinha ajudado a erguer o primeiro programa de políticas governamentais para a economia circular na Holanda e viu no seu conhecimento a chave para algo novo. Assim, há coisa de um ano, mudou-se para Lisboa e criou o Circular Economy Portugal.
A estratégia do projecto passa pela divulgação do conceito e prestação de serviços de consultoria a empresas que queiram apostar nesta economia. Mas também, e sobretudo, pelo desenvolvimento de “iniciativas práticas” com “foco em inovação social e em contexto urbano”, explica Andreia Barbosa, também membro do projecto. No terreno está o Camboa (projecto de compostagem comunitária), o Plástico Circular (uma instalação pedagógica que é um instrumento de comunicação para falar da utilização de plástico descartável), o Recostura (onde se busca uma nova vida para roupa velha) e o Repair Café (o tal espaço de reparação que já chegou ao Porto). E há mais ideias a marinar.
Ana Coelho, licenciada em Economia e coordenadora do Repair Café no Porto, já se acercava do tema da sustentabilidade quando ainda se falava pouco dele. Na Universidade do Porto, mesmo quando acabou o mestrado na área ambiental, há apenas dois anos, a economia circular era ainda “um extraterrestre”. No Repair Café Porto ajuda a passar a mensagem da reparação como solução: “A ideia central é de que todos os sistemas devem ser vivos e não gerar resíduos”. E – muito importante – “pôr as pessoas a repensar as suas práticas”.
Roupa velha, roupa nova
Na casa de Helena Antónia sempre houve uma política informal de reaproveitamento no que à roupa diz respeito. A mãe costureira dava nova vida a vestuário usado, havia trocas entre irmãos, um olhar interessado para lojas de segunda mão. O chip ficou. Por isso, quando numa pós-graduação em empreendedorismo e inovação social a desafiaram a apresentar uma ideia inovadora que usasse recursos existentes, fosse sustentável e replicável, o plano foi quase automático: o ponto de partida ia ser a roupa sem utilidade.
A Vintage for a Cause, criada em 2013, teve preocupações ambientais desde o primeiro instante. Mas desenhou, no final do ano passado, um plano de melhorias para que o ciclo seja cada vez mais perfeito. A moda, lamenta Helena, formada em Direito e com emprego numa seguradora, é “uma indústria muito associada ao desperdício” – e os hábitos de compra estão de tal forma enraizados que as pessoas já nem se questionam quando o fazem. “O tempo médio de uso de uma roupa são quatro meses. É assustador. Queremos lançar o mote de que se é bem feito pode ser usado muito tempo”, nota. “E se não quiserem usar devolvam e nós reutilizamos.”
O projecto – com atelier no número 96 da Rua Damião de Góis, no Porto, e uma loja online – usa desperdícios têxteis de pequenas confecções e roupa usada (quase toda proveniente do banco de roupa da Santa Casa da Misericórdia) para criar novas peças. Com desenho e assinatura de autor. E produzidas por costureiras contratadas fora (“pagas de forma justa”) ou por Felicidade Ribeiro, a modista da casa.
Sorriso aberto e olhos postos na máquina, Felicidade, 64 anos, vai relatando a sua história de amor com as linhas. Costuma dizer que já nasceu costureira: “Aprendi com a minha avó, com a minha madrinha. Aos 14 anos já trabalhava numa modista”, conta. Ao Vintage for a Cause chegou pelo lado social do projecto: é que desde o primeiro dia que ali se promoveu a integração e se combateu o isolamento de mulheres com mais de 50 anos com aulas de costura. E isso continua a acontecer. Todas as quintas-feiras, quem quiser aprender a costurar ou usar as máquinas da casa para criar ou arranjar roupa pode fazê-lo. E nada do que sai do atelier tem fins comerciais.
Pode ser coisa recente este conceito de economia circular, mas a ideia conjuga-se no pretérito. “Já fazia isto há 30 anos, a minha avó fazia roupa para mim, eu fazia para os meus filhos. Tenho roupa com 20 anos. Não é preciso estar sempre a comprar”, diz Felicidade Ribeiro. O caminho para essa consciência, sugere Marisa Escaleira – cuja tese de mestrado explora a relação que mantemos com a roupa e os objectos e por que razão é ela importante para garantir a sustentabilidade – pode ser o conhecimento do processo: “Se explicarmos às pessoas como se faz uma roupa, as etapas pelas quais passa, os quilómetros que percorre para chegar às nossas mãos, talvez as coisas mudem.”
A lógica é válida para outros sectores. Aline Guerreiro anda a apregoá-lo há vários anos a arquitectos e outros trabalhadores da construção — um sector onde ainda se faz “muito pouco”, sobretudo se o paralelismo for feito com países como a Dinamarca e a Alemanha, onde já se constroem edifícios inteiros a partir de materiais reciclados. Aline criou um Portal da Construção Sustentável, para promover a educação nesta área, tem um gabinete de arquitectura sustentável em Braga. E desde o início do ano está a trabalhar num projecto inovador em Portugal, com o apoio governamental do Fundo Ambiental, que sugere a desconstrução de edifícios como alternativa à simples implosão. E tem no prédio Coutinho, em Viana do Castelo, um possível ponto de partida.
Derrubar barreiras: por onde começar?
No estudo do BCSD – Portugal é óbvio o caminho por fazer. As 32 empresas analisadas eliminam 57% dos resíduos produzidos e valorizam 43% — e estes são números de instituições que já apostam em políticas sustentáveis. “Muitas destas transacções de resíduos não acontecem devido à falta de informação, à ausência de capacidade técnica/tecnológica, aos custos associados, às burocracias e às barreiras legislativas, sejam comunitárias ou nacionais”, justifica o estudo, que sugere várias acções para derrubar estes obstáculos.
Usar resíduos biodegradáveis na produção de fertilizantes para jardins e agricultura. Reutilizar cinzas nos sectores da construção, cimenteira, asfalto ou agricultura. Dar uma segunda vida à lama na indústria de papel ou fertilizantes de solos. Escoar solventes para a produção de tintas ou combustíveis alternativos. As possibilidades são imensas.
A economia circular, defende Andreia Barbosa, “é um conceito-instrumento complementar” a outros já existentes, como a economia verde ou da partilha. Na Circula Economy Portugal olha-se para os problemas em busca de novas soluções que ajudem “na transição de um modelo económico insustentável para algo que funcione”. Utopia? Na sua “forma plena” talvez sim. Mas visto como um paradigma para o qual “tentamos tender” nem tanto.
E desengane-se quem pensa que é apenas uma questão de ambiente, realça o estudo do BCSD – Portugal: “Já não falamos apenas em reduzir o impacto ambiental das empresas, mas também em reduzir custos com matérias-primas e mercadorias, em pensar os negócios de forma diferente, em criar novos empregos. Falamos em economia e em futuro.”