Trabalho dos cuidadores informais vale 333 milhões de euros por mês
Estima-se que mais de 800 mil pessoas cuidem em casa de pessoas que estão dependentes de si. Licenças laborais de emergência e linha de apoio para quem cuida são propostas do grupo de trabalho a quem o Governo pediu estudo. BE vai mais longe e apresenta projecto de lei com licenças e subsídios reforçados.
É um trabalho invisível mas extremamente valioso. A actividade das pessoas que cuidam em casa de idosos, de indivíduos com demência ou com doenças crónicas e de crianças com patologias graves valerá em Portugal quase 333 milhões de euros por mês, cerca de 4 mil milhões de euros por ano. É o valor económico das horas de trabalho dos cuidadores informais estimado num estudo pedido pelo Governo — e que foi encomendado para servir de suporte à decisão política de criação de um estatuto jurídico e de medidas de apoio para estas pessoas (familiares, vizinhos ou amigos) que cuidam de dependentes em casa sem serem remuneradas.
O estudo estava guardado nas gavetas ministeriais até que, no final de Janeiro, a coordenadora do Bloco de Esquerda (BE), Catarina Martins, decidiu perguntar o que teria acontecido a esta promessa do Governo. Poucas horas depois, enviaram-lhe o documento. Com data de Setembro e intitulado Medidas de Intervenção junto dos Cuidadores Informais, este inclui um extenso rol de recomendações, de onde emerge a possibilidade de os cuidadores passarem a ter licenças laborais “de emergência” (com número de dias a definir em sede de Concertação Social), um “plano de apoio” e uma linha de apoio permanente.
É ali que surge a estimativa, atribuída à associação Cuidadores Portugal (que integra uma rede de organizações europeias, a EuroCarers) do valor económico do trabalho da legião de cuidadores informais do país, e que usou como “referência” o salário mínimo nacional, contabilizando as horas prestadas e o seu custo, caso fossem remuneradas. Um valor que nos vários países europeus a Eurocarers estima ascender a 340 mil milhões de euros por ano. Em Portugal, segundo a EuroCarers, haverá 827 mil cuidadores informais (perto de 207 mil a tempo inteiro e os restantes a tempo parcial).
Logo à partida, porém, avisa-se que o documento não permite a definição do estatuto ou outras respostas legislativas. “Para isso, seria necessário um estudo mais aprofundado” que analisasse as medidas possíveis e a sua “viabilidade no âmbito do trabalho, da saúde e das finanças”, justificam 11 especialistas que contaram com a colaboração do Gabinete de Estratégia do Ministério do Trabalho e Segurança Social.
“É tudo muito vago e genérico, parece que foi feito para ver se nos cala”, critica Sofia Figueiredo, uma das promotoras da petição apresentada em 2016 em defesa da criação do estatuto do cuidador informal da pessoa com Alzheimer e outras demências ou patologias neurodegenerativas. Com milhares de assinaturas, esta petição vai ser apreciada em plenário no Parlamento no dia 16 e levou o BE, por arrasto, a apresentar um projecto de lei. Sofia vai estar entre o grupo de cuidadoras que marcará presença nas escadarias do Parlamento nesse dia. Querem ter visibilidade e fazer-se ouvir. “As pessoas estão desgastadas. Sabemos que não se pode fazer tudo de uma vez, mas é preciso começar por algum lado”, diz Sofia, que se viu obrigada a meter um ano de baixa para poder cuidar da avó com demência.
Do lado político, o BE não deverá estar sozinho nesta cruzada. O PCP diz que também vai apresentar uma iniciativa legislativa, enquanto o PS, o PSD e o CDS/PP não vão avançar neste sentido. Os ministérios da Saúde e da Segurança Social, a quem pedimos informação sobre uma eventual iniciativa governamental, não responderam.
O estatuto do cuidador informal (que reconhece direitos em várias dimensões, como licenças, subsídios, contagem para a carreira contributiva, etc.) já existe em vários países europeus, foi prometido pelo actual Governo e até reúne consenso político — em Maio de 2016, o Parlamento aprovou um conjunto de resoluções apresentadas pelos vários grupos parlamentares neste sentido. Também o Presidente da República lembrou, por mais de uma vez, a urgência de reconhecer juridicamente o trabalho destas pessoas.
Como se explica então que ainda esteja tudo por fazer em Portugal? “O Governo tem dois problemas: não quer conflitos com os patrões e sabe que isto tem um custo para a Segurança Social”, justifica o deputado do BE José Soeiro, o relator da petição e o principal responsável pela iniciativa legislativa do partido — que quer que os cuidadores passem a ter direito a quatro dias de descanso por mês e 11 dias consecutivos de férias, além do reforço de vários subsídios.
“O CDS/PP foi o primeiro a falar nisto”, diz o deputado centrista Filipe Anacoreta Correia, que lembra que o seu partido apresentou vários projectos de resolução, mas não avançará agora com uma iniciativa legislativa, por considerar que “de nada serve um documento legal inconsequente”. “O que é preciso é perceber qual é o envelope financeiro” que resulta do estatuto, alega. Já o PCP decidiu apresentar uma proposta porque esta é “uma realidade que comporta situações dolorosas e de sofrimento”, justifica a deputada Diana Ferreira, que não enviou, porém, qualquer documento ao PÚBLICO até à hora do fecho da edição.
125 milhões na Europa
Apesar de considerar esta matéria “da maior relevância”, o PSD não tenciona apresentar agora uma iniciativa legislativa, até porque, argumenta a deputada Helga Correia, o estudo pedido pelo Governo é “um ponto de partida, não de chegada”.
Voltando ao estudo, os autores enfatizam que cerca de 80% dos cuidados em toda a Europa são assegurados por cerca de 125 milhões de pessoas não remuneradas nem treinadas para isso. Passando em revista a experiência de vários países onde o estatuto dos cuidadores não profissionais já existe (França, Reino Unido, Alemanha, Irlanda e Suécia), fazem uma síntese legislativa da “dispersão” dos diplomas nacionais e terminam lembrando que “as entidades de referência” nesta área são “consensuais” quanto à importância de conciliar esta actividade com a vida familiar através de licenças e flexibilidade nos horários de trabalho, benefícios e incentivos fiscais.
Mas até uma das medidas que se previa ser de rápida concretização — uma plataforma informática para capacitação do cuidador, com vídeos e outros instrumentos de ensino à distância — não avançou. “É necessário que saiam os instrumentos financeiros [fundos europeus] para a apoiar”, justifica o coordenador da reforma na área dos cuidados continuados, Manuel Lopes, que coordenou o estudo. “A minha responsabilidade nesta matéria terminou com a entrega do documento”, remata.
“Estamos 20 a 30 anos atrasados”, lamenta Bruno Alves, da Cuidadores Portugal. Reconhecendo que será ambicioso avançar com tudo ao mesmo tempo, é taxativo: se nada for aprovado, “deve haver consequências políticas”.