Antes uma vinha do que um helicóptero Kamov
Muitos incêndios só terminam quando chegam a uma horta ou a uma vinha. A terra trabalhada é um dos mais eficazes corta-fogos que temos.
Nas grandes cheias do Funchal de Fevereiro de 2010, aquela que era a principal garrafeira/distribuidora da Madeira, a Diogos, da família co-proprietária da empresa Vinhos Barbeito, foi um dos muitos edifícios que a enxurrada engoliu. O mar de água vindo da montanha destruiu milhares de garrafas de vinho e também o museu/biblioteca, com cerca de 25 mil livros, da família Barbeito.
Ricardo Diogo, o rosto dos vinhos Barbeito e que era, na altura, o responsável pela garrafeira, comprava vinhos aos principais produtores do Douro. Um deles, Dirk Niepoort, tinha dois cheques para receber. Ricardo Diogo estranhou que demorassem a ser depositados. Sem dizer nada, Dirk tinha-os rasgado. Foi a sua forma de ajudar. Outros produtores, como Jorge Moreira, Jorge Serôdio Borges ou a Quinta do Vale Meão, ofereceram inúmeras caixas de vinho. Não terão sido os únicos, suponho.
Nos incêndios do último Verão arderam algumas vinhas da Casa de Mouraz, no Dão, e uma parte dos vinhos já engarrafados também se perdeu, bem como o armazém onde estavam guardados. Foi bonito ver a onda de solidariedade que se gerou, tanto em Portugal como no estrangeiro. Porém, confesso que me custou ver os proprietários usarem o Facebook para pedir ajuda financeira, propondo, legitimamente, pagar mais tarde com a entrega de vinho de colheitas posteriores. Mesmo no Dão, houve mais gente conhecida que também perdeu vinhas e que não reclamou ajuda, nem lançou nenhuma campanha de crowfunding para construir uma nova adega, como fizeram os donos da Casa de Mouraz. Por mim, teria apreciado que, não podendo contar com o Estado, o fizessem noutra altura, quando o ambiente de comiseração geral já se tivesse dissipado. E digo-o porque sempre simpatizei com os seus proprietários. Sofrer sozinho e em silêncio é um acto de enorme nobreza e dignidade.
Nem fazemos ideia de quantos pequenos e anónimos viticultores perderam, nesses e noutros incêndios, parte ou a totalidade das poucas vinhas que tinham. Desses, sem rosto e sem nome, ninguém falou. Encarámo-los como encaramos os mortos de tantas guerras e tragédias longe de nós que passam todos os dias com indiferença à frente dos nossos olhos, só porque não conhecíamos as vítimas.
Muitos desses viticultores sem nome são idosos com poucas forças e posses que continuam a tratar das vinhas mais por orgulho e dever sentimental do que por qualquer outra razão. Deixar ao abandono a terra que se herdou ou se comprou com sacrifício continua a ser encarado como uma infâmia. Quem desiste é quase sempre o filho ou a filha que se mudam da aldeia para a cidade, não quem fica.
Esses resistentes, tão diferenciados por se negarem a abandonar o campo como aqueles que emigram para fugir a uma vida sem grandes horizontes, mereciam muito mais apoio e solidariedade de todos nós. Muitos incêndios só terminam quando chegam a uma horta ou a uma vinha. A terra trabalhada é um dos mais eficazes corta-fogos que temos, como se viu no último Verão. Não é apenas pelas alterações climáticas que os incêndios são cada vez mais violentos. É também pelo despovoamento das aldeias.
Muito do dinheiro que gastamos a combater incêndios seria muito mais útil e eficaz se fosse entregue a quem continua a viver no campo e a fazer agricultura. Antes uma vinha, mesmo que velha, do que um helicóptero Kamov. O nosso erro é pensarmos que os rurais trabalham só para eles. Ao trabalharem as suas hortas, os seus pomares, os seus olivais e vinhas, as cuidarem da sua floresta, ao criarem os seus animais, estão a cuidar de todos nós. Estão a prestar um serviço de natureza ambiental, paisagística e alimentar de que todos beneficiamos e que não tem preço. Os poucos subsídios que recebem não remuneram o serviço que prestam e servem apenas para tornar a exploração menos ruinosa. Não me importaria de pagar um imposto ou uma taxa para financiar de forma muito mais generosa esses guardiães/fazedores da natureza.
A Casa de Mouraz, até pelo facto de fazer agricultura biológica e de estar onde está, numa aldeia do concelho de Tondela, também nos presta um serviço. Como qualquer outro agricultor atingido, devia, por isso, contar com o apoio do Estado para poder recuperar as suas vinhas, refazer o mosaico paisagístico envolvente, reerguer o edifício destruído e retomar a produção de vinho. Não como uma excepcionalidade, mas sim como um apoio natural e indiscutível. Se o Estado, através do Governo, tivesse essa visão do mundo rural, se todos nós encarássemos esse apoio como um investimento e não como um custo, de certeza que não teríamos tantos incêndios e que o país não seria tão assimétrico. E produtores como a Casa de Mouraz talvez não tivessem a necessidade de pedir a solidariedade alheia, que é algo sempre constrangedor.
PS: Na semana passada, participei, pela primeira vez, no concurso anual dos vinhos do Tejo. Provei mais de uma centena de vinhos em dois dias e cheguei ao final a saber o mesmo que sabia sobre os vinhos desta região: ou seja, muito pouco. A impressão geral, sobretudo nos tintos, até foi boa, mas desconheço que castas provei. São tantas as variedades de outras regiões nacionais e de outros países que se usam no Tejo que é difícil decifrar os vinhos. Podemos tentar chegar lá por aproximação, com base nos caracteres que conhecemos de cada casta. Mas numa região que o director do concurso, Osvaldo Amado, classifica como “a nossa Austrália” é sempre uma tarefa complicada. Por exemplo, um branco que para alguns jurados era garantidamente um Sauvignon Blanc revelou-se, afinal, ser um blend de Arinto, Verdelho e Fernão Pires.
Já agora: o director do concurso estava para ser Mário Louro. Desistiu à última hora, quando soube que a organização tinha convidado, à sua revelia, alguns jornalistas que não eram do seu agrado. Enfim….