Morte de jornalista de investigação é um "ataque sem precedentes contra a democracia"
Bruxelas e profissionais europeus exigem inquérito ao assassínio de Jan Kuciak, um repórter de 27 anos conhecido por trabalhos sobre corrupção e fraude fiscal.
O jornalista Jan Kuciak, de 27 anos, e a namorada, Martina Kusnirova, foram mortos com um tiro cada um, em casa em Velka Maca, a cerca de 65 quilómetros de Bratislava, capital da Eslováquia. As autoridades europeias e eslovacas acreditam que o ataque poderá estar relacionado com investigações que o jornalista estava a desenvolver em torno de suspeitas de fraude fiscal na Eslováquia. O primeiro-ministro eslovaco, Robert Fico, afirmou que, se se vier a provar que o assassínio de Kuciak está relacionado com o trabalho que este vinha desenvolvendo, o caso é “um ataque sem precedentes contra a liberdade de imprensa e a democracia na Eslováquia”. O governante anunciou que o executivo vai oferecer uma recompensa de um milhão de euros por informações que levem à captura dos responsáveis.
Os corpos foram encontrados no domingo, depois de familiares terem alertado as autoridades para o desaparecimento. Citado pela cadeia alemã Deutsche Welle, o comandante da polícia eslovaca, Tibor Gaspar, disse na manhã de segunda-feira que “os indícios apontam para que o assassínio tenha sido planeado e não o resultado de um confronto espontâneo”. Acrescentou que o crime estava “provavelmente relacionado com o trabalho investigativo do jornalista".
Kuciak trabalhava para o site de notícias Aktuality.sk e as investigações centravam-se essencialmente em casos de evasão e fraude fiscais das elites eslovacas.
Segundo informações divulgadas pelo site da Federação Europeia de Jornalistas, o último artigo publicado por Kuciak, em 2017, abordava os negócios do eslovaco Marian Kocner, conhecido empresário do ramo imobiliário. O mesmo site cita ainda Peter Bardy – o editor do repórter assassinado – que num texto de Setembro de 2017 escreveu que o empresário ameaçara o jornalista com a divulgação de informações privadas sobre Kuciak e a família. Após as ameaças, o jornalista contactou a polícia.
O jornal The Guardian, por seu lado, afirma que as investigações de Jan Kuciak sobre fraude fiscal visavam também empresários com ligações ao Partido Social-Democrata, que lidera o governo de coligação na Eslováquia. Em causa estavam, segundo o mesmo jornal, suspeitas de fraude fiscal relacionadas com um complexo de apartamentos de luxo em Bratislava, conhecido como a Residência Cinco Estrelas. Kuciak identificava transacções suspeitas entre cinco empresas, um negócio que gerou protestos e pedidos de demissão do ministro do Interior, Robert Kalinak, número dois daquele partido.
Kalinak é suspeito de deter uma participação de 17% nas empresas de Ladislav Basternák, promotor do referido empreendimento, que estava na mira da justiça por alegada fraude fiscal. O ministro negou as acusações e a investigação foi suspensa. Ainda de acordo com o Guardian, Jan Kuciak investigava também a apropriação de fundos europeus pela máfia italiana.
A Reuters noticia que a polícia eslovaca está em contacto com autoridades da República Checa e da Itália, admitindo haver ligações internacionais ao assassinato de Jan Kuciak e a namorada. O comandante da polícia, Tibor Gaspar, afirmou nesta terça-feira numa conferência de imprensa, que estão a ser analisadas diferentes pistas e que foram interrogadas cerca de 20 pessoas. De acordo com o mesmo responsável, a Europol ofereceu ajuda especializada para a análise de registos telefónicos. Na conferência de imprensa, o ministro do Interior, Robert Kalinak, anunciou que um representante do site de notícias Aktuality.sk será convidado a juntar-se à equipa de investigação, de forma a garantir a máxima transparência.
Este crime provocou uma onda de indignação na Eslováquia e não só, levando associações e sindicados de jornalistas, bem como figuras políticas, a manifestarem-se em defesa da liberdade de imprensa e do jornalismo de investigação.
A editora Ringier Axel Springer Slovakia, à qual pertence o website Aktuality.sk, enviou um comunicado ao The Washington Post em que garante não se deixará indimidar. "Se este crime foi uma tentativa de demover uma editora independente (...) de investigar casos em que a lei não é respeitada, este caso servirá para fortalecer a responsabilidade jornalística".
Numa carta aberta assinada por editores de mais de 20 publicações noticiosas e estações de rádio da Eslováquia, os jornalistas pediram ainda às autoridades que assegurem as condições de segurança dos profissionais de informação naquele país. “O assassínio de um jornalista é um sinal grave de que o crime está a ser dirigido contra um dos mais importantes pilares da liberdade; contra a liberdade de expressão, e o direito dos cidadãos a controlarem os poderosos e aqueles que não respeitam a lei”, lê-se na carta, de acordo com o The Telegraph.
Já o presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, classificou o assassínio de "acto cobarde", e acrescentou que "o assassínio ou intimidação de jornalistas não tem lugar na Europa, nem lugar em nenhuma democracia", de acordo com uma mensagem do porta-voz da comissão, Margaritis Schinas, publicada no Twitter.
O presidente da Federação Europeia dos Jornalistas (FEJ), Mogens Blicher Bjerregard, anunciou que ficou "profundamente chocado com esta triste notícia proveniente de um país da União Europeia, que acontece apenas alguns meses depois do assassínio de Daphne Caruana Galizia”, de Malta. Bjerregard adverte que, caso se comprove a ligação da morte de Jan Kuciak ao seu trabalho de investigação, “será um sinal muito preocupante para o jornalismo na União Europeia”.
O presidente da FEJ exigiu às autoridades que resolvam o caso e que garantam que o autor do crime seja levado à justiça, acrescentado que “os principais líderes da Eslováquia devem defender firmemente a liberdade de imprensa e acabar com a impunidade”. A FEJ pediu à Eslováquia que aplique imediatamente a recomendação do Conselho da Europa de 2016 sobre a protecção do jornalismo e segurança dos jornalistas e outros actores dos meios de comunicação social. Até à data, nenhum Estado-membro do Conselho da Europa aplicou a recomendação.
Este é o terceiro homicídio de um jornalista na União Europeia em menos de um ano. Em Agosto, a jornalista freelance sueca Kim Wall foi assassinada e desmembrada pelo engenheiro aeroespacial dinamarquês Peter Madsen quando estava a bordo do submarino deste para escrever um perfil — no entanto, e de acordo com o que se sabe da investigação, o crime não está relacionado com a actividade da vítima, suspeitando-se de delito sexual.
Em Outubro, a jornalista Daphne Caruana Galizia, responsável pela investigação aos Panama Papers em Malta, foi morta na detonação de uma bomba colocada no carro. Caruana Galizia investigava suspeitas de corrupção na esfera política maltesa e os trabalhos levaram o primeiro-ministro a convocar eleições antecipadas em 2017, depois de a jornalista ter exposto práticas ilícitas de membros do Partido Trabalhista, no poder. Neste caso, suspeita-se que a morte da repórter esteja directamente relacionada com as investigações.
Texto editado por Pedro Guerreiro