A propaganda e as mentiras do embaixador da Turquia em Portugal
A maior ameaça à integridade territorial da Síria e à estabilidade no Médio Oriente chama-se Erdogan.
No passado dia 1 de Fevereiro, Hasan Gögüs, embaixador da Turquia em Portugal, escreveu uma crónica no jornal PÚBLICO intitulada "A operação militar da Turquia não é contra os curdos". Nela, afirma que "a Turquia combate actualmente várias organizações terroristas" e "nenhum país pode tolerar a presença de qualquer elemento terrorista nas suas fronteiras". No meu direito de resposta, pretendo mostrar quem são os verdadeiros terroristas e quais os "sucessos" das duas operações militares que Hasan Gögüs refere.
O povo curdo é um povo milenar que habita a região nomeada Curdistão, que faz parte da área conhecida como Crescente Fértil há mais de 3000 anos. Trata-se de uma zona geocultural do Médio Oriente reconhecida como maioritariamente curda. Desde 2012, com a retirada do exército sírio (SAA) e do aparelho do Estado dos territórios a norte do país, uma estrutura político-social emergiu para ocupar o vazio deixado pelo regime sírio e estabelecer uma zona autónoma segundo um novo modelo de organização social intitulado Confederalismo Democrático.
A Federação Democrática do Norte da Síria (DFNS) é composta por povos de várias etnias — curdos, assírios, turquemenos, tchetchenos, árabes, entre outros — e busca implementar um modelo social que dê uma maior representatividade à rica herança cultural que compõe o Médio Oriente, ao mesmo tempo que procura estabelecer uma convivência pacífica entre povos que vêm sendo massacrados ao longo de séculos de guerras imperialistas e de colonialismo ocidental. Sinal desse colonialismo é o próprio Curdistão que, aquando da divisão do império otomano no fim da 2.ª Guerra Mundial, ficou esquecido pelas grandes potências e ficou dividido entre quatro Estados — Turquia, Síria, Iraque e Irão.
Em 2014, Kobane escreveu as páginas da história tornando-se um símbolo da resistência curda. Com o ISIS a rodear todo o norte da Síria, a população de Kobane decidiu resistir e enfrentar o grupo takfiri, tomando as armas. Na defesa de Kobane, 80% das pessoas que resistiram durante 134 dias aos avanços jihadistas eram mulheres da Unidade de Protecção das Mulheres (YPJ), que no dia 26 de Janeiro de 2015 anunciaram a libertação da cidade. Essas mulheres tornaram-se os símbolos do modelo filosófico em que se baseia o Confederalismo Democrático — Ecologismo; Anti-Patriarcado; e Comunalismo.
Hasan Gögüs mente ao afirmar que a DFNS pretende violar a integridade territorial da Síria. Mente igualmente sobre os sucessos da Operação Escudo do Eufrates. Quem é reconhecido internacionalmente por violar a integridade territorial de vários países é a própria Turquia. Relembro os territórios ocupados no Chipre e na região de Hatay, zona que historicamente fazia parte da Síria e que, com a divisão do império otomano, foi ocupada pela Turquia. O regime sírio continua até aos dias de hoje a não reconhecer a zona como sendo turca. A Operação Escudo do Eufrates é, na realidade, o início do imaginário político do neo-otomanismo e da política expansionista e genocida do regime governado pelo AKP com o apoio do partido de extrema-direita MHP. Ex-combatentes do ISIS e de grupos locais vinculados à Al-Qaeda como a HTS emitiram várias confissões às Forças Democráticas Sírias (SDF) onde indicavam que se tinham misturado com a população local em Jarablus durante a campanha do Escudo do Eufrates para assim se integrarem nas milícias controladas pelo regime turco. Combatentes do ISIS também indicam que na mesma campanha não ofereceram qualquer tipo de resistência às ofensivas turcas. Várias organizações não-governamentais também demonstraram as várias ligações entre o ISIS e a Turquia para a venda de petróleo e o cruzar de fronteiras de forma livre de complicações.
A maior ameaça à integridade territorial da Síria e à estabilidade no Médio Oriente chama-se Erdogan, graças ao seu apoio a bandos de ideologia salafista e aos seus bombardeamentos e assassinatos que têm massacrado a população curda, dentro e fora de portas. Em Bakur (Sudeste da Turquia), a população curda vem sendo massacrada há décadas, com mais de 40.000 vítimas curdas nos últimos 30 anos. A política de terra queimada aplicada pelo regime do AKP deixou as cidades de Mus bedlîs, Sûr, Dersim, Farqîn, Cizîr, Sirnex, Bîsmîl, Silopîya, Nisêbîn, Sêrt, Gever, Colemêrg, Hezex completamente destruídas, provocando deslocações massivas de refugiados. Se nos situarmos no pós-golpe de Estado, mais de 134.194 pessoas foram demitidas da função pública, pelo menos 100.155 foram detidas e 50.142 encontram-se na prisão. As instituições internacionais têm amplamente documentados os crimes de guerra e contra a humanidade cometidos em Bakur, onde centenas de pessoas, entre elas dezenas de crianças, morreram às mãos do exército turco.
No passado dia 20 de Janeiro, o regime turco anunciou uma operação militar terrestre e aérea que visa invadir Afrin, em cooperação com o Exército Livre Sírio (FSA), conhecidos no Ocidente como “rebeldes moderados” — Ahrar al Sham, Partido Islâmico do Turquestão Oriental, Tahrir al Sham, etc. —, grupos locais da Al-Qaeda que estiveram anteriormente em aliança com o ISIS. Existem também diversos vídeos que mostram um comboio militar turco a dirigir-se à cidade de Idbil escoltados pelo exército do regime e pela Tahrir al-Sham. Afrin é uma das poucas regiões que passou incólume à chacina de sete anos em que se transformou a guerra na Síria, sendo, portanto, uma mentira a afirmação do embaixador de que estão a ir "salvar os irmãos sírios". É, na verdade, mais uma desculpa para exterminar um povo milenar e alterar a estrutura demográfica da zona. Segundo censos do regime sírio, Afrin sempre foi considerada uma região etnicamente curda, na qual mais de 80% da população é de origem curda. Historicamente, toda a zona entre as montanhas de Zagros e Tauros é considerada como a terra dos curdos.
O Direito tem dois pesos e duas medidas para o embaixador da Turquia, que defende a invasão turca apelando ao Direito Internacional e às resoluções do Conselho de Segurança, quando a mesma Turquia está a violar as normas do Direito Internacional ao bombardear população civil e ao destruir zonas residenciais e apagar a história cultural da zona. Pelo menos 300 pessoas morreram desde o início da operação e mais de 25.000 foram forçadas a refugiar-se nas montanhas, enquanto a destruição de zonas arqueológicas como Nabi Hori e do templo de Ain Dara, construído em 1300 a.C., é levada a cabo. Nas últimas semanas surgiram os primeiros relatos do uso de napalm contra a população civil, também proibido pelo Direito Internacional. Importa também falar do facto de que desde o início da operação militar mais de 700 pessoas foram presas na Turquia por criticarem publicamente — em jornais ou redes sociais — a operação militar em Afrin.
A forma como o embaixador termina a sua crónica, ao escrever que a guerra da Turquia não é contra um grupo étnico em particular, mas sim contra os "terroristas do PKK-YPG-KCK", é prova da decadência deste regime. A hipocrisia e a propaganda devem ser denunciadas e combatidas. Termino o meu direito de resposta afirmando que a comunidade internacional e todas as pessoas que se dizem defensoras dos direitos humanos devem erguer-se em solidariedade com o povo curdo e condenar publicamente a agressão do regime turco ao povo curdo e à integridade territorial da Síria.