O Som da Neve: percurso por uma exposição e por um artista deste tempo

Um artista para o qual arte e a percepção de mundo são fenómenos inseparáveis: eis uma descrição de Michael Snow, a quem a Cultugest, em Lisboa, dedica O Som da Neve, exposição que, focada no trabalho com o som, permite alargar o conhecimento de uma obra tocada pela experiência tempo e das coisas. E que continua a ser alimentada por um apetite omnívoro.

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Em O Som da Neve, a partir de sexta-feira, há sons, sons de vozes, do corpo, de máquinas, de ritmos. E há um ciclo de filmes (de 4 de Março a 10 de Abril) Rui Gaudêncio

Em 1967, Michael Snow (Toronto, 1929) escreveu uma frase que resume a sua actividade. “As minhas pinturas são feitas por um realizador de cinema, as esculturas por um músico, os filmes por um músico, a música por um escultor e, por vezes, funciona tudo junto.” Será exagerado dizer que todas estas proposições se aplicam a O Som da Neve, que hoje inaugura, em Lisboa, na Culturgest, mas não lhe serão estranhas.

Com a curadoria de Delfim Sardo, pretende expandir, em termos públicos, o universo de uma produção que foi e continua a ser alimentada por um apetite omnívoro. Deixe-se aqui este preâmbulo biográfico: Michael Snow iniciou a sua carreira como músico jazz e fazia pintura quando mostrou Wavelenght (1967), filme incontornável na história do cinema, antes de regressar à cidade natal, a partir da qual continuou a trabalhar e a expor com a mesma atitude. Chamemo-lo artista do seu tempo, deste tempo, e do qual em Lisboa se vai poder acompanhar um ciclo de filmes (de 4 de Março a 10 de Abril) e uma selecção de trabalhos que explora um dos elementos centrais na sua arte.

Em O Som da Neve há sons, sons de vozes, do corpo, de máquinas, de ritmos. A ideia de fazer a exposição surgiu ao longo de várias conversas entre o curador e o artista que permitiriam estabelecer um campo. “Há um aspecto curioso no seu percurso”, reflecte Delfim Sardo. “Ele quando vem para Nova Iorque quer trabalhar com filme, mas chega com um passado na música. Era um músico jazz desde 1948 e nesse período havia no Canadá uma influência de um certo purismo inspirado no [crítico e produtor] Hugues Panassié. Desconfiava-se da música do Charlie Parker, de Monk”. Snow chega, nos anos 50, a acompanhar uma banda de jazz numa digressão à Europa, mas em Nova Iorque, nos anos 60, as referências musicais já são outras. “Entra pelo be bop e pela música improvisada, mais tarde pelo free-jazz, e estabelece com uma relação próxima com músicos como Paul Bley e a Carla Bley”, conta o curador. “Eles chegam a ensaiar no seu atelier em Nova Iorque. Depois aproximar-se-á de Steve Reich e de Philip Glass”.

Paralelo, o percurso nas artes visuais seguiu por outros caminhos. Em Manhattan, mostra pintura e destaca-se com a série de esculturas Walking Woman (1961-1967), sem esquecer a passagem por um estúdio de animação no Canadá, momento que lhe desperta o interesse no interior do filme enquanto objecto, na materialidade da película, no processo fílmico. “Ele quer experimentar, mas não sabe que existe uma coisa chamada cinema experimental. Há pessoas que valorizarão muito o seu trabalho, como Gene Youngblood e Jonas Mekas”. Este cineasta, foi, na companhia de Ken Jacobs, Shirley Clarke ou George Kuchar, um dos primeiros espectadores de Wavelenght e até hoje um dos seus mais famosos entusiastas. “No meio do cinema experimental, Michael Snow será efusivamente recebido”, acrescenta o curador. “Gene Youngblood diz que vai muito além do Godard, Mekas afirma que é uma nova era que se abre”.

É entre os filmes e a dimensão sonora, a que Snow é claramente sensível, que se define o mote da exposição. “O cinema leva-o a equacionar um problema que começa a sentir como evidente. O facto de ninguém falar da relação efectiva entre o som e a imagem em movimento e do modo como ela contribui para a suspensão da descrença. Esse será um dos seus campos de trabalho e é o campo desta exposição. Ela faz-se a partir da relação entre o som e a imagem em movimento e pode ir da supressão da imagem à supressão do som”.

Ironia da finitude

A porta de entrada para a exposição é a instalação That/Cela/Dat (2000) que Delfim Sardo viu pela primeira vez em Bruxelas, no Palais des Beaux-Arts, em 2000. “Trata-se de uma peça de textos, com dois monitores e um ecrã que obedece a uma regra. As palavras grandes ou pequenas, escritas em três línguas, inglês, francês e flamengo, são adaptadas às áreas dos ecrãs. Assim, a palavra ‘je’ aparece enorme, outra mais comprida surge mais pequena. Isso acrescenta uma camada muito interessante. A diferença do tamanho da imagem, das palavras, transforma completamente o sentido. Lemos de acordo com um som muito intuído, em que as imagens muito pequenas parecem gritadas e em que as imagens muito longas parecem sussurradas, sem som”. A percepção do que se ouve, na relação com o que se vê, é um aspecto que estrutura toda a exposição, deixando ao visitante interrogações sobre aquilo que é ilusório e factual, sobre a realidade que é dada pelas imagens técnicas e que os sentidos apreendem.

Noutra instalação, W in the D (1974), ouve-se, numa sala às escuras, um assobio de 22 minutos. “É o próprio artista que assobia, num improviso. Ouve-se a sua respiração, é como se fosse o próprio corpo, com a sua finitude, a assobiar”. Em contraponto, está o trabalho que introduz uma das qualidades da obra de Snow: o humor. Trata-se de #720 (Thanks to Robert Crumb), peça raramente vista e que assinala o gosto do artista pela BD underground dos EUA (assumida, aliás, na peça escultórica de arte pública The Audience, realizada para o topo do Rogers Center, em Toronto). Três projecções de slides mostram Mr Natural’s 719th Meditation, história curta de três pranchas, na qual uma personagem medita no deserto enquanto vários acontecimentos, entre os quais o nascimento e a destruição de uma metrópole, se desenrolam nas suas costas. Até que o mundo volta a ser um deserto e a personagem volta a abrir os olhos. Refira-se que os projectores estão colocados sobre caixas de bom vinho (solicitadas pelo artista) e que os visitantes se podem sentar sobre pilhas de cópias do PÚBLICO. Delfim Sardo propõe uma interpretação: “É um trabalho sobre a circularidade do tempo. Tem a ver com essa relatividade absoluta entre a meditação da personagem e a história da humanidade como se esta fosse uma borbulha no tempo. E o  vinho, com a sua data e maturação, pode ser visto aí, também, como uma borbulha muito significativa” (risos).

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Rameau’s Nephew... , 1974

Na obra de Michael Snow, o humor, por vezes desconcertante, articula-se como assuntos sérios, como a finitude dos seres humanos e o desaparecimento das coisas que eles produzem. Outro trabalho exposto é um disco em vinil que tem o título The Last LP e cuja música pode ser escutada na galeria. “Foi realizado em 1987, quando se anunciava o aparecimento dos compact discs e o declínio dos vinis. Ouvimos recolhas de etnomusicologia, mas...”, Sardo interrompe-se, antes de revelar, “são falsas. Ou seja, foi ele que compôs, interpretou e gravou as músicas”. A ironia e a decepção é evidente, mas o curador sublinha que há também um lado trágico, “uma evocação efectiva de uma finitude radical, seja cultural ou tecnológica que arrasta consigo um fim de um período” A dúvida, porém, permanece. “Não sabemos se isso fica numa zona de ironia ou numa zona mais profunda. Há quem considere que é trágica., que é uma evocação da morte”.

Para Sardo, esta ambiguidade deve ser entendida no questionamento da ficcionalidade do campo artístico e dos mecanismos fenomenológicos da produção da credibilidade do artístico. E recorda uma história contada por Michael Snow: “Ele estava em casa em de uns amigos e puseram o disco a tocar. Uma senhora adorou. No outro dia, a mesma senhora foi comprar o disco e descobriu o engodo. Ficou indignadíssima, não lhe tinham dito que era tudo mentira. Michael Snow respondeu que era tudo verdade, que aquela música era da sua autoria”.

Outra peça que leva o espectador à experiência do engano é instalação Video Fields (2005) onde o som do vento sobre a vegetação não é o que parece. “De novo, ele reequaciona a questão da diegese, deixa-nos a pensar sobre o ponto de tensão que, entre a imagem e o som, constrói a diegese”. Ou seja, o mundo da ficção.

Delfim Sardo destaca ainda duas obras: Piano Sculpture, em que a música é espacializada como escultora sonora, e Solar Breath (Northern Caryatids), pequeno filme que se descreve o efeito sonoro e visual do vento sobre uma cortina de uma janela. “Há tópicos que são recorrentes, como a janela, que na minha opinião vem de Marcel Duchamp”, comenta. “Há também a metáfora do quadro como janela. E o da composição, seja visual ou auditiva. Outra linha de trabalho é o mecanismo do engodo que pode ser deceptivo, a piscadela de olho, o jogo das palavras que são muito duchampianos. E, por fim, uma atenção fenomenológica à produção da obra de arte que é estruturante no seu trabalho na música, no filme, na fotografia, na pintura”.

Depois do modernismo

Outro traço recorrente, que se manifesta nos filmes, é a reflexão sobre os suportes, sobre o espaço físico onde as imagens se revelam, sobre as propriedades dos materiais. A afinidade com o modernismo aclara-se neste e noutros domínios. “Há, com efeito, uma ligação. A multiplicidade de suportes utilizados, o total desinteresse por uma técnica canónica. Ele tem a capacidade de encontrar soluções muito específicas, muito precisas, que lhe servem um propósito. Não há nenhuma preocupação em mergulhar dentro da história de um medium, embora ela seja familiar. Por outro lado, há um nexo com as vanguardas, se pensarmos na alusão a um certo ambiente dada, em alguns tópicos surrealista, mas não é isso que enforma”.

O curador regressa, entretanto, ao vídeo da cortina que considera concentrar alguns dos principais elementos da exposição: “a suspensão da incredulidade, essa ligação fenomenológica ao real, uma espécie de impressionismo da situação com um trabalho de som discretíssimo. Numa entrevista [ao crítico e cineasta] Bruce Elder, Michael Snow diz que não pode haver maior respeito pelo mundo do que pensar ou tentar perceber a maneira exacta como o podemos percepcionar ou representar para possa voltar a existir. É uma questão de respeito pelo mundo e é isso que lhe interesse num artista como Cezanne. Uma acuidade, uma atenção a determinada fenomenologia da percepção, um voltar da arte para a sua relação com o mundo e o contexto. É isso que lhe interessa. E ele tenta sempre produzir essa relação com o mundo e contexto”.

Embora sem a mesma circulação dos seus pares dos EUA, recebido como um artista dos artistas, Michael Snow continua a exercer uma influência importante e decisiva nos universos mais amplos da criação artística. “Sem dúvida. Ele vem das artes visuais, mas com uma atenção ao debate sobre a especificidade do medium cinematográfico, pois está exatamente à procura da construção da diegese a partir da relação entre som e imagem. Esse juntar de duas circunstâncias distintas tem um paralelismo também na maneira como usa o som. Por um lado, é músico de jazz, de concerto, vem de uma tradição especifica da música, mas faz peças sonoras que não pertencem ao universo da produção musical, trabalha o som a partir das artes visuais. E o que acho fantástico é que à medida em que o seu trabalho foi crescendo, estas dicotomias foram-se cruzando. E isso está muito patente, com uma grande frescura, na exposição. E o seu trabalho não se esgota aqui”.

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