Michael Snow representa o mundo para que ele possa voltar a existir
Personalidade marcante da arte contemporânea, viveu a segunda metade do século XX a experimentar as possibilidades que as linguagens da arte lhe proporcionavam. Movido por uma curiosidade infinita e um singelo intuito: a partir do mundo, oferecer coisas novas aos espectadores. É o que nos pode acontecer em O Som da Neve, exposição na Culturgest, Lisboa.
Do alto dos seus 89 anos, Michael Snow (Toronto, 1929) conversa com elegância e simpatia. Sorri enquanto rememora e fala. Gosta de contar histórias, e histórias não lhe faltam. Ao longo da segunda metade do século XX encarnou, como poucos, a condição do artista moderno. Natural do Canadá, onde ainda vive, foi músico (e ainda é) de jazz, formou-se em artes e chegou a trabalhar em cinema de animação com George Dunning, realizador de Yellow Submarine, experiência que se revelaria decisiva. No início dos anos 60, em Nova Iorque, onde se instalou para se afirmar como artista, provocou, com um conjunto de filmes, uma pequena e intensa tempestade na cena local. Queria interrogar a qualidade do médium, por a nu a sua materialidade, discutir o seu artíficio a partir de dentro. As relações dos espectadores foram extremadas, opostas. Nas salas, houve quem saísse, enfurecido e em protesto, e quem celebrasse, como Andy Warhol ou Gerry Malanga e, especialmente, Jonas Mekas, Gene Youngblood ou Manny Farber. Wavelength (1967), com 45 minutos, é o seu filme mais aclamado e comentado, marcando indelevelmente a sua carreira.
Começa com um zoom sobre o estúdio do artista em Nova Iorque e termina com a imagem de uma fotografia na parede. Vêem-se dois homens e uma mulher a entrar no espaço, sugere-se um enredo. E, no entanto, instantes depois aquelas personagens saem e a promessa da narrativa, de uma história, vai declinando. Ao fim de alguns minutos, a mulher regressa à sala na companhia de outra mulher e liga a rádio. Ouvimos Strawberry Fields Forever, dos Beatles e um verso atravessa a imagem: “Living is easy with eyes closed, misunderstand all you see.” Nesse momento, o cariz realista desvanece-se sob os efeitos na fita de intervenções, filtros, sobreposições. A superfície muda de cor várias vezes, o filme revela o negativo e um som electrónico e contínuo vai aumentando, paralelo ao zoom. Ao fim de mais alguns minutos, outro homem [Hollis Frampton, cineasta e amigo de Snow], entra em cena, antes de cair inanimado, mas a câmara permanece distante, indiferente ao acontecimento. Logo a seguir, chega outra mulher que faz uma chamada telefónica e sai. Entretanto, o zoom aponta, sob cortes e saltos na fita, na direcção da superfície bidimensional da fotografia e fixa-se naquilo que ela representa: imagens de ondas do mar.
A visão, a relação entre o som e a imagem, a reflexão sobre a ilusão diegética e a passagem do tempo, a concentração na mera experiência do filme serão aspectos comentados e explorados por teóricos e críticos, tornando Wavelenght um filme de culto, que continua a ser discutido e redescoberto.
Seguir-se-ão outras obras fílmicas — Back and Forth (1968-69), La Région Centrale (1971) ou Rameau’s Nephew (1974) que internacionalizam o trabalho de Snow e afirmam uma influência que não se esgota no cinema experimental, expandindo-se a outros campos. Cineastas como Chantal Akerman e James Benning assumem a "dívida" artística, particularmente a belga; o seu La Chambre (1972) foi rodado sob a inspiração de La Région Centrale, filme em que uma câmara, instalada numa máquina concebida pelo artista, sonda o espaço e a paisagem do norte do Québec em movimentos impossíveis ao corpo humano; portando não-humanos, maquinais, robóticos.
Em 1971, quando regressa a Toronto, Snow já é o autor de uma obra em que se divisam modos de fazer, abordagens e sensibilidades que acompanharão até hoje: o gosto pela música, a vontade de explorar as relações entre o som e a imagem, a interrogação metafísica sobre o tempo, a ilusão e o factual, a atenção aos fenómenos do mundo. E acima de tudo, a curiosidade em experimentar com vários mediums e materiais. Para ver o que ainda se pode fazer e mostrar com eles. Uma curiosidade infinitiva à qual a Culturgest de Lisboa, consagra O Som da Neve, uma exposição que focada nos trabalhos com o som e, em diálogo com um ciclo de filmes, oferece o retrato de um artista numa janela para uma obra que continua a expandir-se.
Esta é uma exposição que se privilegiam os seus trabalhos com o som.
Sim, em todos usei o som, com a excepção de That/Cela/Dat, peça de texto, em três línguas. Portanto, mesmo não tendo som, há um diálogo entre o espectador e a imagem. Noutras obras, o som é mais forte, como na peça Piano Scuplture em que ouvimos quatros pianos a tocarem músicas diferentes ao mesmo tempo. O som é simultâneo, mas em cada uma das peças musicais vemos os mesmos elementos técnicos da actuação, os mesmos movimentos das mãos. Por isso, tem o nome de Piano Sculpture. Apesar de estarem a tocar piano, aquelas mãos remetem para os gestos de martelar, de dobrar de, serrar. Gesto que fazemos quando estamos a construir um objecto....
Trabalhou com vários suportes, entre os quais a música...
Desde os anos 40 que toquei com bandas, gravei músicas. E aconteceu uma coisa espantosa em Janeiro. A Winnipeg Symphony Orchestra encomendou-me uma peça musical para um festival. Foi uma grande surpresa, nunca tinha composto para uma orquestra. Foi maravilhoso, correu muito bem. Para além de usar o som, envolvi-me em muitos contextos musicais.
Na exposição, há coisas muito diferentes. Há, por exemplo, Video Fields em que o espectador se encontra cercado pelos efeitos do vento sobre a vegetação. São fenómenos atmosféricos que registei nos Províncias Marítimas, no Canadá, onde construí uma cabana.
Solar Breath (Northern Caryatids) é outro trabalho em que uso o vento. Não se tratou de uma tempestade, mas de um efeito incrível que acontece uma vez por ano. Já tinha tentado filmar este fenómeno em filme, sem sucesso, mas com a camara vídeo, e alguma sorte, consegui uma excelente performance do vento nas cortinas...
Nesse movimento, as cores, as superfícies da cortina alteram-se. É possível estabelecer um paralelismo com Wavelenght, um dos seus filmes mais antigos, no qual também se vêem alterações cromáticas...?
Distingo entre o trabalho que faço para uma sala de cinema, um auditório, e um trabalho que faço para uma galeria. Ainda há uma grande diferença. Numa sala, todos antecipam o que vão ver, sabem que têm que dedicar tempo, concentração. Podem não gostar e, nesse caso, sair, mas ainda assim é um acordo completamente diferente daquele que existe entre uma exposição e o espectador. Por outro lado, em Videofields a imagem muda por causa do vento. No caso de Wavelenght, a acção é da câmara. O mesmo acontece em Back and Forth, em que desloco a câmara para frente e para trás e para cima e para baixo e em diferentes velocidades
Nos filmes, a presença da camara é mais evidente, mais presente.
Absolutamente. Estava a lembrar-me de La Région centrale (1971), com três horas, e que tem esse movimento circular e elíptico da câmara, com diferentes velocidades. Nesse trabalho, o movimento é mais importante que o som. Video Fields também lida com o movimento...
Mas é um movimento feito pela natureza...
Sim, é uma boa forma de dizer as coisas. Um movimento feito pela natureza.
Um trabalho como The Last LP, presente nesta exposição, parece, por outro lado, remeter para coisa feitas pela humanidade. Música do mundo que o espectador pode ouvir nos auscultadores enquanto consulta o respectivo disco em vinil...
Parece uma edição de world music da Unesco, com notas de musicologia. E as gravações parecem ter muitas origens, África, China. Na verdade, no interior, encontra-se uma descrição dos métodos que utilizei. As músicas foram tocadas por mim, separadamente. Criei os sons de percussão e o coro do que parecem ser jovens africanas. Fiz as vozes e depois gravei. São baseadas, infelizmente, no meu conhecimento insuficiente destas músicas. Mas constitui uma homenagem, não há qualquer intenção de satirizar, embora por vezes possa ser muito divertido.
Há quem veja um sentido trágico nesta obra...
Concordo. Há muitas culturas que estão a desparecer ou transformar-se completamente. Fiz este trabalho em honra dessas culturas. Mas, usando a gravação, também gostava que as pessoas pudessem ouvir este disco como se fosse música nova. É um tributo e, ao mesmo tempo, uma tentativa de fazer algo novo na tradição da música gravada. Vai ser reeditado em breve.
Há, contudo, em The Last LP um engodo, um jogo com que o qual atrai ou envolve o espectador. As coisas não são o que parecem. E a propósito desta abordagem, que se poderia considerar duchampiana, pergunto-lhe se poderíamos vê-lo como artista modernista.
Não sei, é difícil encontrar uma definição consensual de modernismo, mas continuo interessado em usar diferentes mediums para descobrir os efeitos eles me proporcionam. Não procuro subvertê-los, mas descobrir o que os torna especiais. Procuro que as minhas experiências ofereçam algo de novo ao espectador a partir das especificidades de cada medium. Isso não significa que quebrar as regras seja sempre uma coisa boa. Trata-se apenas de ver o que é possível fazer.
Foi com essa atitude que abordou no filme nos anos 60.
Sim e aproveito para lhe contar uma história que já é conhecida. Depois de me formar em Artes em Toronto, passei um ano e meio na Europa a tocar música e, ocasionalmente, a desenhar e a pintar. Quando voltei ao Canadá, recebi um telefonema de um homem. Dizia que queria falar comigo. Este episódio mudou a minha vida. Tratava-se de George Dunning, que na altura era director de uma companhia cinematográfica. Ele tinha visto alguns dos meus trabalhos e supôs que eu estaria interessado em trabalhar no cinema. Ora, tive que lhe dizer que não tinha interesse especial na área, mas ele gostou tanto dos meus desenhos que me ofereceu trabalho na animação, o que foi maravilhoso. Eu não sabia como me afirmar como artista, continuava a dar concertos, e arranjar um emprego como aquele foi algo fantástico. E assim aprendi a trabalhar com o filme.
Muitas pessoas vão trabalhar em filme porque viram muitos filmes, muito cinema. Foi o que aconteceu comigo em relação à música e à pintura, mas não com o filme. Aprendi a trabalhar a partir do interior, a trabalhar uma imagem atrás da outra. E fui um aluno muito feliz. Chegámos a trabalhar em publicidade, mas a empresa acabou por falir e, uns anos depois, George Dunning foi para Inglaterra onde veio a realizar Yellow Submarine, com os Beatles. Ele tinha grande apreço pela animação e acho que Yellow Submarine é um filme muito bom.
Depois, instalou-se em Nova Iorque...
Fui na companhia da Joyce Wieland que era uma excelente cineasta. No início, não conhecíamos assim tão bem a cena do cinema underground, mas ao fim de algum tempo começámos a mostrar os nossos filmes e pudemos conhecer gente como Ken Jacobs, Stan Brakhage, Jonas Mekas. For um momento muito importante acompanhar as coisas que estavam a ser feitas no universo do filme experimental em Nova Iorque
O seu contributo para o cinema experimental corresponde também a um contributo para a história do cinema...
Bem, é uma coisa maravilhosa para mim pensar que os filmes que fiz há 50 anos continuam a ser vistos e comentados. Recordo-me, há três anos, em Paris, de uma conferência de três dias dedicada ao Le region Centrale, em Paris. Claro que desconheço qual vai ser o futuro das minha obras, mas, por enquanto, posso dizer que fui muito sortudo, embora o trabalho também seja bom (risos). Mas o facto de ser visto e comentado é maravilhoso. E há exposições como esta, em que os curadores reúnem obras que consideram dignas de ser pensadas. Isso deixa-me muito contente.
Continua, entretanto, a pensar e a fazer obras novas.
Sim, claro. Ando a preparar um grande livro com fotografias que a minha família reuniu. À volta de seiscentas. Antes de iniciar este trabalho, estava um pouco preocupado, pois havia coisas que eu não poderia mostrar. Afinal, a maioria pertencia à minha mãe. Claro que têm um significado diferentes para quem tem uma relação com elas. Mas também têm coisas que podem ser partilhadas. Foram feitas numa cidade do norte do Québec onde eu e as minhas irmãs passávamos os verões. São fotografias que considero muito boas e em algumas acontecem coisas que são extraordinárias...
Na exposição, também se apropria de outro objecto. Uma banda desenhada do Robert Crumb que podemos ver em “#720 (Thanks to Robert Crumb).
Quando fui para Nova Iorque descobri a BD underground de que fiquei a gostar muito. Essa peça é composta por três projectores de slides, sendo que cada mostra apenas uma prancha. A banda desenhada mostra uma personagem, Mr. Natural, a meditar ao longo dos anos enquanto o mundo se transforma. Decidi transferi-la para a projecção dos slides. Eles mudam, mas cada projecção mostra sempre a mesma prancha. Ouve-se o som do projector, o estalido, mas tudo permanece na mesma, como na meditação.
Um trabalho sobre o tempo, como o das fotografias da sua família, Wavelenght ou The Last LP.
Completamente. Aqui, as pessoas vão poder sentar-se sobre uma pilha de jornais do dia da inauguração e os projectores vão estar colocados sobre caixas de vinho, o que é outra referência ao tempo.
Tinha conhecimento que o jornal escolhido foi PÚBLICO e que na data da inauguração esta entrevista será publicada no Ípsilon que é, exactamente, o suplemento cultural do Público?
Não! Mas nesse caso experiência não podia ser mais perfeita (risos).