“O que estamos a ver na África do Sul é a democracia a funcionar com muita força”
No dia em que aterrou em Lisboa para receber um Doutoramento Honoris Causa, a África do Sul vivia uma situação de impasse político. Um dos pais da Constituição sul-africana pós-apartheid, juiz, exilado político, activista, Sachs conversou com o P2 no meio de um turbilhão de acontecimentos no seu país. Está optimista sobre o cumprimento da Lei Fundamental, mas pessimista em relação à situação social.
Albert Sachs, tratado carinhosamente por “Albie”, nos media e entre os companheiros de luta anti-apartheid ou de profissão, parece ter adivinhado a grande crise política a que assistimos durante toda a semana na África do Sul. Foi no meio desse furacão — quando o futuro da presidência era uma incógnita —, que conversou com o P2, sempre interrompido por telefonemas e solicitações para depoimentos vindos de todo o mundo. Afinal, ele é o redactor (um dos redactores?) e o mais conhecido defensor da Constituição sul-africana, esboçada quando Nelson Mandela ainda estava na prisão. “O Presidente Jacob Zuma vai resignar ou não? Quem lhe sucede? É possível o impeachment? Ciryl Ramaphosa vai ser o novo Presidente?”, eram as perguntas que lhe chegavam por recados escritos, telefonemas e videochamadas pelo Skype.
Albie Sachs, o primeiro juiz do Tribunal Constitucional da África do Sul, nomeado por Mandela, nunca tomou posição contra ou a favor de Zuma, seu antigo companheiro na luta contra o apartheid, em Moçambique. Foi aqui que há 30 anos perdeu o braço direito e a visão de um olho, num ataque à bomba durante uma manifestação, em Maputo. Uma condição física que acabou por ter o efeito de reforçar os seus ideais, a par de prisões e 25 anos de exílio: “Isso nem foi o pior”, contou ao P2. Foi exactamente pelo seu exemplo de luta pela democracia e pelos direitos humanos que recebeu o Doutoramento Honoris Causa na última quarta-feira, atribuído pela Faculdade de Direito da Universidade NOVA de Lisboa (FDUNL-FSCH-Nova). “Penso que já tenho 22 doutoramentos”, conta comovido, enquanto pergunta se deve ou não levar o seu chapéu branco para a cerimónia. Tem razões para estar vaidoso. Tudo o que previu na “sua” Constituição, incluindo as normas contra a corrupção e as tentativas de abuso do poder, parece-lhe estar a ser cumprido. Na sua qualidade de magistrado aposentado, evitou fazer juízos, mas acompanhou com emotividade a situação política do seu país.
Este juiz reformado (mas nada quieto) tinha apenas uma preocupação: saber se a Lei Fundamental do seu país estava a ser seguida. Independentemente do desfecho, isso era o mais importante. “A democracia está funcionar em força!”, disse muitas vezes a quem o interpelava de fora, por vários meios. “Mais do que confiante, estou orgulhoso na Constituição que escrevi”, confessou ao P2, com entusiasmo. O anúncio da decisão de Jacob Zuma se demitir do cargo acabaria por acontecer, poucas horas depois desta entrevista. A Constituição cumpria-se.
O seu país vive neste momento uma enorme crise política. O que é que pensa que vai acontecer? O Presidente vai demitir-se?
Isso não sei, não sou um especialista nisso. Mas posso falar-lhe sobre as questões constitucionais em causa. Quando esboçámos a Constituição, uma das perguntas era se devíamos ter um sistema presidencial ou algo como o sistema parlamentar inglês. Estou a falar-lhe de 1990, Nelson Mandela ainda estava preso, e estávamos a planear o futuro. Algumas pessoas defendiam que queriam um presidente forte na África do Sul. Mandela era muito popular e a cultura africana está habituada a ter um líder proeminente, mas ele rejeitou essa solução. Queria que fosse o Parlamento a ter o poder executivo e que escolhesse o Presidente. Isso é mais como o sistema inglês. Nós não temos um presidente directamente eleito.
Então, mas o que se passou com Jacob Zuma não é um caso de destituição?
Não. Isso é quando existe um presidente eleito directamente e as grandes maiorias podem utilizar esse recurso, como acontece nos EUA. O sistema que criámos definiu que, depois das eleições, o primeiro encontro do Parlamento é para escolher o Presidente. Tem de ser logo nesse primeiro momento. Por isso, ele é escolhido pelos membros do Parlamento e é a ele que o Presidente tem de responder. O Parlamento tem autoridade para votar por maioria simples (50% mais um) uma moção de desconfiança em relação ao Presidente. [Se a moção passar] não é só ele que tem de resignar, mas também todo o cabinet [o Governo]. Esta é a posição constitucional. Desde as primeiras eleições, em 1994, sempre houve uma larga maioria de um partido no Parlamento, mesmo existindo a representação proporcional. Por isso, o ANC tem agora mais de 240 membros no Parlamento. As próximas eleições gerais são a 29 de Janeiro do próximo ano. Quinze meses antes das eleições, há sempre um congresso do ANC para escolher o nome do futuro Presidente. A Constituição dá no máximo dois mandatos ao Presidente, cada um de cinco anos. Zuma [há nove anos no poder] teria de sair a seguir às eleições. Nesse congresso de Dezembro do ano passado, Jacob Zuma apresentou a sua mulher como candidata à sua sucessão como líder do partido.
Mas isso não parece muito bem...
Não, não se tratava de um caso de nepotismo. Ela é uma política forte e independente. O problema não era ser mulher dele, mas o receio de poder querer protegê-lo. Mas ela não lhe sucedeu...
Não era sobretudo uma questão de bom senso?
Eu não digo isso. Algumas pessoas pensaram isso. Ela teve muito apoio, mas o escolhido acabou por ser Ciryl Ramaphosa. Escolheram o novo líder e também elegeram a National Executive Comitée (NEC), o órgão regulador do ANC. Foi a NEC que decidiu no passado domingo convidar Zuma a resignar. Foi-lhe dito: “Queremos que saia agora.” Queriam que ele saísse depressa, mas sem o humilhar, tendo em conta que foi um combatente anti-apartheid e lutou pela democracia. Mas ele estava a tornar-se muito impopular em várias partes do país... A maioria dos líderes do ANC sabe que, no caso de ele ficar, perdem as próximas eleições em Janeiro do próximo ano. Ele influencia negativamente o voto.
Queriam uma demissão tranquila, certo?
Sim, queriam isso, mas sem o humilhar. Ele passou muitos anos na prisão... certo é que, quanto mais tempo ficasse, pior seria. Era a única forma de restabelecer a popularidade do ANC.
E como é que o ANC pode agora inverter a situação?
Eles pediram-lhe para sair. Num primeiro momento, o argumento de Zuma era que queria que fosse a NEC (National Executive Comitee) a decidir. Este órgão decidiu a favor da sua saída e o mais depressa possível. Depois, ele disse que queria demitir-se, mas precisava de mais uns meses. Mas o ANC ameaçou votar a favor de uma moção de desconfiança, na quinta-feira. Se ele resignar [o que veio a acontecer depois da gravação desta entrevista], automaticamente sucede-lhe Ramaphosa, o líder do ANC. É um processo muito simples. Leva 30 dias a torná-lo o novo Presidente. A Constituição prevê, no entanto, que caso um Presidente resigne não perde a honorabilidade, não perde certos privilégios, como a reforma, segurança e transporte, para o resto da vida.
E fica também com imunidade legal?
Não, isso não. Se não quiser isso, existe a última opção do impeachment, que é um longo processo, com uma carga pesada, por comportamento desonesto. Aí, ele perde tudo. É a desgraça. Por isso, a moção de desconfiança é dura, mas é mais tranquila.
E as acusações criminais ficam de fora?
Isso é um assunto completamente à parte. É com os tribunais.
O que é melhor para a África do Sul?
É a vitória das instituições democráticas. As pessoas costumavam dizer que a democracia não era possível na África do Sul, que as pessoas só queriam um chefe ou um rei. O que estamos a ver é a democracia a funcionar com muita força. Primeiro, o Presidente está confinado a dois mandatos e não três, como noutros países. Depois, as eleições são justas e livres e temos também uma comissão independente do Governo para supervisionar as eleições. Está tudo na Constituição. Nós chamamos-lhe o “Chapter 9”. Está tudo previsto lá. E existe também a figura de ombusdman, que é muito mais forte do que o provedor de Justiça em Portugal. Está separado da Justiça e do Governo, é um órgão totalmente independente. Foi esse órgão que denunciou que o Presidente Zuma estava a gastar dinheiro que dizia ser para obras na sua casa, para reforçar a sua segurança, mas não tinha nada que ver com isso... Ele dizia que ia devolver o dinheiro. Mas o dinheiro era para outras coisas.
O que pensa que vai acontecer com Jacob Zuma?
Enquanto juiz reformado, não posso estar a dar opiniões próprias ou que me ponham em causa, mas apenas referir-me ao que os outros estão a dizer. [Há uma semana] ouvi a declaração do Presidente Zuma na televisão. Conheço-o desde os tempos de luta em Moçambique e achei que estava muito vigoroso, a defender-se muito. Conheço-o desde a luta anti-apartheid, nos anos [19]70, é já nessa altura ele demorava muito tempo a concluir os seus pontos de vista. Ele disse: “Eu não estou a desafiar o ANC, mas estou em desacordo com ele.” A verdade é que o que o ANC está neste momento a anunciar que se ele não resigna, terá de enfrentar uma moção de desconfiança no Parlamento. A minha previsão é que quando a sessão começar, entre os 400 deputados, talvez uns 20 ou 30 não apareçam porque “estão doentes”, outros tantos deverão abster-se, mas a maioria vai votar no sentido de que ele deixe o cargo. [A moção acabou por não ser apresentada, depois do anúncio da saída de Zuma.]
Está confiante nas instituições democráticas e nas soluções da Constituição?
Sim, estou optimista. Mas mais do que isso, estou orgulhoso porque quando criámos a Constituição, quando regressei do exílio… [faz uma pausa] 24 anos de exílio… dei uma aula na Universidade da Cidade do Cabo, em 1991, e nessa altura disse que as constituições são baseadas na perfectibilidade e na corruptibilidade. Nós queríamos uma constituição contra nós próprios, no caso de as coisas correrem mal.
Como é que se preparou para ajudar a criar a Constituição?
Baseei-me na minha experiência em várias partes do mundo, na minha luta pela liberdade, vendo problemas em várias organizações, vivendo em vários países africanos onde as pessoas lutavam pela liberdade de uma forma maravilhosa... Mas às vezes, uns tempos depois, via que as mesmas pessoas que tinham combatido pela liberdade se tornavam muito autoritárias. Estavam apenas a olhar por si próprias...
Disse que a “uma Constituição devia ser feita para evitar as tentações de poder”. Mas há alguma Constituição que salve os países disso?
A Constituição, em si, não é uma garantia porque pode ser menosprezada. E se as instituições constitucionais não funcionam, se o Parlamento ou o Governo são corruptos, a Constituição esmorece, definha. Por isso, são precisas três coisas: a Constituição (o texto), as instituições da Constituição a funcionarem bem e, muito importante, são necessárias eleições. Mas tudo isto precisa daquilo a que chamo “uma cultura do constitucionalismo”. Isso significa dar às pessoas o poder de dizerem o que pensam, uma sociedade civil e uma imprensa livre para proteger uma democracia constitucional. O que está a acontecer na África do Sul? Estão todos a cumprir o seu papel. Esteja orgulhosa dos seus colegas de lá, porque estão a fazer jornalismo de investigação, um jornalismo inteligente. Há até jornalistas a partilharem informações. Alguma vez viu jornalistas a fazer isso? É muito importante.
Faz parte da natureza humana abusar do poder quando o tem nas mãos durante muito tempo?
Há um grande perigo quando as pessoas ficam nas instituições demasiado tempo, mas há duas maneiras de responder a isso: uma é a regularidade das eleições; outra é a alternância da liderança. O que estava a acontecer dentro do ANC era uma grande guerra de valores, de integridade, honestidade e renovação.
E a transparência?
Ela está prevista na Constituição, através daquilo a que chamamos “informações certas”. Se se quiser o apoio dos eleitores, tem de existir essa transparência.
A opinião pública parece ter hoje mais voz e poder devido ao aparecimento das redes sociais. Isso reflecte-se na sociedade sul-africana e no poder?
As redes sociais são bem-vindas. Essa abertura é uma coisa boa. As pessoas têm direito a ser informadas e de ter opinião. O que tem existido na África do Sul, são sobretudo problemas de racismo. A violência das palavras pode ser grande e distrair as pessoas de outras coisas importantes. Isso é preciso reprimir, porque o país pode explodir.
Acredita que possa haver, nesta altura, uma revolta popular contra o poder político?
Se alguma coisa acontecesse agora, seria à família que está agora a ser acusada de corrupção, a família Gupta [ligada ao Presidente Jacob Zuma e alvo de buscas na passada quarta-feira], que perdeu toda a imunidade que podem ter tido até à busca. O procurador disse que tinha fortes indícios que queriam infiltrar-se nas decisões governamentais. Toda a gente sabia quem é que podia ser acusado... O que dizem é que essa influência [a família Gupta] existiu.
Há a suspeita de uma ligação entre o Presidente e essa família, acusada de gastar dinheiros públicos para fins indevidos…
Sim. É uma situação a que chamamos “capture state”, ou como se diz em português “captura de Estado”.
Para além da corrupção, a África do Sul vive também outros problemas sociais…
Há muitos e grandes. O grande desafio do novo Presidente é saber como articular a expansão económica, a divisão das terras e a redistribuição de alimentos. É preciso conjugar isto. Estou a usar um termo português. É preciso integrar essas forças.
O ano de 2018 vai ter datas importantes: 30 anos passados sobre a libertação de Nelson Mandela e o centenário do seu nascimento. O que é que mudou para melhor? E o que falhou?
[Pensativo] Na África do Sul...? No mundo...? A África do Sul era uma história maravilhosa e está muito associada a Nelson Mandela. Ele não a criou, ele estava lá. Quem criou o país foi muita gente durante muito tempo. Ele foi a cara e a voz. Ele foi notável. A Comissão da Reconciliação e da Verdade (criada para investigar e divulgar os actos criminosos contra a população segregada, entre 1960 e 1994) foi notável!
As pessoas lutaram pela ascensão dos negros ao poder e a sociedade não se desintegrou. Mas depois a história começou a ficar feia, horrorosa... Ainda há muito racismo, o desemprego é pesado, mas a corrupção é o pior. Porque demora muito tempo a trazer de volta a mudança. A coisa mais positiva que aconteceu nestas décadas foi a melhoria do bem-estar social para uma boa parte da população. Um quarto da população vive em condições que não são ideais, embora a electricidade chegue hoje a 90% da população e a água também. Isso são mudanças importantes... Se calhar, houve uma luta como resposta contra as coisas más que aconteceram. Mas temos uma sociedade forte, independente e, sobretudo, pessoas que acreditam na bondade, na justiça. Temos uma boa Constituição, sabíamos que tínhamos a corrupção dentro de nós. Uma vez perguntaram-me: “Albie, perdeste um braço, um olho, estiveste preso, lutaste tanto. É este o país por que lutaste tanto?” E eu respondi: “Sim. É o país por que lutei, mas não é a sociedade que quis.” O país é o “povo”. Sinto alegria porque existe uma democracia que funciona.