“Só queremos descer esta avenida, que é onde está o nosso povo”

Pela primeira vez, a marcha do Alto do Pina pode não sair no Santo António. No meio da troca de argumentos entre os clubes e a EGEAC, há pessoas — os marchantes — que sofrem com o impasse.

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Miguel Manso
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Entrar no Ginásio do Alto do Pina é dar de caras com um pedaço respeitável da História recente de Lisboa. São tantas as taças, troféus, fotografias, desenhos e cachecóis que, mesmo numa noite gelada de Fevereiro, é como se fosse Junho e estivéssemos a ver a marcha descer a Avenida. É logo na sala de entrada, presidida por uma mesa de snooker, que a centenária colectividade exibe tudo quanto se relaciona com a Marcha do Alto do Pina, tal é o orgulho. Numa sala mais resguardada, mas não menos digna, estão as muitas taças e objectos das outras actividades e modalidades.

A marcha é a força maior do clube. “Conheces alguma colectividade capaz de reunir tanta juventude?”, comenta Marco Campos, actual presidente do Ginásio, com a sala cheia de gente. Na terça-feira à noite, os marchantes apareceram em peso para saber novidades. Pela primeira vez em mais de 80 anos, o Alto do Pina pode não ter marcha a desfilar no Santo António, devido a uma alteração ao regulamento das marchas. Ou melhor, devido a uma divergência entre as marchas e a EGEAC (empresa municipal que organiza as Festas de Lisboa) sobre quando essa alteração entra em vigor.

Nesse dia de manhã, Marco estivera na assembleia municipal em representação das 328 pessoas que assinaram uma petição em defesa da marcha do bairro. A acompanhá-lo esteve Pedro de Jesus, antigo presidente do Ginásio, que lembrou aos deputados que a colectividade está numa das zonas mais desfavorecidas de Lisboa. “A maior parte das pessoas tem problemas durante o ano. O conforto e o carinho que o clube e a junta dão a estas pessoas são fundamentais para que se integrem na sociedade”, disse. Não haver marcha “é afastá-las completamente do processo de participação na sociedade”.

Na boca dos marchantes há palavras recorrentes: “orgulho” no bairro, o “bicho” que ataca todos os anos por esta altura, a “injustiça” se não houver marcha este ano. Para muitos, que sempre viveram entre a Praça Paiva Couceiro e a rotunda das Olaias, ou que nasceram nas barracas da antiga Curraleira, unir o bairro é tão ou mais importante do que descer a Avenida da Liberdade na véspera de Santo António. “Só queremos descer esta avenida, que é onde está o nosso povo”, diz Sara Valente, marchante há sete anos, sobre a Rua Barão de Sabrosa onde o Ginásio tem sede. “É a alegria das pessoas. É uma alegria descer a rua e ver pessoas que não vemos o ano inteiro”, nota Jéssica, que marcha desde 2008.

Diferentes leituras

Apesar de ser veterano nestas andanças, o Alto do Pina só conseguiu a primeira vitória no concurso das marchas em 2011. Seguiu-se a dobradinha, no ano seguinte. Em 2015, nova vitória. Em 2016, top três. No ano passado, as coisas correram mal. “A gente não esteve muito bem, mas também não tínhamos marcha para um 17º”, indigna-se Nádia Gomes, antiga marchante. Foi nessa posição que ficaram, com os mesmos pontos que Belém. Benfica e Santa Engrácia ficaram abaixo, no 19º e 20º lugares.

Desde 2010 que as duas marchas com pior pontuação têm de sujeitar-se a um sorteio, em que concorrem com marchas que não participaram nesse ano, para definir quais desfilam no ano seguinte. Está definido que só podem participar 20 marchas e há pelo menos 26 colectividades interessadas, pelo que este sorteio foi a forma que se arranjou de não melindrar ninguém.

Em 2017 o regulamento mudou: em vez das duas últimas, passam a ser as três últimas a ter de ir a sorteio. Alto do Pina e Belém, empatadas, foram a um pré-sorteio, que determinou a salvação dos belenenses. No sorteio definitivo ficaram excluídas precisamente as marchas do fundo da tabela de 2017: Alto do Pina, Benfica e Santa Engrácia.

O problema, dizem os responsáveis do Ginásio, é que ninguém sabia que as mudanças ao regulamento teriam efeito já este ano. No fundo, o que os opõe à EGEAC é uma diferença de interpretação do último artigo do documento: “As presentes condições revogam todas as anteriores e aplicam-se a partir do concurso de 2018, inclusive.” Ou seja, para o Alto do Pina e outras marchas, as últimas três marchas deste ano é que teriam de ir a sorteio para definir o desfile de 2019. A EGEAC, no entanto, lê o artigo de outra forma e usou as classificações de 2017 para montar o sorteio de 2018.

Confuso?

Joana Gomes Cardoso, presidente da EGEAC, disse na assembleia municipal ter sido apanhada de surpresa pela contestação entretanto surgida, que envolve não só o Alto do Pina como outras 18 marchas. Publicado no boletim municipal em Fevereiro de 2017, o regulamento só veio a ser contestado “algures entre Setembro e Outubro”, disse a responsável – precisamente quando as marchas se aperceberam qual era a intenção da EGEAC. “Nós pusemos à consideração das marchas: se queriam o novo regulamento ou se queriam manter, ainda este ano, o anterior. Não houve consenso”, afirmou ainda Joana Gomes Cardoso.

Para dirimir a contenda, um grupo de 19 marchas propôs à EGEAC que este ano, excepcionalmente, entrassem no concurso as três marchas excluídas no sorteio. Joana Gomes Cardoso disse aos deputados que há “três cenários” possíveis: aplicar o regulamento anterior, aplicar o novo ou “então há o compromisso de ano zero (uma norma transitória) e todas as marchas participam”. Todas, leia-se, 26. A reunião com os deputados prosseguiu com uma discussão sobre o crescimento de custos que tal decisão acarretaria. E a presidente da EGEAC disse várias vezes que é preciso fazer uma “reflexão de que será aberto um precedente que pode acabar com a competição”.

"Como é que explicamos isto às pessoas?"

Enquanto nos gabinetes se discutem soluções, no Ginásio cresce a ansiedade. Cada dia que passa é um dia a menos para preparar a marcha, caso o Alto do Pina venha a ser reintegrado. E se não for, já há contas para pagar. “Em Setembro já se contratualizam coisas com alguns prestadores de serviços”, explica Pedro de Jesus.

Para os marchantes, a indefinição pesa. “Não dá para explicar o que uma pessoa sente. Nesta altura já andávamos a pensar no projecto, nas inscrições. Agora estamos num impasse”, lamenta Vera Silva, há 15 anos nestas lides. “Eu ando há três meses a dormir mal, a comer mal”, diz Marco Campos, que além de presidente do Ginásio também marcha desde 1989. Ele e grande parte da família. “Tenho aí um pequenino que o primeiro sítio aonde ele foi, depois de ter saído da maternidade, foi aqui a colectividade.”

“Fomos apanhados todos de surpresa”, diz Gonçalo, outro marchante. “Aqui já se falou de tudo. Mas queremos resolver isto da melhor maneira possível. Vivemos muito isto. Quando acabam os ensaios e as marchas, fica um vazio. Vimos aqui ao clube, mas o Manel não aparece, o Joaquim não aparece, a Maria também não”, relata. “As pessoas que estão de fora não percebem o quanto isto é importante”, diz Carolina, de 17 anos, que tem de aturar os comentários dos colegas na escola: “Ai que ridículo, que horror, vestir aquela roupa”. Ela não se importa. “Às vezes convidam-nos para um jantar ou temos coisas para fazer e não temos problema em dizer ‘não, vou para a marcha’”.

Nádia Gomes não se arrepende de todas as horas que a marcha exige. "Vimos do trabalho, temos filhos, é mesmo por amor à camisola. A gente passa mais tempo com os marchantes do que com a própria família", diz. Ruben Pessoa teve de meter férias no ano passado. "Fui para o pavilhão [Altice Arena, onde é o primeiro desfile] de directa, estivemos a acabar os fatos e os arcos nessa noite."

Na Barão de Sabrosa, o Ginásio é dos poucos sítios onde o silêncio não domina as noites. Também isso pode estar quase a mudar. Até ao fim do Verão a colectividade tem de sair das instalações, que não lhe pertencem. O ideal, para Marco Campos, seria ficar na mesma rua. A direcção do clube, a Junta de Freguesia da Penha de França e a Câmara Municipal de Lisboa têm andado à procura de soluções, para já ainda sem sucesso. Uma das vertentes que o Ginásio tinha era um serviço de ATL para as crianças do bairro. O dirigente fala disso como um exemplo do “papel social” desempenhado pelo Ginásio, a recuperar num futuro espaço.

É uma luta para arcar ao mesmo tempo que a da marcha. “A gente não se importa que eles tenham errado, mas que tenham a humildade de assumir o erro e voltar atrás”, pede Vera Silva à EGEAC. “Para nós isto é muito, muito importante. Mas como é que explicamos isto às pessoas?”, inquieta-se a marchante Bruna, de 24 anos. “Isto nasce connosco. Temos de ter orgulho em defender o nosso bairro”, diz Carolina.

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