O lixo do futuro e o futuro do lixo
O problema dos biorresíduos está intimamente ligado à dificuldade de implementar um sistema de recolha seletiva amplo e eficiente.
Num tempo de desenvolvimento tecnológico acelerado, de extrema preocupação com as alterações climáticas, com a depleção crescente de recursos por uma população mundial em crescimento, o futuro reserva-nos desafios, oportunidades e surpresas. Muitos dos empregos de hoje serão irrelevantes num futuro próximo e novos surgirão sem que tenhamos ainda ideia concreta da sua configuração. O valor dos produtos, materiais e recursos deve ser mantido na economia o maior tempo possível e a geração de resíduos deverá ser minimizada. É o paradigma da economia circular, um grande desígnio da humanidade para o presente e para o futuro.
A transição para uma economia circular é, assim, uma enorme oportunidade para transformar a nossa economia e torná-la mais sustentável, contribuir para os objetivos climáticos, para a preservação dos recursos mundiais e para a criação de empregos localmente distribuídos.
Muito embora mais ampla em âmbito e foco do que as ações de gestão de resíduos, é a estas que vou dedicar este artigo. Especificamente à fração putrescível dos resíduos sólidos urbanos e sua importância nos ciclos sustentáveis de nutrientes e fertilizantes. Os chamados biorresíduos são definidos como “os resíduos biodegradáveis de espaços verdes, nomeadamente os de jardins, parques, campos desportivos, bem como os resíduos biodegradáveis alimentares e de cozinha das habitações, das unidades de fornecimento de refeições e de retalho e os resíduos similares das unidades de transformação de alimentos” (www.apambiente.pt).
Portugal evoluiu imenso na gestão dos resíduos sólidos urbanos, na implementação de tecnologias de tratamento e de valorização, e na formação, sobretudo dos mais jovens. Contudo, o caminho tem de acelerar e só o pode fazer promovendo mais a separação dos resíduos na fonte e a sua recolha seletiva. Presentemente, a separação de papel, embalagens e vidro é frequente na população portuguesa. A separação da fração orgânica dos resíduos sólidos urbanos não é usual, não há medidas de recolha seletiva desta fração com poucas exceções setoriais (restauração) ou em projetos piloto, alguns deles abandonados, outros em fase inicial. Temos urgentemente de promover, de forma acelerada, a separação de biorresíduos em casa e esperar que os sistemas gestores sejam capacitados com as ferramentas essenciais para que possam rapidamente implementar a sua recolha seletiva porta a porta ou de forma coletiva adequada. É difícil? É, mas é possível e é imperativo.
Em Portugal, 39% dos resíduos sólidos urbanos são compostos por biorresíduos (fração putrescível), 2% são resíduos verdes e 14% de resíduos de papel (PERSU2020). A produção per capita de resíduos sólidos urbanos foi de 453 kg em 2014 e apenas 64 kg (14%) por pessoa foram processados para valorização orgânica. Os 25% restantes foram depositados em aterro ou incinerados depois de recolhidos como resíduos sólidos indiferenciados. O problema dos biorresíduos está intimamente ligado à dificuldade de implementar um sistema de recolha seletiva amplo e eficiente. A recolha seletiva de biorresíduos é um pré-requisito para garantir o cumprimento dos padrões de qualidade para compostagem e digestão anaeróbia, além de contribuir para atingir o objetivo de reciclagem de resíduos municipais de 65% em 2030. Os esquemas de recolha seletiva funcionam com sucesso em muitos países e permitem o desvio de resíduos facilmente biodegradáveis de aterros sanitários, o aumento do valor calorífico dos resíduos restantes e a geração de uma fração de biorresíduo mais limpa que permite produzir composto de alta qualidade e facilita a produção de biogás. A recolha seletiva de biorresíduos também suporta outras formas de reciclagem suscetíveis de estarem disponíveis no mercado no futuro próximo (por exemplo, produção de produtos químicos nas biorrefinarias). A este respeito são relevantes os projetos em que o Centro de Engenharia Biológica da Escola de Engenharia da Universidade do Minho está envolvido, em colaboração com várias empresas com vista à obtenção de compostos de valor a partir de biorresíduos urbanos ou industriais.
Os Estados-membros da União Europeia serão obrigados a introduzir incentivos adequados para atingir os objetivos de prevenção e reciclagem de resíduos. A implementação dos sistemas PAYT – Pay as you throw, juntamente com o aumento das taxas sobre o aterro e incineração contribuirão para as metas a atingir.
A rede europeia de compostagem analisou o potencial de expansão dos sistemas de recolha seletiva de biorresíduos: países como a Áustria, a Suíça, a Alemanha, os Países Baixos, a Bélgica, a Suécia e a Noruega, implementaram sistema de recolha seletiva há mais de 15 anos, enquanto países como o Reino Unido, a Itália, a Finlândia, a Irlanda, a Eslovénia, a Estónia e a França fizeram avanços significativos durante este período. Por outro lado, um vasto potencial de expansão permanece em vários países, como Bulgária, Grécia, Croácia, Letónia, Lituânia, Malta, Polónia, Portugal, Roménia, Eslováquia, Espanha, República Checa, Hungria e Chipre.
Assim, Portugal pode e deve evoluir. A reciclagem está em grande medida associada à recolha seletiva de diversos materiais como plásticos, vidros, metais ou papel e cartão. As metas a atingir para a reciclagem até 2020 são exigentes. No entanto, embora desejavelmente a recolha seletiva deva ser a principal forma de obtenção destes materiais, existem outras vias que permitem também recuperar estes materiais a partir dos resíduos recolhidos indiferenciadamente. Esta evolução deveu-se à entrada em funcionamento de unidades de tratamento mecânico e biológico e tratamento mecânico que promoveram o incremento das quantidades de resíduos encaminhados para valorização multimaterial. Contudo, a qualidade dos biorresíduos obtidos por esta via é baixa pois os processos de tratamento mecânico e biológico que pretendem fazer uma triagem mecânica e um tratamento biológico da fração orgância não garantem a qualidade desta fração de modo a devolvê-la à natureza de forma adequada. A recolha seletiva de biorresíduos, em substituição da extração desta fração dos resíduos indiferenciados que vulgarmente colocamos nos nossos sacos de lixo, é um passo fundamental para a recolha eficiente de uma fração orgânica não contaminada. Uma matéria-prima pura recolhida através de um sistema de recolha selectiva cumpre mais facilmente com as normas de qualidade para composto, produzindo um produto de fácil comercialização e aplicação, o que se traduz em vantagens para o meio ambiente. A sua aplicação nos campos agrícolas e jardins leva a um decréscimo da procura de outros adubos e corretivos do solo e alinha-se com a estratégia dos fertilizantes orgânicos recentemente proposta pela União Europeia.
Parece-me óbvio que as metas a que estamos obrigados só poderão ser atingidas com a implementação de modelos de recolha seletiva de biorresíduos.