Merkel e Macron marcam o regresso da política à agenda económica mundial

A chanceler alemã rebateu ponto por ponto a visão de Trump sobre o mundo. O perigo vem do isolacionismo, do proteccionismo. Macron defendeu uma globalização que não seja apenas para o benefício de alguns.

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Se não ouvirmos os outros, cairemos no populismo”, avisou Merkel LAURENT GILLIERON/EPA
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Os “donos” da economia têm de dar alguma coisa em troca nos países onde investem, recordou Macron GIAN EHRENZELLER/EPA

Davos teve o seu dia da Europa, com dois discursos aguardados com grande expectativa: da chanceler alemã e do Presidente francês. Ninguém poderá dizer que desiludiram. Merkel não deixou os seus créditos por mãos alheias. Fez um discurso político no qual alertou para os riscos que hoje põem em causa o sistema internacional e as democracias. Sem nunca mencionar o Presidente americano, respondeu ponto por ponto aquilo que ele representa: o isolacionismo, o proteccionismo, o populismo e o nacionalismo, que estão em alta mas que não resolvem nenhum dos problemas que o mundo enfrenta.

Lembrou a História trágica do século XX: “Precisamos de nos perguntar a nós próprios se aprendemos as lições da História. A geração que nasceu depois da II Guerra terá de provar que também ela aprendeu essas as lições.” Deu o seu país como exemplo, lembrando que está há quatro meses a tentar constituir um governo, justamente porque a realidade política alemã mudou radicalmente. Lamentou o "Brexit", mas acrescentou que acabou por ser ele a dar à Europa “a coragem para avançar”.

Saudou a eleição de Emmanuel Macron, “que deu à Europa um novo impulso reformista”. Reconheceu que os europeus têm de assumir à escala mundial um papel mais activo do que o que a Europa tem desempenhado até agora. “Temos de tomar em mãos o nosso destino”. Fez a defesa das instituições multilaterais e da abertura dos mercados, acrescentando um exemplo simples: “Se não ouvirmos os outros, cairemos no populismo”. Depois de ouvi-la é mais difícil de dizer que está derrotada (a imprensa alemão já só fala no seu ocaso politico). 

Globalização com regras

Emmanuel Macron não lhe ficou atrás. Para além de explicar o que significa o “regresso da França”, defendeu uma globalização com regras, sob pena de se destruir a si própria. Propôs um “contrato global”, ao nível do G20, que consiga levar em conta as pessoas e o ambiente: sem partilha dos benefícios da globalização será impossível responder aos grandes desafios que a humanidade enfrenta. Com três deveres: “O direito a investir, a partilhar e a proteger”.

Lembrou aos “donos” da economia que não se podem colocar de fora. Têm de dar alguma coisa em troca nos países onde investem, sobretudo quando esses países são pobres. Insistiu em que o investimento em educação é aquele que pode dar mais frutos de longo prazo.

Foi igualmente notável a forma como explicou aquilo que pretende fazer no seu país, quebrando todos os tabus. A sua ideia é realinhar a França pela Alemanha e pelos países nórdicos, todos eles mais competitivos. Para isso é preciso mudar a cultura francesa, na qual “é proibido falhar e é proibido ter sucesso”.

Defendeu para a Europa uma estratégia para a dez anos, mesmo que tenha de ser negociada apenas com alguns, que traduza uma União Europeia capaz de proteger, incluindo aqueles que ficaram para trás.

Apenas num tema houve uma pequena picardia entre o Presidente e a chanceler: a harmonização fiscal. Merkel disse que os europeus não se deviam queixar da reforma fiscal levada a cabo nos EUA, mas reformar-se a si próprios para poder competir com eles. Macron defendeu uma forma de harmonização dos impostos, envolvendo o G20 e não apenas a Europa, que não fosse apenas uma “corrida para o fundo”.

Aliás, contrariar a “corrida para o fundo” provocada pela globalização, incluindo no domínio social, foi o seu ponto de partida para defender novas regras que não sirvam apenas os agentes económicos mas também as pessoas. Deu o exemplo dos gigantes tecnológicos que destroem milhões de empregos, mas que não estão disponíveis para pagar impostos que poderiam financiar a requalificação daqueles que ficaram para trás. “Quero que os investimentos privados venham para o meu país para criar empregos, mas tenho de poder explicar às pessoas que a globalização é boa para elas”. O reverso desta medalha é o nacionalismo e o extremismo.

O que ambos fizeram foi, afinal, anunciar que a política está regresso à agenda económica mundial, depois de décadas em que foi posta de parte para não perturbar os mercados.

Ver para crer?

Falta saber como reagiram os “donos” da economia, bastante cépticos sobre a capacidade europeia de renascer das cinzas e reconstruir a sua unidade. Querem ver para crer.

Mesmo assim, estão a falar do maior mercado do mundo, (ligeiramente maior do que o americano), que recebe ainda hoje a maior fatia do Investimento Directo Estrangeiro (IDE), seguido de perto pelos EUA, e que ainda pode contar com um grau de “inclusão social” maior do que em qualquer outro país do mundo. A desigualdade está em alta incluindo nas democracias europeias. É preciso reverter a tendência. Como disse a chanceler, se há forma de alimentar o populismo, é precisamente ignorar aqueles que se sentem deixados para trás.

A Europa ainda tem um longo caminho pela frente para estabilizar de vez a zona euro. O seu papel no mundo ainda está em construção, num quadro absolutamente novo, graças à eleição de um Presidente americano que não se importa com os estragos que faz na ordem internacional. Nem Merkel nem Macron querem agravar a distância entre as duas margens do Atlântico, mas isso não depende só deles.

Ontem, apresentaram a sua visão do mundo, que está nos antípodas da visão de Trump. O Presidente americano chega esta noite a Davos, segundo a Casa Branca, para uma série de encontros. Usará da palavra amanhã. Para aumentar ou para diminuir a distância? Ninguém sabe.

 

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