Vou eu pagar a creche em vez da Autoeuropa?
Pergunto: qual é a boa justificação social para os contribuintes se substituírem aos accionistas da Volkswagen no pagamento de creches para os filhos dos seus casais trabalhadores?
Até hoje, a minha posição em relação ao tema da Autoeuropa tem sido esta: não tenho nada a ver com isso. É uma empresa privada, que deseja aumentar a sua produção de carros privados, e para tal necessita de acordar um aumento de turnos com os seus trabalhadores privados. Ao contrário das greves envolvendo professores, polícias, empresas de transportes ou médicos, onde aquilo que está em causa é a prestação de um serviço público e uma relação desequilibrada entre o funcionário do Estado e o seu patrão, no caso da Autoeuropa estamos perante uma negociação entre privados, onde as duas partes têm os seus trunfos, e essa negociação apenas me envolve muito indirectamente, se acaso a fábrica emigrar para a República Checa e o PIB cair.
Sei que muitos dos meus colegas cidadãos não partilham esta opinião. Sinceramente, a forma como tem sido abordada no espaço público a questão da Autoeuropa colocou-me com frequência mais próximo do PCP e da CGTP do que da minha habitual companhia política. Parece-me de uma arrogância insuportável o olhar, entre o invejoso e o paternalista, que tem recaído sobre os trabalhadores da empresa, como se eles estivessem obrigados a beijar os pés alemães pelos benefícios que lhes estão a oferecer por passarem a ter de laborar ao sábado. Então não se está mesmo a ver que o patrão está a ser incrivelmente generoso? Não, não está, e sobretudo não compete a cada um de nós avaliar, a partir do sofá de sua casa, o sacrifício familiar que é ter de passar a trabalhar quase todos os sábados e deixar de ter dois dias de folga consecutivos. Acredito que o direito ao descanso não pode ser desvalorizado, e o meu ponto é sempre o mesmo: é um assunto lá deles.
Infelizmente, como isto é Portugal, haveria de chegar o momento em que o assunto passasse a ser também nosso — e esse momento chegou. Esta semana, descobrimos que a Segurança Social já anda a investigar quais as creches na zona de Palmela disponíveis para receberem ao sábado os filhos dos casais que trabalham na Volkswagen. Adivinhem quem vai pagar? Sim, somos nós. O Estado está disponível, através de um mecanismo chamado “complemento de horário em creche”, a desembolsar 503,59 euros por mês, por criança. Estamos a falar em 125 euros por dia, por miúdo — isto, sim, é extraordinariamente bem pago, e já deve haver filas para o babysitting.
Como os protestos logo se fizeram ouvir, o ministério de Vieira da Silva apressou-se a garantir que este apoio não é exclusivo para os trabalhadores da Autoeuropa, e que ele está previsto ao abrigo de “acordos de cooperação” estabelecidos com IPSS. Compete agora à comunicação social apurar onde esses acordos estão em vigor e quem pode aceder a eles. Ou muito me engano, ou só estarão disponíveis para empresas de grande dimensão, precisamente aquelas que poderiam pagá-los. Pergunto: qual é a boa justificação social para os contribuintes se substituírem aos accionistas da Volkswagen no pagamento de creches para os filhos dos seus casais trabalhadores?
Uma coisa é o Estado apoiar o investimento estrangeiro, com condições privilegiadas para a instalação de fábricas, ou com uma redução generalizada do IRC para facilitar a vida às empresas. Concordo com tudo isso. Outra coisa, bem diferente, é irem mais uma vez ao nosso bolso para pagar a produção do novo T-Roc. Eu não quero ter nada a ver com o conflito na Autoeuropa. Agradecia que o conflito na Autoeuropa também não quisesse ter nada a ver comigo.