Extraordinário, deveras extraordinário!
Mesmo tendo um processo composicional extremamente complexo, Georg Friedrich Haas escreve para os sentidos, visando o impacto da sua música. in vain é uma magistral obra-prima, que só pode ser plenamente sentida em concerto, sendo também sensível ao trabalho luminotécnico, que chega à total obscuridade. Concerto absolutamente memorável, o de sábado na Casa da Música.
Ao segundo dia do segundo fim-de-semana de abertura do segundo Ano da Áustria na Casa da Música (houvera já outro em 2010) atingiu-se um pico, um momento de tal modo memorável que dificilmente haverá outro assim: a primeira audição em Portugal de in vain de Georg Friedrich Haas, o compositor residente este ano, obra hiper-extraordinária, de tremenda complexidade e já celebérrima, sistematicamente apontada como sendo, para já, a mais importante do século XXI ou, no dizer de Simon Rattle, “uma das únicas obras-primas já reconhecidas como tal do século XXI”.
De facto, cronologicamente, tendo sido composta e estreada em 2000, a obra é ainda do século XX, já que as centúrias são o encerramento de um século e não o seu princípio, como habitualmente se refere. Mas havendo um entendimento consagrado, pois que seja, tenhamo-la como já do século XXI, mesmo qual obra inaugural.
Sendo uma composição de um tremendo impacto sonoro imediato (não me ocorre nenhuma outra assim desde Aura de Magnus Lindberg, de 1994, obra de resto já apresentada, e creio que até por duas vezes, na Casa da Música), in vain, como aliás por regra sucede nas peças de Haas, é uma obra cujo fundamentos e escrita exigem mesmo um bosquejo pela história da música erudita da tradição europeia.
Desde os alvores do século XVII, com o nascente barroco de que o maior exemplo é Monteverdi, que se impôs a tonalidade funcional, isto é, uma organização da escrita musical a partir de uma nota tónica, sistema que seria prevalecente durante 300 anos. Progressivamente foram-se impondo a escala dita diatónica e também o temperamento igual, isto é, a subdivisão da oitava – o intervalo entre um dó e o outro dó subsequente – em 12 semitons (o exemplo imediato são as 12 notas, com as teclas brancas e pretas, no teclado de um piano), em modo maior ou em modo menor.
1722 foi um ano crucial na história da música europeia, por terem ocorrido a publicação do Tratado de Harmonia Reduzida aos seus Princípios Naturais de Rameau e a composição do primeiro volume de O Cravo Bem Temperado de Bach, com 24 prelúdios e fugas, cada um com a sua tonalidade, apresentada nos dois modos, maior e menor. Contudo, a partir de Wagner, e sobretudo do exemplo que é o chamado “acorde do Tristão”, foi-se expandindo o cromatismo, ou seja, o uso de intervalos exteriores à escala diatónica, procedendo nomeadamente por meios-tons sucessivos, e não apenas a estrutura hierárquica organizada a partir de uma tónica. A tonalidade funcional começou a vacilar e a entrar em colapso, até chegar mesmo nos inícios do novecentos à atonalidade, com Schönberg – não havia uma tónica, uma obra era livremente escrita, em vez de o ser, por exemplo, em dó maior ou ré menor.
Após um período de livre atonalidade, de emancipação dos sons, o mesmo Schönberg, já no primeiro pós-guerra, concebeu um novo sistema organizativo, o dodecafonismo, com as obras estruturadas em séries com os 12 meios-tons. Esse princípio ainda mais se radicalizou com a “vanguarda” do segundo pós-guerra e o serialismo integral.
Contudo, podia-se colocar, e foi colocada por alguns, a seguinte questão: mas porquê então ficar restrito à organização em meios-tons? Assim, compositores como Alois Hába, Ivan Wyschnegradsky (este, muito apreciado por Haas) ou o americano Harry Partch usaram sistematicamente não meios-tons mas quartos-de-tons (e surgiu também o piano preparado de John Cage), tornando-se precursores de outros modos de afinação, abrindo também caminho a novas possibilidades, por exemplo de micropolifonias.
É nesta deriva que se inscreve G.F. Haas (uso as iniciais para não ocorrer – como por vezes ainda sucede – a confusão com Pavel Haas, compositor checo judaico morto em Auschwitz-Birkenau), procedendo sistematicamente a um modo composicional com os harmónicos, isto é, os outros sons que são produzidos a partir de uma nota, dita fundamental, usando diferentes modos de execução (por exemplo nos instrumentos de cordas apoiando ligeiramente o dedo num ponto da corda em vibração) e de afinação.
Mas este percurso e esta descrição, evidentemente sumários mas importantes na consideração da espantosa individualidade criativa de Haas, das características da sua escrita e também das suas extremas dificuldades de execução, podendo ser matéria de análises musicológicas, mais importa sim para a música viva, tocada e ouvida, e para o seu sobremaneira impressionante impacto sensorial.
in vain, disse-o Haas, foi inspirada pelo choque de ver a extrema-direita austríaca, chefiada por Jörg Haider, chegar ao governo em coligação com os conservadores (e por lamentável coincidência a obra foi agora apresentada na Casa da Música quando acaba de se constituir de novo uma tal coligação), mas atenção, ele não é um “compositor político”, como no caso paradigmático de um Luigi Nono. O que importa sim não é tanto o facto, mas o sentimento que nele isso suscitou, um temor.
Tal como um Wolfgang Rihm (compositor com o qual não é usual associá-lo), Haas, mesmo tendo um processo composicional extremamente complexo, escreve para os sentidos, visando o impacto da sua música. De a ouvir mas também de a “ver”. Como assim?
in vain (e poderiam citar-se outras obras suas) é uma “mise-en-son” que é também uma “mise-en-scène”, uma sonorização que é também uma encenação, por modos que todavia nada têm a ver como o teatro musical, mas pela luminotecnia, de matizes de luz e obscuridade. Por vezes há mesmo escuridão, obrigando os executantes a memorizarem partes e a um terrivelmente difícil trabalho do maestro, mas que se diria uma evocação de sensações primordiais, como do tal temor que Haas sentiu ou mesmo um pesadelo – e é nesse sentido que o choque suscitado pela extrema-direita no governo foi ponto de partida ao modo como ele se quis “exprimir”.
Por extraordinária que seja a obra em termos estritamente sonoros (como se constata ouvindo a gravação pelo Klangforum Wien dirigido por Sylvain Cambreling, os intérpretes na estreia), ela só pode ser plenamente apreendida ao vivo, donde a imensa importância desta primeira audição em Portugal, que só na Casa da Música seria possível.
Para o Remix, o agrupamento residente da Casa da vocacionado para a contemporaneidade, Haas escreveu há anos uma obra intitulada precisamente Remix, como se estivesse a estabelecer uma relação particular. Com in vain, o Remix e o seu excelente maestro titular, Peter Rundel, tiveram um momento que fica nos anais do grupo e nos anais da Casa da Música, absolutamente memorável para todos os muitos que estivemos presentes.
De facto foi extraordinário, deveras extraordinário!