De Gaia com amor
É tudo na tanga, mas não deixa de ser um tango, charmoso e melancólico, que dB oferece antes da sua partida para Rio Tinto.
Na última década, o segmento da produção de hip-hop e R&B em Portugal deu um salto inimaginável para quem, em 2002, se espantava com Beats Vol. 1 - Amor de Sam The Kid, um dos pioneiros registos de hip-hop exclusivamente instrumental por cá conhecido. Desde então, uma nova fileira de produtores, sonicamente cada vez mais dotados, foi emergindo, podendo falar-se de uma segunda geração de beatmakers que, distribuída um pouco por todo o país, tem a Norte, mais concretamente no Porto, um polo absolutamente incontornável: Virtus, Minus, Roger Plexico, Keso, dB (aqui David Bruno) são alguns dos notáveis dessa linhagem (embora muito diferentes entre si), com produções sofisticadíssimas que ombreiam com o que de melhor se faz nos EUA. Mais recentemente ainda, uma nova vaga (Lhast, Here’s Johnny, Holly), sobretudo conotada com a música bass, o R&B e o trap, vem energicamente cimentando o seu nome, também ela competindo taco a taco com o que de mais moderno (não necessariamente estimável) se passa em Toronto ou Atlanta. Logo no instrumental composto para a famosa Cara de Chewbacca (do então desconhecido PZ, isto em 2013) se pressentia a abordagem particular de dB, menos interessado no sampling das tradicionais orquestrações da música negra americana e mais curioso pelas linhas de guitarra e baixo obscuras coladas ao rock psicadélico, ao kraut e ao prog (ou, até, pela música indiana, matéria-prima de Black Cobra EP, 2014).
Seria nos três discos de Corona que esse gosto idiossincrático se evidenciaria, pelo meio editando 4400 O.G. (2016), um dos melhores discos de hip-hop instrumental e, em geral, de sampling já feitos no burgo. A sua notável capacidade de trabalho dá novamente frutos com Último Tango em Mafamude, “disco de amor” à Lovage (mas não correspondido pela amada, Gaia) cujo título prossegue a linha gozona e desmanteladora das convenções do hip-hop, juntando a referência cinematográfica (que se repete no skit de coppoliano título Pedrinho) à homenagem geográfica e toponímica (do mesmo modo que o 4400 do álbum anterior correspondia ao código postal gaiense). Tudo num caldo assumidamente quasi-pimba (a artwork é a réplica adulterada de uma capa de Marant) e piroso, embora a ironia resida precisamente aí, nesse efeito paradoxal: ainda que involuntariamente, ainda que carregando na tecla da paródia, dB constrói ambientes melancólicos (de certo modo fadísticos, até), tocantes, enfim, genuinamente românticos.
Uma das suas qualidades está no sentido de economia que põe em cada faixa, não as deixando nunca redundar na monotonia para que algum hip-hop instrumental tende, deparando-se sempre o ouvinte com canções muitíssimo bem estruturadas e dotadas de progressões suficientemente variadas. Pelo meio, dB vai samplando áudio televisivo e deixando algumas quadras (talvez se pedissem em maior número), sempre entre o registo galhofeiro e a iconografia do Pimp (“Romântico como o Marante / Apaixonante tipo Toy”, ouve-se-lhe cheiinho de swing) que um certo rap americano historicamente cultivou (às tantas, também evoca a personagem “Sousa da Ponte”, para quem se lembra do saudoso Quinzinho de Portugal). As baterias, ora soft-rockeiras ora jazzísticas, sempre bem articuladas com as melodias (evitando aquele desligamento autista que por vezes acomete o hip-hop) voltam a ser uma das marcas mais fortes de dB, ao que acrescem alguns exuberantes pormenores, como os cirúrgicos arranjos orgânicos (as teclas groovescas à Money Mark que fecham Alfa Romeu & Julieta, os solos à Santana), a atmosfera quase dub de Amor Anónimo, a linha que parece saída de um bouzouki (guitarra grega que, numa primeira audição, se assemelha à portuguesa) em Monte da Virgem Platónico ou, enfim, o repescar de Armando Manzanero em Mesa para dois no Carpa (Cuando Estoy Contigo, também samplada, a título de curiosidade, pelos nova-iorquinos Pro Era em Ressurection of Real).
Todo este imaginário – fundado num genuíno amor pela cultura e língua portuguesas nas suas mais agudas idiossincrasias (quão mais fácil, e banal, seria apinhar as faixas de scratch com rimas de rappers americanos…) – tem expressão, ainda, num vídeo-rábula (no YouTube) em que o conceito de sampling, agora visual, se expande com recurso à montagem de imagens da TV portuguesa dos anos 90 sintonizadas com o discurso do disco. Num ano em que os Corona se preparam para lançar o quarto disco de originais, dB abre as hostilidades com um trabalho que, sólido e orelhudo (mas menos fulgurante que 4400 O.G.), deixa no ouvinte a sensação de que chegou a um ponto de domínio absoluto da sua arte; o reflexo disso, porém, é o desejo de que, no futuro, abandone a sua zona de conforto e tome novos caminhos, sob pena de enquistamento. Até lá, encontramo-nos às “Onze e meia ao pé da RTP / Eu e Tu / Ninguém sabe, ninguém vê”.