Supernanny: nem crime, nem castigo
O Estado só deve intervir, nos termos da lei, quando os pais ponham em perigo a segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento das crianças.
Li, nos últimos dias, tanta coisa e tão negativa sobre o programa Supernanny que estava preparado para ver um evento trágico com uma violação evidente e sistemática dos direitos básicos de uma criança designada por “furacão Margarida”. Mas, na verdade, não foi isso que vi.
É um programa algo triste e doloroso, que retrata uma vida familiar que compreendemos e, de alguma forma, todos conhecemos. O chamado “furacão Margarida” é uma miúda de 7 anos, normalíssima, birrenta e afectiva, habituada a ver feitas as suas vontades pela mãe e pela avó que – como tantas e tantas mães e avós – exprimem o seu amor de forma errática e confusa em termos educacionais e emocionais.
Os comportamentos desequilibrados da Margarida no início do programa – que me pareceram, em certos momentos, teatralizados – vão evoluindo positivamente e o programa termina com uma mensagem de esperança na evolução daquele furacão que já nem uma tempestade tropical é. Todos ficamos a gostar da Margarida.
Não sendo psicólogo nem educador pareceu-me, também, que os conselhos e opiniões da designada “Supernanny” eram genericamente sensatos, talvez tudo tratado de uma forma simplista e algo primária, mas este programa da SIC não é propriamente um programa do canal 2 da RTP, visto por uma elite, com um debate entre especialistas sobre a educação e a psicologia das crianças.
É tão só um reality show que pretende ser visto por um grande número de pessoas com tudo o que isso acarreta. Mas estou em crer que para a Margarida e para a sua família a participação no mesmo terá sido uma experiência positiva.
Embora ver crianças a fazer birras, a chorar e a serem malcriadas com os pais não seja propriamente uma novidade ou motivo de escândalo, é certo que imagens da Margarida e da sua vida privada foram expostas publicamente o que poderá ter um efeito, de alguma forma estigmatizante – sendo absurdo que venha a perder possibilidades de emprego futuro por causa de tais imagens, como vi escrito!
Quem decidiu a sua participação no programa? Certamente que a mãe, muito provavelmente também o pai, isto é, aqueles a quem caberão as responsabilidades parentais. E são estes que, em primeira linha e salvo violações graves dos direitos dos filhos, devem decidir estas questões, sem prejuízo, naturalmente, de a criança ser ouvida e participar na decisão.
O Estado só deve intervir, nos termos da lei, quando os pais ponham em perigo a segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento das crianças. E, em princípio, uma criança só estará nessa situação de perigo, igualmente nos termos da lei, quando está abandonada, sofre maus tratos físicos ou psíquicos ou é vítima de abusos sexuais, não recebe os cuidados ou a afeição adequados à sua idade e situação pessoal, é obrigada a atividades ou trabalhos excessivos ou inadequados à sua idade, dignidade e situação pessoal ou prejudiciais à sua formação ou desenvolvimento ou, ainda, está sujeita a comportamentos que afetem gravemente a sua segurança ou o seu equilíbrio emocional. Será esta a situação que legalmente justificaria a intervenção do Estado na vida da Margarida e da sua família?
Na verdade, seria bom que o Estado, tendo tido, agora, conhecimento das dificuldades da Margarida e da sua família, queira ajudá-los, eventualmente substituindo-se à Supernanny. Será o Estado capaz disso? Tem psicólogos e educadores para o fazer? Ou prepara-se o Estado para fazer intervir as instâncias repressivas afectando gravemente o equilíbrio emocional da Margarida? Ou prefere avançar com a censura, como parece querer fazer a CPCJ de Loures, afectando-nos a todos nós?
Dito tudo isto, acrescento que poderia naturalmente a produção do programa ter evitado algumas imagens mais directas, reduzindo o grau de exposição pública das birras ou dos castigos da Margarida mas não vi nada que justifique actuações do Estado para além das que a Margarida e a sua família desejem.