É preciso evitar a política criminal “à flor da pele”, alerta o presidente do Supremo Tribunal

No discurso de abertura do ano judicial, António Henriques Gaspar criticou as “pressões” com “assinatura” que pretendem condicionar a justiça.

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Miguel Manso

O presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), António Henriques Gaspar, disse nesta quinta-feira ser preciso “evitar a política criminal ‘à flor da pele’, condicionada por pressões que têm assinatura”, e é necessário “resistir à manipulação das categorias através da expansão absurda e antidogmática do regime das contra-ordenações, que objectivamente expulsa o juiz do essencial”.

Na sua intervenção, o presidente do STJ considerou ainda importante reflectir sobre o perigo do excesso de retórica à volta da chamada “criminalidade económica”, alegando que, “além do ruído, sobra uma noção sem muito conteúdo, quando as concepções da nova economia financeira lançam para o lixo crimes com bens jurídicos sedimentados e impõem ao legislador a fuga para o mundo das contra-ordenações”.

Garantir “estatuto decente” aos magistrados

O juiz conselheiro defendeu que é preciso terminar a discussão estatutária dos magistrados e garantir um “estatuto decente”, alertando que estas “são questões políticas centrais que ultrapassam a capacidade de intervenção da justiça” e só podem ter “uma resposta política”. “Não podemos é permanecer na tranquilidade do fingimento de que não existem”, acrescentou.

Reconsiderar a organização das vias de recurso para os processos civil e penal e reinventar métodos que permitam, com os cerca de 60 milhões de euros que o Estado gasta a cada ano, o patrocínio efectivo no apoio judiciário foram outros desafios lançados por Henriques Gaspar.

Numa alusão ao pacto da Justiça, o presidente do STJ lembrou que “o exercício tem de ser continuado, para definir um método de análise do resultado que permita dar-lhe coerência intra-sistemática”, dizendo que é agora o momento das instituições olharem para o conjunto, “para além das ideias avulsas ou de sugestões pragmáticas que nascem da circunstância e na circunstância e têm de ser resolvidas”.

Henriques Gaspar falou ainda da imparcialidade como forma de “compreensão da distância entre o juiz e a política, entre o juiz e o militantismo e entre o juiz e a opinião pública”, considerando que, “aqui, as aparências contam muito” e que “a expressão de preconceitos ou pré-juízos afecta a imparcialidade”.

“É dever dos magistrados prevenir o ruído e os equívocos produzidos por formas de linguagem acessórias e inúteis, que estão aquém ou vão além da autonomia da liberdade de expressão funcional. É dever, também, decidir com a coragem tranquila, se necessário contra as novas multidões que não estão já na rua, mas nas novas formas de comunicação”, sustentou.

Nova organização judiciária está “a responder bem”

No seu discurso, o magistrado criticou a “corrida a formas de justiça privada e do apoio político que a acompanha, sem estudos de consequência nem preocupações sobre o risco” das mesmas.

Como factores positivos, apontou as taxas de resolução e recuperação dos processos nos tribunais, dizendo que, na nova organização judiciária, “a gestão e o modelo estão a responder bem”. Porém, referiu que falta um estudo completo sobre a confiança dos cidadãos na sua justiça, análise que está a ser feita pelo Conselho Superior da Magistratura, Procuradoria-Geral da República e Ordem dos Advogados.