A ressurreição de um romancista
O documentário I’m Not Your Negro revelou James Baldwin, pouco conhecido na Europa, como uma figura crucial na luta contra os preconceitos raciais e sexuais da sociedade americana. A anunciada edição do seu romance de estreia vem agora lembrar a sua dimensão de ficcionista.
“James Baldwin é um nome tão óbvio no cânone americano que nem pensei em publicá-lo, quando comecei a minha vida como editora, porque não me ocorreu que pudesse estar ainda por traduzir”, conta a directora da Penguin Random House em Portugal, Clara Capitão, que se prepara para lançar, com a chancela da Alfaguara, Go Tell It on the Mountain (1953), o romance de estreia de um autor que muitos europeus só descobriram, trinta anos após a sua morte, com o recente documentário I’m Not Your Negro, de Raoul Peck.
O livro está a ser traduzido por Isabel Lucas, colaboradora regular do PÚBLICO, e deverá sair em Junho, estando também já prevista a edição pela Alfaguara do segundo romance de Baldwin, Giovanni’s Room (1956), a sua obra de ficção mais conhecida e traduzida. Clara Capitão explica que tenciona lançar o livro em 2019, salvo se entretanto chegar aos cinemas o filme que Barry Jenkins está a realizar a partir de outro romance de Baldwin, If Beale Street Could Talk (1974). “Nesse caso, publicaremos primeiro esse”.
É precisamente depois de publicar Giovanni’s Room, cujo conteúdo homoerótico explícito causou grande controvérsia – os movimentos de libertação gay dos anos 60 ainda vinham longe –, que Baldwin, radicado em França desde 1948, regressou aos Estados Unidos para participar activamente na luta pelos direitos civis dos negros. Quando o seu volume de ensaios The Fire Next Time é lançado em 1963 – permaneceu 41 semanas na lista dos livros mais vendidos do New York Times –, é já um dos mais reconhecidos e carismáticos ideólogos e porta-vozes do movimento. Ao longo desse ano encontrou-se com Robert Kennedy, chegou à capa da revista Time, e foi uma das figuras centrais da célebre marcha de Washington, na qual participou com o seu amigo Marlon Brando. A sua relevância no combate à discriminação racial fica bem ilustrada pelas quase duas mil páginas de documentação que o FBI de Edgar J. Hoover acumulou sobre ele.
Regressado à Europa após os assassinatos de Martin Luther King e Malcolm X – foi muito próximo de ambos –,continuou a escrever ensaios, romances, livros de contos e poemas, mas não voltou a ter o impacto que tivera na cultura americana durante os anos 60. “As grandes questões de que ele falava estiveram mais adormecidas, mas nunca resolvidas, e hoje são outra vez prementes”, diz Clara Capitão, que vê o renovado interesse pela obra de Baldwin no contexto de uma reacção ao “discurso conservador e reaccionário que está a agudizar-se”, e que também explicaria, por exemplo, o forte ressurgimento, no Brasil, de um autor como Lima Barreto, “uma espécie de Baldwin brasileiro”.
Uma recuperação que, nos EUA, já começara antes do lançamento de I’m Not Your Negro, diz Isabel Lucas, que conhece bem a realidade americana. “Quando o documentário foi estreado, as sessões estiveram permanentemente esgotadas, mas os livros de Baldwin já tinham começado a voltar às livrarias há dois ou três anos, e neste momento estão em destaque em todo o lado”.
A tradutora de Go Tell It on the Mountain leu pela primeira vez o romance aos vinte anos, quando ainda não tinha, como agora, “andado muito pelos territórios de Baldwin”, e diz que foi uma experiência bastante diferente. “Quando li o livro pela primeira vez, comovi-me com a história daquele rapaz negro, agora sei que estes rapazes crescem todos assim”, explica. “Há quem tenha visto o I’m Not Your Negro e ache aquilo um bocado exagerado, mas não é: a questão da raça é fulcral nos EUA, está sempre presente”.
Clara Capitão diz que ainda pensou em iniciar o seu projecto de publicação da ficção de Baldwin com outro livro, mas que acabou por se decidir por Go Tell It on the Mountain por ser “o mais representativo, e talvez o mais importante, até por ser tão autobiográfico: estão lá todos os temas dele, ainda que de modo menos manifesto do que em Giovanni’s Room”.
Romance de formação, protagonizado por um adolescente cuja identidade começa a definir-se em tensão com o seu padrasto, um homem violento e de religiosidade fanática, e com a igreja pentecostal em que foi educado, Go Tell It on the Mountain é, no essencial, a história do próprio Baldwin, que aos 14 anos era já um pastor protestante, mas que veio a romper com a igreja poucos anos mais tarde.
O livro foi escolhido em 1998 para a célebre lista dos cem melhores romances de língua inglesa do século XX organizada pela Modern Library, mas a qualidade de Baldwin como romancista não é unânime. Vários críticos observam que, apesar de serem revolucionários na abordagem explícita de temas ainda fortemente censurados na época, os seus romances são, do ponto de vista literário, mais conservadores do que os seus ensaios.
Harold Bloom não o esquece no seu Cânone Ocidental, mas recomenda-o por The Price of the Ticket, o volume em que Baldwin colige, pouco antes de morrer, quatro décadas de ensaísmo (e que dará título ao biopic realizado em 1989 por Karen Thorsen). Também o crítico francês Michel Gresset escreve, nos anos noventa, que “é sobretudo como ensaísta radical e brilhante que [Baldwin] ainda suscita admiração”, sugerindo que Giovanni’s Room é o romance que “mais merece ficar” numa obra ficcional “tradicionalista na forma e humanista no conteúdo”.
Clara Capitão confessa gostar especialmente dos seus contos, e embora reconheça que Baldwin “não será um autor estilisticamente muito virtuoso”, argumenta que “é impossível separar o modo como tratou os temas da identidade ou da liberdade da avaliação do seu valor como escritor”. E conclui: “No contexto em que escreveu, foi um autor altamente invulgar, que criou um campo novo e eliminou barreiras”.