Contra a demagogia e a deriva bonapartista

Rui Rio limitou-se a retomar a já referida tradição da prática política do regime desde 1976.

"O novo PSD devia libertar o Governo da dependência que tem da esquerda”
António Saraiva, presidente da CIP

A doutrina portuguesa tende maioritariamente a considerar que o sistema de governo consagrado na Constituição de 1976 é de natureza semipresidencialista, um sistema de governo misto que adota características dos sistemas puros (presidencialismo e parlamentarismo): um Presidente eleito por sufrágio universal e detentor de poderes próprios e efetivos, à semelhança do que sucede no presidencialismo; um primeiro-ministro chefiando um governo que depende da confiança política do Parlamento, à semelhança do que acontece nos sistemas parlamentares.

É certo que, como ensina o Prof. Jorge Miranda, a Constituição de 1976 assenta na desnecessidade de a Assembleia da República afirmar positivamente confiança no governo, não o sendo menos que, como assevera o Prof. Marcelo Rebelo de Sousa, “uma coisa é o traçado constitucional de um sistema de governo, outra, por vezes bem diversa, é a correspondente prática política”[1].

Vale por isso a pena aquilatar em que medida essa prática política se subsumiu no sistema de governo consagrado na nossa Lei Fundamental. E aí, forçoso é reconhecer que, até 2015, vigorou a regra democrática segundo a qual governa o partido mais votado, isto é, o que obtém o melhor resultado eleitoral.

Assim, por exemplo, em 1985, após as eleições legislativas desse ano, que deram a vitória ao Partido Social Democrata (PSD), mas sem maioria absoluta, o Partido Socialista (PS), então liderado por António de Almeida Santos, viabilizou o primeiro Governo de Cavaco Silva.

Entre 1995 e 1999, na sequência de duas vitórias legislativas do PS, ambas sem maioria absoluta, o PSD, liderado primeiro por Marcelo Rebelo de Sousa e depois por Durão Barroso, viabilizou dois governos de António Guterres.

Em 2009, vencendo o PS novamente umas eleições legislativas, mas sem maioria absoluta, o PSD, primeiro com Manuela Ferreira Leite e depois com Pedro Passos Coelho, voltou a viabilizar o segundo governo de José Sócrates, só deixando de o fazer quando este último conduziu o país a uma situação de pré-bancarrota em 2011.

Já em 2015, ao contrário da prática constitucional consolidada nas últimas três décadas, António Costa, apesar de ter perdido as eleições legislativas de 4 de outubro, não viabilizou o governo liderado pelo PSD, o partido mais votado, e resolveu atrelar ao PS dois partidos de extrema-esquerda, como meio de alcançar o poder que as urnas lhe haviam negado.

Por isso, Rui Rio, enquanto candidato a líder do PPD/PSD, tem razão quando disse, esta semana, numa entrevista ao jornal PÚBLICO e à Rádio Renascença, que um governo minoritário não deve, logo no início, ser inviabilizado pelos partidos derrotados nas eleições legislativas.

Dada a campanha de desinformação que alguns, por má-fé e desespero, procuram lançar sobre as referidas declarações, chegando a sua desfaçatez e má-fé ao ponto de insinuar que Rui Rio teria “alguma proximidade ao PS”, como lamentavelmente o fez Pedro Santana Lopes – este sim, reconduzido pelo governo do PS na Santa Casa da Misericórdia de Lisboa – justifica-se lembrar exatamente o que aquele disse.

À pergunta: “Imaginemos um cenário de eleições de 2019 em que o PS ganha mas sem maioria. Já nos disse que quer é ser primeiro-ministro, mas num cenário em que o PS se pode aliar à esquerda ou ao PSD, o que prefere?”, Rui Rio respondeu textualmente o seguinte: “A legitimidade que hoje o dr. António Costa não tem passaria a ter porque ganhou por poucos. Aquilo que me parece mais razoável é nós estarmos dispostos para, a nível parlamentar, suportar um Governo minoritário, seja ele qual for, neste caso o do PS. Que é aquilo que o PS deveria ter feito, suportar de forma crítica naturalmente, mas deixar passar e governar o partido mais votado”.

Dito de outro modo, Rui Rio limitou-se a retomar a já referida tradição da prática política do regime desde 1976, interpretando saudavelmente o mandato popular, como há cerca de 20 anos o fez Marcelo Rebelo de Sousa quando era líder do PSD e o PS dispunha de um governo sem apoio parlamentar maioritário. Então, o agora Presidente da República considerava não dever derrubar o executivo socialista porque, afirmava, “seria mau que este governo não durasse os quatro anos. A estabilidade é um bem que não pode ser desbaratado”.

Declarar o contrário, isto é, que um partido derrotado inviabiliza liminarmente o governo constituído pelo partido vencedor nas eleições, quando este não disponha de apoio parlamentar maioritário, não significa apenas uma política de terra queimada: é próprio de partidos anti-sistema e contrários ao modelo político democrático pluralista, vigente nas democracias demoliberais.

Mal andará o PSD se, como o fez há dois anos o PS, meter os resultados eleitorais na gaveta e fizer uma coligação negativa com partidos extremistas para derrubar o governo que os eleitores escolheram.

E a verdade é que, se a nossa prática política conduzir a um extremar das regras do sistema de governo, corremos um risco sério de passar de um modelo semi-presidencialista, no qual existe um benéfico “equilíbrio entre as componentes presidencial e parlamentar para um outro mais parlamentar.

Tal seria, com efeito, o resultado de alguns colocarem, no PSD, os seus interesses e ambições pessoais acima do seu escrúpulo democrático, sacrificando a prática saudável do regime a uma deriva política, porventura de inspiração bonapartista, mas indiscutivelmente contrária à vontade maioritária positivamente expressada pelo eleitorado.

[1] in A Integração Europeia pós-Maastricht e o Sistema de Governo dos Estados Membros, Análise Social, vol. XXVII, 1992, pág. 790

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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