O Prédio Coutinho
É legítimo, ético e decente expropriar pessoas das suas casas por causa da estética do prédio onde vivem?
“É o primeiro caso de uma demolição ocorrer por razões de estética.” É assim que o insuspeito Rethinking European Spatial Policy as a Hologram (Ashgate Publishing, Ltd. 2006) se refere ao Prédio Coutinho (PC), em Viana do Castelo, que está na calha para ser demolido por ser alto demais e grande demais [pp, 65-66]. A Declaração de Utilidade Pública (DUP) para a sua expropriação alega a necessidade daquela parcela para a construção de um mercado municipal e de um espaço público, o que não é verdade, como adiante veremos.
Este caso tem início em 2000, quando o então presidente da autarquia, ex-morador no PC e o grande impulsionador da sua demolição, obtém do Governo a garantia dos fundos necessários para o efeito, por o prédio ser alto demais e grande demais.
Quando foi construído, em 1973, se bem que na altura houvesse vozes críticas da sua volumetria, a vasta maioria da população acolheu-o positivamente, sendo o prédio então visto como um sinal de progresso e de que a cidade estava a crescer.
Garantidos os fundos, foi posto em marcha o plano com vista à sua demolição e, em 2002, é aprovado o Plano de Pormenor do Centro Histórico de Viana do Castelo (PPCHVC), o qual, tendo o PC como alvo mas sem nunca o mencionar pelo nome, propõe-se “eliminar as intrusões visuais e as discrepâncias volumétricas, por forma a repor, na sua heterogeneidade, o equilíbrio da morfologia do centro histórico, em ordem à criação de condições para a sua classificação como Património Mundial”.
Este enunciado a propósito de o centro histórico vir a ser classificado como Património Mundial não tinha qualquer fundamento. Foi um embuste que, na altura, teve o condão de silenciar muitas vozes que se opunham à sua demolição. Como “eliminar as intrusões visuais e as discrepâncias volumétricas” não fossem por si sós razões suficientes para se poder justificar uma expropriação, havia que fazer algo mais.
Assim, em 2003 e no âmbito do PPCHVC, a Vianapólis acaba com o mercado municipal que existia há mais de três décadas numa parcela de terreno essencialmente equivalente à do PC e a menos de cem metros deste, demolindo-o. E imediatamente constrói lá prédios, inviabilizando assim aquela parcela para receber um novo mercado. Ao acabar com o mercado que existia, a Vianapólis criou deliberadamente a necessidade de um novo mercado, e assim foi criada a necessidade necessária para se poder justificar uma expropriação.
Em 2005 é publicada a DUP para a expropriação do PC, alegando-se a necessidade daquela parcela para um mercado municipal e um espaço público. O esquema engendrado pela Vianapólis para conseguir a demolição do PC, tendo ido ao ponto de extinguir o bonito mercado que existia para assim criar e poder invocar a necessidade de um novo mercado, deixa muito a desejar do que se espera da Administração Pública.
Como bem observou Bernardo Barbosa, o director do A Aurora do Lima, em “Da inevitabilidade do facto consumado” (PÚBLICO, 09.10.2005): “Brinque-se com os nossos dinheiros, minta-se descaradamente, criem-se factos consumados de forma premeditada e perversa, no estilo popular do carro à frente dos bois, mas haja alguma decência cívica sem necessidade de se criar este clima de terrorismo psicológico.” E mais adiante: “Mas tudo foi congeminado contando derrubar o Coutinho! No mínimo esta situação sugere um maquiavelismo que julgávamos longe dos nossos tempos...”
A razão para a expropriação do PC não é a construção de uma estrada, de um hospital, de uma escola nem de um mercado, como é alegado na DUP. A razão para a expropriação do PC é a sua própria obliteração.
Se bem que a necessidade de um mercado municipal não seja a mesma de há 15 anos devido à proliferação de supermercados que entretanto surgiram, qualquer cidade que se preze deve ter o seu mercado e Viana do Castelo não é excepção. No entanto, a cidade dispõe de locais muito mais apropriados para o efeito. Por exemplo:
(i) Mesmo em frente do PC, à beira do rio e com a marina ao lado, existe um prédio da autarquia grande parte do qual se encontra desocupado e sem uso a maior parte do ano, dispondo de belos espaços envolventes e amplo parqueamento. Um mercado neste local seria com certeza um dos mais belos do mundo.
Veja-se o mercado municipal de Vancouver, no Canadá (Granville Island Market). Também situado à borda-d'água e com marina ao lado, ele é hoje uma das principais atracções turísticas da cidade. A similitude das situações (localização, enquadramento, distanciamento da zona residencial) é por demais evidente.
Eleger entre este local e o do PC para um mercado municipal, para utilizar uma expressão na língua inglesa que de um modo sucinto traduz na perfeição a facilidade da escolha, it’s not a brainer! Vale mesmo a pena uma visita a Vancouver.
(ii) O Centro Comercial 1.º de Maio. Com uma localização muito central e em tempos cheio de actividade, ele é hoje um local quase deserto e vítima de contínuos actos de vandalismo. É um espaço a necessitar de uma urgente intervenção.
É obvio que a parcela do PC não era de todo necessária para um mercado. Como é que em boa verdade se pode aceitar a alegada necessidade da parcela do PC para um mercado, como é invocado na DUP, quando Viana do Castelo tinha um mercado que funcionava lindamente e o qual foi deliberadamente extinto pela Vianapólis?
O que não é verdade plena é plena falsidade. Não há meia verdade. A alegada necessidade da parcela do PC para a construção de um mercado invocada na DUP foi a razão espúria fabricada pela Vianapólis para habilmente camuflar o seu verdadeiro objectivo, i.e., a demolição do prédio.
O PC é um prédio com mais de cem apartamentos e espaços comerciais no r/c, de muito boa construção (caixilharias, carpintarias, mármores, etc.), em bom estado de conservação e o qual ainda hoje é por muitos considerado o melhor prédio do Alto Minho. A sua destruição seria um verdadeiro crime económico.
Além disso 2017 não é 2002, época em que parecia que havia dinheiro a rodos. Com a União Europeia (UE) a atravessar um sério desafio existencial e um risco de desagregação a pairar no horizonte, são infelizmente projectos improvidentes como este que dão asas aos oponentes da UE. Na verdade, porque hão-de os contribuintes da Alemanha, da França, da Holanda ou de Portugal ter de pagar desvarios como este?
Sabemos que existem planos avançados para a demolição do PC e para a construção do novo mercado municipal. No entanto, este é um assunto demasiado importante para cegamente seguirmos e continuarmos reféns de um guião mal nascido há mais de 15 anos sem o questionar. O que aqui se pede e se espera dos decisores políticos é uma mente aberta, ponderação e bom senso.
E as pessoas? “A pessoa é a medida e o fim de toda a actividade humana” (Francisco Sá Carneiro). É legítimo, ético e decente expropriar pessoas das suas casas por causa da estética do prédio onde vivem? Pode ser que seja legal. Ético e decente é que certamente não é. “Mais importante do que o cumprimento dos deveres legais é o cumprimento dos deveres éticos” (Freitas do Amaral).
É chocante vermos pessoas, a maioria delas idosas, algumas com mais de 80 anos, serem expropriadas das suas casas por causa da estética do prédio onde vivem. É também chocante contemplarmos a destruição de um valioso património como é o PC pela mesma razão. E não deixa de ser inquietante termos uma entidade pública capaz de engendrar um esquema verdadeiramente maquiavélico em ordem a conseguir o seu objectivo.
A meu ver, a Vianapólis devia desistir da expropriação do PC, vender as fracções que detém e aplicar esse dinheiro onde ele é verdadeiramente necessário. E construir o novo mercado naquele fabuloso local à beira do rio e da marina. De certeza que a cidade agradeceria.
P.S: O signatário é proprietário de um apartamento no Prédio Coutinho