Uma história da “exploração edificante”
Existe desde a Antiguidade, mas só nos últimos cem anos o conceito de “desenvolvimento” começou a ser materializado. A sua prática, como no jogo da corda, foi alternando a favor da lei do mais forte em universos tão diversificados como a política, a economia, a ecologia ou a geografia. Os impérios coloniais instrumentalizaram-no e adoptaram-no como método de controlo, como instrumento de repressão ou como forma de engenharia social. Breve história de um dos mais marcantes fenómenos do século XX
A palavra “desenvolvimento” faz hoje parte da gramática tanto de agências especializadas como de actores políticos e institucionais. É, também, parte integrante do nosso quotidiano, frequentemente acoplada de adjectivos como “emocional”, “humano” ou “económico”. É o indicador principal através do qual as sociedades se medem e se comparam e, como tal, se hierarquizam. Apesar de a ideia que a subjaz estar entre nós desde a Antiguidade, é apenas com o iluminismo que o projecto de transformar radicalmente a sociedade, através de técnicas e métodos científicos e racionais e com o objectivo de a aperfeiçoar, entra em voga. E é ainda mais tarde que estas fantasias se materializam, generalizando-se no século XX. Mas a história dessa doxa da contemporaneidade é ainda, para muitos, desconhecida.
A “montanha mágica”
Entre 1926 e 1939, a população urbana na União Soviética cresceu de 26,3 milhões de pessoas para 55,6 milhões. Este impressionante êxodo rural deveu-se a várias causas, das fomes à colectivização agrícola. Mas resultou também de um esforço colossal de industrialização de um país imenso e maioritariamente agrário num tempo curtíssimo. Tendo como pano de fundo a reversão da Nova Política Económica (NEP) e um crescente poder repressivo exercido por parte do Estado, multiplicaram-se as ambiciosas propostas de transformação política e social, projectadas num clima político febril, de participação entusiasta de alguns sectores da população na construção de uma sociedade nova, sem classes nem vícios burgueses. A demonstração da superioridade económica, política, social e moral da primeira pátria do socialismo era urgente.
A construção de raiz de Magnitogorsk constitui um exemplo notável deste esforço. Situada a cerca de 60 quilómetros da parte sul dos Urais, a “montanha mágica” na verdade eram cinco. Duas delas tinham das maiores reservas de minério de ferro do mundo. Conhecido o seu potencial desde o século XIX, só em 1926 é que são dados os primeiros passos para a exploração da zona. Foi criado um instituto destinado a gerir a empreitada no local, os planos multiplicaram-se, os peritos contratados também.
O complexo urbano-industrial de Magnitogorsk, que tinha por finalidade a produção de aço, só teve o seu primeiro alto forno a produzir ferro-gusa em 1932. Os obstáculos foram muitos: a zona da estepe era inóspita, praticamente sem acesso a água potável ou comida, os transportes lentos (os primeiros carregamentos a chegar de Moscovo demoravam cerca de 70 dias), a burocracia pesada. “Derrotámos Denikin e Iudenich, Wrangel e toda a restante corja contra-revolucionária, mas os papéis sobre tudo e mais alguma coisa vão sufocar-nos”, escreveu um membro da Comissão Central de Controlo do partido, responsável pelo empreendimento, em 1930. Em 1936, dois terços do trabalho ainda não era mecânico, o desperdício imperava, as direcções mudavam constantemente. Todavia, a construção e produção continuaram. A capacidade produtiva da União Soviética aumentou substancialmente nestes anos. O objectivo de “apanhar e ultrapassar” os países capitalistas parecia estar ao alcance.
A imaginada “cidade socialista do futuro” não tinha uma finalidade meramente económica. Ela comportava um projecto de transformação social e humana mais radical, que pretendia inculcar em todos os seus habitantes os valores e atitudes socialistas e industriais. Magnitogorsk era “uma grandiosa fábrica para refazer as pessoas. O camponês de ontem torna-se o genuíno proletário lutando pelo mais rápido estabelecimento das fundações do socialismo”. Ao contrário dos conglomerados urbanos burgueses, ergueu-se não em torno de um castelo, de uma igreja ou de mercado, mas de uma fábrica. A moral antiquada da família tradicional seria abandonada, o que justificava que os complexos habitacionais construídos em seu redor não possuíssem cozinha, individual ou colectiva, existindo apenas refeitórios. A mulher não deveria perder tempo em tarefas domésticas. Não havia lugar para trabalho visto como improdutivo.
Numa década, e praticamente do zero, ergueu-se um aglomerado urbano-industrial com cerca de 200 mil pessoas. Por lá passaram muitas dezenas de milhares mais, devido à rotatividade da população residente. Esta resultava da persistência de condições precárias, caracterizadas pela predominância de tendas e casernas de madeira que contrastavam com os novos edifícios de cimento onde residiam os técnicos mais qualificados e os quadros do partido. Camponeses que pretendiam fugir às fomes e entusiastas membros do Komsomol (juventudes comunistas) contribuíram para este inaudito crescimento, bem como os cerca de 10 mil trabalhadores condenados a trabalhos correcionais e os 40 mil antigos Kulaks (camponeses ricos que o partido havia decidido eliminar enquanto classe), “capaios” dos Kulaks ou Kulaks “ideológicos” concentrados em zonas especiais vedadas por arame farpado.
Uma modernização distinta
Sensivelmente na mesma altura, outros sonhos de transformação económica, social e paisagística animavam dirigentes, técnicos e cientistas sociais a ocidente. Em 1933, o presidente norte-americano, Franklin Roosevelt, criava a Tennessee Valley Authority (TVA), um organismo governamental que visava dinamizar um projecto de desenvolvimento regional baseado na construção de barragens ao longo do rio Tennessee. O objectivo era ultrapassar a condição sócio-económica “feudal” do Sul dos Estados Unidos. O plano, que geraria electricidade para toda a região, visava ainda fomentar a formação agrícola, melhorar as condições de habitação, desenvolver os sistemas de educação e saúde e de planeamento urbano. Abrangeria cerca de 7,5 milhões de pessoas.
A TVA respondia a circunstâncias históricas como a Grande Depressão de 1929 e o então ainda incipiente New Deal. O plano idealmente criaria novos empregos e novos centros urbanos e atrairia massas desempregadas de trabalhadores das cidades. Era também uma solução vista como ideal para desafios ideológicos muito concretos. A conjugação da sensação de aparente fracasso do capitalismo sem regulação e o descrédito da democracia liberal davam um novo fôlego aos projectos de profunda transformação social, organizados pelo Estado, especialmente aqueles de índole fascista e comunista. A TVA era considerada o embrião de uma nova forma de liberalismo. E não excluía tout court a intervenção estatal, antes a harmonizava com a iniciativa privada. Era o símbolo de uma modernização distinta, que envolvia as populações desde a base. Mas não dispensava a ambição de transformação humana profunda, por via da técnica e da ciência tidas por imparciais, tendo por fim criar homens e mulheres auto-suficientes, independentes e criativos. Os danos colaterais foram significativos. Quase 50 mil pessoas foram deslocadas. As populações afro-americanas praticamente não beneficiaram, à época, do projecto.
Não obstante as diferenças geográficas, económicas, culturais e ideológicas que os separam, estes dois casos reflectem um dos mais marcantes fenómenos do século XX: a institucionalização, globalização e vernarcularização do projecto do desenvolvimento. Em The History of Development (1997), Gilbert Rist disseca a trajectória histórica desta ideia. Conceito polissémico, que tanto pode referir-se a um fim, a um referencial de comparação ou a uma acção política ou económica deliberada, o desenvolvimento encontra referências logo no século XVIII, com o iluminismo, e os seus projectos de organização racional e científica das sociedades humanas. Mas é apenas no século XX, que o desenvolvimento se transforma num conceito, num projecto e numa prática ubíquos e unânimes. Assente nas crenças sobre a perpétua possibilidade de aperfeiçoamento dos indivíduos e das sociedades humanas, por via da aplicação do conhecimento científico e do potencial crescimento contínuo, o desenvolvimento tornou-se a palavra de ordem do século transacto. A partir dele, diversas comunidades foram pensadas, mensuradas, comparadas e intervencionadas.
A projecção colonial
O conceito de desenvolvimento nasce no seio do mundo Ocidental e o seu percurso é imaginado à imagem da trajectória deste último, pensado por etapas e tendo a “civilização Ocidental” como objectivo a atingir pelas sociedades supostamente “atrasadas”. Não é de estranhar que a legitimação ideológica da expansão imperial europeia se tenha sustentado em postulados altruístas, que deram corpo às várias “missões civilizadoras”. A ocupação de novos territórios responderia a um ímpeto de levar os benefícios da civilização europeia aos cantos mais remotos do globo. A predação seria, em tese e em retórica, substituída pela exploração edificante. Isto revelou-se particularmente útil para a renovação da credibilidade dos impérios após 1918. Estas ideias acabariam por se cristalizar internacionalmente, em particular no seio da Sociedade das Nações, ao estipular-se que as colónias da Alemanha e do Império Otomano não seriam anexadas pelas potências vitoriosas. Passariam antes a ser governadas sob mandato por estas últimas, uma vez que as suas populações não se encontravam ainda em condições de se governar a si próprias nas “estrénuas condições do mundo moderno”, sendo que o “bem-estar e desenvolvimento dessas populações” constituía “uma tutela sagrada da civilização”.
A combinação entre os princípios de tutela, de civilização, de mise en valeur e de desenvolvimento começou então a manifestar-se nos territórios mandatados e nas colónias. Os casos do Office du Niger, no Sudão francês, mega-projecto de irrigação para a produção de arroz e algodão, e do similar Gezira Scheme, no Sudão anglo-egípcio, são apenas dois exemplos da dinâmica desenvolvimentista, então ainda nascente, no período entre-guerras. Nos anos 30, sobretudo em razão dos efeitos sísmicos da Grande Depressão, vislumbres de um estado colonial dirigista, regulador e desenvolvimentista emergiram. Em África, tal esteve em parte também ligado à multiplicação, sobretudo nas colónias inglesas e francesas, de protestos laborais e à reivindicação autóctone de direitos sociais e políticos. No entanto, é apenas a partir dos anos 40 que reais projectos de desenvolvimento começam a ser esboçados, com a gradual suspensão do “pacto colonial” que governava a relação económica entre as metrópoles e as colónias.
O investimento metropolitano, mais ou menos aberto a capitais multinacionais, ganhou expressão. Após 1945, a reconstrução da Europa esteve associada ao rejuvenescimento dos impérios coloniais. Como consequência, gigantescos projectos de intervenção sócio-económica proliferaram, do Groundnut Scheme no Tanganyika ao Vridi Canal na Costa do Marfim, passando pelos numerosos paysannats no Congo Belga ou pelos projectos de barragens hidroeléctricas como a do Kariba, na Federação da Rodésia e Niasalândia, e, mais tarde, como a de Cahora Bassa, em Moçambique.
Estes casos mostram bem o que suportava o fervor desenvolvimentista em contexto colonial: nova tecnologia; atracção industrializadora; grande escala; pulsão de engenharia social; objectivos demográficos, tanto de estabilização e controlo das populações autóctones como de promoção e consolidação da comunidade de colonos europeus; e, finalmente, preocupações securitárias. Também aqui as dinâmicas locais foram determinantes na execução dos planos desenhados centralmente.
As trajectórias históricas de desenvolvimentismo colonial não deixaram de estar associadas à persistência de modalidades coercivas de exacção fiscal e laboral, à multiplicação de iniciativas de transferência e realojamento forçados de populações, à imposição de culturas obrigatórias e a uma variedade notável de projectos de controlo, repressão e engenharia social, muitos deles manifestamente violentos. O desenvolvimentismo repressivo disseminou-se. A relação umbilical entre segurança e desenvolvimento tem uma notória genealogia colonial, vincadamente associada à intensificação dos conflitos da descolonização. O colonialismo desenvolvimentista e de bem-estar é indissociável dos inúmerosdesafios (geo)políticos emergentes no período posterior a 1945.
A alquimia da mudança
Após 1945, a ideia de desenvolvimento espraiou-se imparavelmente por todos os cantos do globo. As agudas crises sociais, económicas e necessariamente políticas foram tidas por responsáveis pelo eclodir do maior conflito da história. A ideia de que eram necessárias intervenções direccionadas, cientificamente validadas, para garantir uma ordem pacífica generalizou-se. O desenvolvimento internacionalizou-se. A sua importância foi desde logo assinalada no artigo 55.º da Carta das Nações Unidas como condição para a manutenção da paz. Revelou-se no novo papel atribuído ao recém-criado Conselho Económico e Social e no estabelecimento de um departamento de assistência técnica no seio da ONU.
As restantes organizações internacionais incorporaram, também elas, a nova moda. A principal organização do chamado Banco Mundial era o Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento. A Organização Internacional do Trabalho inscreveu o desenvolvimento como elemento fundamental da sua constituição revista e expandiu os seus programas de treino vocacional. A UNESCO criou vários projectos intimamente ligados ao desígnio do desenvolvimento e sua articulação com a ciência, do seu “Projecto para as Zonas Áridas” às iniciativas de controlo de população. As actividades de ajuda humanitária, até então maioritariamente focadas no alívio do sofrimento mais imediato, começam a contar com o trabalho de organizações “alquimistas”, nas palavras de Michael Barnett. A elevação do desenvolvimento a processo e objectivo fundamental do pós-guerra mobilizou políticos, técnicos e cientistas de várias estirpes apostados em eliminar a pobreza e as desigualdades.
Dois outros processos históricos, a Guerra Fria e a descolonização global, condicionaram sobremaneira a história do desenvolvimento. Com o agudizar das tensões entre os EUA e a URSS no final da década de 40, os temores mútuos impeliram ambos a desenvolver novos repertórios – “modernidades alternativas” – para seduzir os países mais pobres, incluindo os recém-independentes.
Um exemplo marcante foi o “Point IV” de um discurso de Harry Truman, em Janeiro de 1949, que sinalizou um novo programa dos EUA na sua política externa. Este previa disponibilizar recursos industriais e científicos às áreas “sub-desenvolvidas” do globo como forma de conter a ameaça comunista. O envio de técnicos, capitais e tecnologia permitiria que as nações “amigas” adoptassem um modelo de desenvolvimento especificamente norte-americano que, também ele, pretendia transformar radicalmente as sociedades e os indivíduos na luta pelos “corações e mentes” destes soldados pacíficos da Guerra Fria. O novo papel global assumido pelos EUA despertou a ebulição em vários sectores da sociedade norte-americana, dos estabelecimentos governamentais e militares à academia. Multiplicaram-se os programas e projectos de ajuda ao desenvolvimento.
A promessa de um caminho já experimentado rumo ao desenvolvimento passou a condicionar a política externa das duas super-potências. Os dois exemplos já visitados são particularmente esclarecedores. Desde o final dos anos 1950, a administração norte-americana, com participação de outros países e fundações privadas, empregou esforços significativos para replicar o modelo do TVA ao longo do rio Mekong. Com o incremento da participação militar norte-americana na região, em 1965 o presidente Lyndon Johnson anunciou um projecto para o delta do Mekong envolvendo o Vietname do Sul e vários outros países. Procurava resolver questões de natureza económica, como a da produtividade agrícola, mas também solucionar conflitos sociais e políticos que se tornavam cada vez mais nocivos para os interesses estratégicos norte-americanos. Por sua vez, na Índia dos anos 50, o governo decidira que o país, para se industrializar, teria que apostar fortemente na exploração do aço. Copiando literalmente a “montanha mágica”, foi decidida a construção da Siderurgia de Bhilai, financiada com crédito soviético e beneficiando do conhecimento de cerca de trezentos técnicos deslocados daquele país. Recuperando a expressão do diplomata norte-americano George Kennan, a Guerra Fria foi também uma batalha em torno do “romance do desenvolvimento económico”.
Críticas, apropriações, redefinições
Se a Guerra Fria e a descolonização fizeram do desenvolvimento uma linguagem e um objectivo unânimes, elas produziram também uma das suas mais veementes críticas. A crença de que o desenvolvimento como proposto tanto pelo “primeiro” como pelo “segundo” mundo acabaria por atenuar as desigualdades globais foi crescentemente contestada. Apesar das descolonizações em catadupa, as desigualdades sócio-económicas persistiam. A independência política não se traduziu em autonomia económica, mas sim numa recriada dependência.
Esta crítica surgiu, sobretudo, em dois meios. Por um lado, no conjunto de académicos que se reuniu em torno da Comissão Económica das Nações Unidas para a América Latina (CEPAL), movimento encabeçado pelo economista argentino Raúl Prebisch, com a colaboração de muitos outros especialistas. Argumentavam que o desenvolvimento em si nada resolveria enquanto a dependência estrutural que governava o sistema económico e comercial mundial não fosse transformada. Os termos de trocas desfavoráveis para as nações do “Sul global” garantiriam que os projectos de desenvolvimento propostos pelo Norte seriam ineficazes. Por outro lado, estas críticas acabaram por ser incorporadas pelos líderes e diplomatas dos novos estados independentes. Já enunciado na Conferência de Bandung (Indonésia, 1955), o desenvolvimento assumir-se-ia como desígnio fundamental da maior parte destes países. Alcançada a independência política, o dano provocado pela hegemonia europeia ao longo de séculos só poderia ser ultrapassado através de mecanismos estruturais de redução das desigualdades globais e apoios aos “países em vias de desenvolvimento”, que culminaria na proposta de uma Nova Ordem Económica Internacional, no início dos anos 70.
Ambas as críticas, no entanto, cingiam-se a um tipo particular de desenvolvimento, não à sua ideia mais geral. No caso dos países recém-independentes, os modelos de desenvolvimento do “Norte” foram importados ou aplicados de forma ainda mais implacável. A centralidade do dirigismo de estado, do planeamento central e da engenharia social sobreviveram à emancipação política. Um dos aspectos mais interessantes deste legado, que importa não simplificar, é o facto de muitos especialistas coloniais terem participado na formulação e implementação de planos de desenvolvimento nas novas sociedades políticas, trabalhando directamente para os novos estados ou servindo de consultores ou técnicos de organizações internacionais. Num certo sentido, o prolongamento dos argumentários e das políticas desenvolvimentistas ao longo da divisão colonial/pós-colonial reproduziu-se também no modo como o problema da ajuda externa foi sendo pensado. O “desenvolvimento internacional” não é um mero sucessor do “humanitarismo colonial”. Mas existem várias ligações históricas entre eles.
Uma crítica integral ao conceito de desenvolvimento só assumiria papel de relevo na ressaca das crises das dívidas dos países do Terceiro Mundo e respectivos ajustamentos estruturais, da revolução conservadora dos anos 80 na Europa e nos EUA, do insucesso da aplicação dos vários modelos de modernização autoritária e do avolumar da ansiedade global em torno dos problemas ambientais.
Os fins do desenvolvimento
Este conjunto de processos abre espaço para uma crítica total aos desígnios e ao próprio conceito de desenvolvimento na arena pública e na academia. Ela parte de vários espectros científicos e ideológicos. De um lado, crescem as vozes que acusam os países em vias de desenvolvimento de malbaratar os recursos que chegam por via da ajuda internacional. O projecto do desenvolvimento concebido como carecendo do papel fundamental do Estado sofre também com os ataques contra a intervenção “excessiva” deste último na economia. Os maus resultados das estratégias de industrialização intensiva e substituição de importações que ocorrem em vários pontos do “Sul global” abrem espaço para a consolidação de visões mais radicais de uma ordem comercial internacional livre.
De outro lado, talvez mais surpreendentemente, surgem críticas à ideia de desenvolvimento no que ela comporta da presunção de uma racionalidade universal e de uma história linear imaginada à medida da experiência ocidental, mas também por força da disrupção social, económica, ambiental e humana que provoca. O abandono da própria palavra é sugerido, a par da sua congénere “progresso”. Contra um corpus de saber (erradamente) tido por universal e impessoal propõe-se o fortalecimento das comunidades, um regresso ao local em detrimento do universal, a adaptação às condições e tempos particulares de cada espaço.
Estas críticas alimentam-se do estudo dalguns dos fenómenos que mais recorrentemente acompanharam os esforços de intensiva modernização económica e social que polvilharam a história do século XX. Dois merecem particular destaque. Primeiro, os projectos de desenvolvimento implicaram quase sempre uma deslocação em massa de populações, quebrando laços familiares, enfraquecendo redes sociais, dinamitando circuitos económicos tradicionais. Resultaram muitas vezes de lógicas que visavam, acima de tudo, reorganizar geográfica e politicamente as sociedades intervencionadas. O que nos leva ao segundo aspecto, o nexo entre segurança e desenvolvimentismo. Respondendo aos mesmos anseios políticos, os projectos desenvolvimentistas foram reiteradamente pensados como espaços de interesse estratégico, na sua acepção literal.
A oferta de novos recursos sociais, comerciais, económicos e tecnológicos não raras vezes andou a par e passo com desígnios que pretendiam aumentar o controlo sobre as populações e sobre as fronteiras nacionais. E não se pense que este é um problema que se cinge ao Estado. Basta olhar para os efeitos nefastos do extractivismo na América Latina, onde as empresas privadas assumem papel de destaque, com os seus próprios exércitos privativos, ou na violência que é exercida contra activistas ambientais um pouco por todo o mundo (pelo menos 185 assassinados só este ano).
Estas críticas são mais ou menos pertinentes. Mas resta a questão: o que fazer para resolver o problema da pobreza e das desigualdades globais? Afinal, nem a crença numa ordem espontânea que harmonize os níveis de vida globalmente nem o regresso a um passado pristino e auto-suficiente, em grande medida idealizado, parecem ter capacidade para responder aos desafios que se colocam. Tão pouco temos nós a resposta. Mas nem o uso acrítico do conceito de desenvolvimento nem o seu abandono tout court se nos afiguram recomendáveis. Talvez o conhecimento mais aprofundado da(s) história(s) do desenvolvimento, das suas manifestações e impactos concretos nos possa ajudar.
Os autores da série História(s) do Presente são investigadores do Centro de Estudos Sociais — Universidade de Coimbra.
Através da revisitação crítica de 12 livros, ao longo de 12 meses, a série História(s) do Presente recupera um conjunto de processos históricos que modelaram inequivocamente o nosso presente. Da longa persistência de modelos de organização concentracionária em “campos” durante o século XX, à recorrente ameaça, proveniente de vários sectores, sobre os fundamentos racionais do conhecimento, passando pelas preocupações relativas ao crescimento demográfico ou à sustentabilidade do planeta, a série oferecerá ao leitor uma visão mais poliédrica dos passados que construíram o mundo como o conhecemos hoje. Para acompanhar sempre no primeiro domingo de cada mês, no P2, caderno de domingo do PÚBLICO