"Há paralelos entre desenvolvimento e a missão colonizadora"

No início dos anos 90, a academia “enterrou” a ideia de desenvolvimento. Mas Joseph Hodge, um dos mais importantes especialistas da história do desenvolvimento, defende a actualidade e a relevância deste conceito

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Joseph Hodge é professor de História na West Virginia University. É um dos mais importantes especialistas mundiais no estudo da História do Desenvolvimento. O seu Triumph of the Expert: Agrarian Doctrines of Development and the Legacies of British Colonialism (2007) é um livro indispensável para todos os que querem perceber os legados coloniais das políticas agrárias, ambientais e de desenvolvimento em África. 

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Joseph Hodge DR

Apesar das inúmeras críticas sobre os seus significados e usos, o desenvolvimento continua a ser uma categoria política, económica e até sociocultural com uma grande disseminação. Porquê?
Quando comecei a estudar o desenvolvimento de forma crítica como aluno, no início dos anos 90, estava muito em voga ler críticas do desenvolvimento por académicos-activistas como Arturo Escobar, Wolfgang Sachs e Vandana Shiva. O Development Dictionary, de Sachs, começa memoravelmente por proclamar que a ideia de desenvolvimento se tinha tornado “datada” e “defunta”. E, ainda assim, vinte anos depois, o “desenvolvimento” continua a ser um conceito relevante.

A que se deve esta persistência do conceito?
Creio que o historiador Frederick Cooper resumiu as razões que explicam a longevidade do desenvolvimento bastante bem: a pobreza e desigualdade não são apenas imaginadas, elas são reais. Como ele afirma: “Enquanto existirem pessoas a quem falta água canalizada, comida suficiente, e um sentido de possibilidade para o futuro, e enquanto a mão invisível do mercado ou os movimentos sociais locais não lhes derem esses recursos, as pessoas que são pobres e as pessoas que se preocupam com os pobres vão desenvolver esforços – para o melhor e para o pior – para enfrentar a situação.”

O conceito de desenvolvimento evoluiu e deu origem a variações como “desenvolvimento humano” ou “desenvolvimento sustentável”. Como se pode compreender esta trajectória particular?
Se adoptarmos uma perspectiva com uma duração mais longa da história do desenvolvimento, podemos reparar que desde o século XVIII houve um permanente debate acerca do significado do desenvolvimento, bem como dos seus fins e dos meios para o atingir. O significado do conceito de desenvolvimento foi contestado e mudou ao longo do tempo. É como num jogo da corda, em que cada um puxa para um lado, em que diferentes doutrinas do desenvolvimento se tornaram mais apelativas em diferentes momentos. Mas é identificável também um certo padrão, em que o discurso sobre o desenvolvimento tende a oscilar entre extremos, em grande medida como um pêndulo a andar da esquerda para a direita e depois fazendo o caminho inverso.

A que extremos se refere?
Por um lado, há o imperativo de aumentar a produção para o mercado, enquanto, por outro, há a necessidade de providenciar o bem-estar àqueles vistos como empobrecidos ou “sub-desenvolvidos”; há a intenção de melhorar os níveis de vida de comunidades pobres através do aumento da produtividade, mas existe também a necessidade de mitigar as consequências sociais e ecológicas de um crescimento económico desenfreado. Neste sentido, olho para variações como “desenvolvimento humano” ou “desenvolvimento sustentável” como que se encaixando neste padrão mais amplo de mudanças cíclicas no discurso.

Como tem evoluído a história do desenvolvimento?
Quando comecei a estudar o desenvolvimento enquanto questão histórica, e não simplesmente como uma história de ideias e acções, o consenso generalizado entre académicos era o de que o desenvolvimento foi “inventado” em Janeiro de 1949 quando o Presidente Truman introduziu o programa do “Point IV” no seu discurso de tomada de posse. Esta é, de resto, a visão expressada por Gilbert Rist [professor suíço do Institut Universitaire d'Études du Développement em Genebra], que sugere que o “Point IV” de Truman usa pela primeira vez o desenvolvimento num sentido transitivo, como uma acção que poderia fazer acontecer ao invés de algo que simplesmente “acontecia”, e, ao fazê-lo, alterou o significado do próprio conceito de desenvolvimento. Opiniões semelhantes foram sustentadas por críticos anti-desenvolvimento, mas também por investigadores da política externa norte-americana, como Nils Gilman e Michael Latham. Mas a nossa compreensão da história do desenvolvimento tem vindo a mudar consideravelmente ao longo dos últimos vinte anos.

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Trabalhadores ultimam uma secção da linha de comboio Mombasa-Nairobi, construída no Quénia com capitais chineses. A presença e influência dos programas de desenvolvimento chineses em África “impressiona” REUTERS/Noor Khamis

Em que sentido?
Uma das mais significativas mudanças historiográficas neste período foi o afastamento desta mais antiga, e truncada, visão do desenvolvimento como um projecto do pós-Guerra e da Guerra Fria, ao direccionar o nosso olhar para diferentes contextos, especialmente os coloniais, para encontrar as origens da perspectiva desenvolvimentista. Hoje é amplamente aceite que o desenvolvimento tem uma história bastante mais profunda do que era anteriormente assumido. Creio que a tendência para olhar para o desenvolvimento na longue durée abriu outras interessantes avenidas de inquirição histórica, incluindo o estudo dos antecedentes, anteriores à Guerra Fria, do desenvolvimentismo e modernização norte-americanos. Também despertou interesse em explorar histórias do desenvolvimento mais “amplas” e globais, histórias que que vão além das fronteiras dos Estados Unidos e da Europa Ocidental com o intuito de integrar uma maior diversidade de experiências históricas. Por exemplo, as estratégias de desenvolvimento (ou inspiradas) dos modelos soviético e chinês, regiões como a Europa de Leste e a América Latina, perspectivas ambientais e de género, actores não-estatais, e a capacidade de acção e reacção dos “beneficiários” do desenvolvimento no Sul global.

Ainda assim, a Guerra Fria teve um papel não despiciendo nesta história particular?
Apesar do que disse antes sobre tentarmos olhar para lá das “lentes da Guerra Fria”, seria de igual modo errado descartar completamente o impacto da Guerra Fria. Não creio que seja possível qualquer tipo de contestação de que o seu contexto nos anos 1960 e 1970 foi, em vários sentidos, único; pode não ter testemunhado a “invenção” do desenvolvimento (que claramente antecedeu o pós-guerra) mas gerou seguramente uma intensidade e urgência que fizeram dos programas de desenvolvimento internacionais marcadamente mais globais no seu alcance e ainda mais profundos na sua implementação.

Este processo esteve de alguma forma ligado com a criação do “Terceiro Mundo”?
Em grande parte, esteve relacionado com as vagas de descolonização que assolaram os impérios coloniais europeus após a II Guerra Mundial, e que geraram uma intensa competição entre os dois principais adversários da Guerra Fria, e os seus respectivos aliados, na procura de acesso a recursos, mas também da lealdade dos estados recém-independentes do “Terceiro Mundo”. Em alguns casos, os novos líderes e governos nacionalistas foram capazes de tirar partido das rivalidades da Guerra Fria ao explorar os dois lados, um contra o outro. Isto podia criar oportunidades para uma negociação política e económica mais eficaz tendo por fim aceder a ajuda externa e assistência militar.

E como evoluiu após o fim do conflito bipolar?
À época, muitos críticos e activistas defenderam que com o fim da Guerra Fria, a própria ideia de desenvolvimento deixara de ser relevante e tornar-se-ia obsoleta. E, no entanto, poucos anos depois, economistas e outros decisores políticos encontravam-se num afã a projectar novos planos e intervenções. Mas alguma coisa tinha claramente mudado. A ruptura pós-Guerra Fria gerou uma assinalável falta de fé por parte de todos os lados do espectro político em soluções geridas pelo Estado e pelo planeamento, pelo menos durante algum tempo. Houve uma busca por mecanismos alternativos, fossem eles as forças do mercado, actores não-governamentais ou movimentos sociais e comunidades locais.

A que se deve essa busca por alternativas?
Sem o sentido de urgência da geopolítica da Guerra Fria, o compromisso dos Estados Unidos, bem como de outros vários estados doadores ocidentais, para com o desenvolvimento das nações mais pobres do mundo desvaneceu-se nos anos 90 e no início do milénio, e a percentagem do Produto Nacional Bruto adstrita à assistência ao desenvolvimento no estrangeiro diminuiu consistentemente. O fim do conflito bipolar também reduziu o espaço de manobra de muitos países em desenvolvimento visto que o poder de negociação de que tinham gozado subitamente desapareceu. Por outro lado, novas oportunidades e novos dadores despontaram no horizonte. Hoje, por exemplo, se se for a praticamente qualquer país da África sub-saariana, será muito difícil evitar ficar impressionado pela influência e presença crescentes das empresas chinesas e de programas de desenvolvimento e projectos de construção de infra-estruturas financiadas pelo Estado chinês. A China fez eclipsar os Estados Unidos enquanto principal país dador no continente.

Como responderia àqueles que sustentam que o desenvolvimento, tal como outros conceitos supostamente de “origem” Ocidental, são meros substitutos de uma “missão civilizadora” imperial?
Diria que há paralelos entre o desenvolvimento e a missão civilizadora, mas seria uma grosseira simplificação dizer que é um mero substituto. O colonialismo europeu em África e noutros sítios tinha como predicado a criação de uma relativamente rígida e formal ordem hierárquica que claramente estabelecia barreiras e fronteiras separando os colonizadores dos colonizados. Este distanciamento formal influenciou ideologias imperiais como a missão civilizadora e moldou os objectivos mais gerais que tais ideologias tentaram alcançar, de forma profunda e contraditória. A missão civilizadora oferecia a possibilidade de ascensão e assimilação para alguns súbditos coloniais, mas as barreiras eram múltiplas e os caminhos extremamente estreitos. O desenvolvimentismo colonial também foi condicionado pelas hierarquias e distanciamento formal do domínio colonial, mas os trilhos e oportunidades que abriu para a elevação da condição das populações coloniais eram bastante mais amplos e, afinal, muito menos controláveis. A natureza amorfa do desenvolvimento significa que este pode prestar-se facilmente a um vasto conjunto de usos e objectivos.

Um dos aspectos mais interessantes dos estudos históricos do desenvolvimento tem que ver com a forma como os julgamentos críticos de “neo-liberais” e “pós-estruturalistas” partilharam algumas características e revelaram uma “afinidade electiva” particular, como o holandês Jan Nederven Pieterse a classificou. Qual a sua opinião?
Estou de acordo com essa avaliação. Eu argumento que o pós-desenvolvimentismo foi essencialmente uma crítica conservadora e romântica do desenvolvimento; uma crítica que olhou para a modernidade como uma imposição ocidental indesejada sobre as populações do “Terceiro Mundo”, que tinham os seus próprios modos de vida alternativos. Dirigiram o olhar nostálgico para comunidades e movimentos sociais locais auto-suficientes que existiam fora do Estado enquanto panaceia para a “crise do desenvolvimento”. Ainda que seja uma postura ideológica muito diferente da do neoliberalismo, existem algumas afinidades entre as duas posições, em particular a atitude partilhada face ao papel do Estado e a suposta falência do desenvolvimentismo de Estado. Graças à maior influência política e económica do neoliberalismo naquela conjuntura histórica particular, a consequência agregada do pós-desenvolvimentismo foi a de, talvez inadvertidamente, ajudar a reforçar a agenda económica anti-estatal e favorável à economia de mercado do projecto neo-liberal.

Quando pensamos em desenvolvimento frequentemente o associamos a alguns dos desafios colectivos mais prementes: por exemplo, a protecção ambiental ou as migrações em massa. Qual é o passado destas ligações?
Voltamos à imagem do jogo em que estão duas pessoas a puxar uma corda. O exemplo da protecção ambiental que referem é um caso a reter. No rescaldo da Grande Depressão dos anos 30, os debates sobre desenvolvimento assumiram um pendor claramente favorável aos esforços de conservação e protecção do ambiente. No império britânico havia uma crescente consciência entre os peritos e consultores no Colonial Office acerca dos constrangimentos ambientais e climáticos do desenvolvimento tropical, e o reconhecimento da necessidade de planeamento a longo prazo e acção coordenada para resolver os problemas da erosão dos solos e da má-nutrição nas colónias. As directivas políticas que estes peritos formularam visavam reorganizar a agricultura em pequena escala com o objectivo de produzir comunidades locais estáveis e auto-suficientes, que eles entendiam estar em risco de ruptura sob a pressão da degradação da terra e do crescimento da população “excedente”. A Segunda Guerra Mundial, seguida da Crise da Libra Esterlina em 1947, gerou um conjunto de novos imperativos que recalibraram mais uma vez o debate num sentido mais produtivista. As políticas anteriores à guerra, de conservação, perderiam a sua capacidade de atração durante as décadas de 50 e 60 mas voltariam ressurgir no seguimento da crise económica da década de 70. Parecia que o debate sobre o desenvolvimento tinha completado o círculo durante a década de 80 com a codificação do conceito “desenvolvimento sustentável” como doutrina oficial da ONU.

Acha que os “praticantes” do desenvolvimento estão cientes deste passado mais longo?
Infelizmente, se se ler o relatório da Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento não encontrará qualquer referência aos mais precoces esforços de conservação colonial ou sobre as lições que poderiam ter sido extraídas a partir do seu estudo. Pior ainda, a maioria dos autores do relatório parecem estar completamente alheados de qualquer esforço passado, como se fossem pioneiros a começar do nada.

Ainda é útil mobilizar um conceito tão criticado como o de “desenvolvimento”?
A alternativa seria não fazer nada, o que é inaceitável. Podemos usar um termo diferente para descrever estes esforços – “empowerment” [empoderamento], por exemplo –, mas não irá fazer grande diferença. Banir o conceito não irá alterar a realidade da situação. Por esta razão, continuo a acreditar que o “desenvolvimento” é um conceito útil. O que gostaria de ver era o estabelecimento de um diálogo sério entre historiadores do desenvolvimento e a comunidade mais ampla do desenvolvimento. Com isto não estou a querer dizer que “nós”, historiadores, devamos adoptar o nosso trabalho para o tornar mais digerível para decisores políticos ou que a História deva ser vista como uma “ferramenta” para aperfeiçoar teorias e modelos do desenvolvimento. Antes, faria um desafio aos agentes do desenvolvimento no sentido de confrontarem a complicada história do desenvolvimento nos seus próprios termos. Gostava de os ver a dialogar com o passado difícil da sua profissão.

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