O verso de Manuel de Freitas ter-lhe-á regressado ao pensamento, como tantas vezes havia acontecido nos últimos 14 anos. Dina Ferreira entristecia ao perceber que a ameaça de fim seria, desta vez, o fim efectivo. As portas da Poetria, única livraria de poesia e teatro do país que fundou quando se reformou das salas de aulas, iam mesmo ter de fechar. E o verso que um dia citou num e-mail a pedir ajuda aos amantes da sua livraria onde cabe o mundo inteiro voltava a fazer sentido: “Abraça-me com força agora que vou morrer”.
O abraço veio de novo. Inesperado. Nuno Queirós Pereira e Francisco Garcia Reis entraram pela porta da Poetria como tantas vezes faziam e deram com a livreira resistente em modo cansada com aquela batalha de anos prestes a ser perdida. Estávamos em Agosto e a decisão estava alinhavada: no final do ano, Dina fecharia a sua “livraria gourmet”, como um dia lhe chamou Valter Hugo Mãe.
Quando chegaram a casa, Nuno e Francisco, clientes da Poetria há anos, puseram-se a conversar. E se ali estivesse a possibilidade de tornar real o sonho antigo de ter um projecto cultural no Porto? No dia seguinte, a proposta estava feita: “Fui apanhada de surpresa, mas por serem eles acabou por ser uma coisa pacífica e harmoniosa”, graceja.
Os últimos meses foram de “estágio” para Nuno e Francisco. Exploraram os livros, um a um. Perceberam o funcionamento da casa (e o enorme trabalho que dá mantê-la). Foram apresentados aos clientes mais fiéis. Uma lenta “passagem de testemunho” agora finalizada. O casal é o novo rosto da pequena livraria da Rua das Oliveiras, “uma espécie de objecto de desejo” nas palavras ex-professora de português e francês?.
De leitores a livreiros...
Nuno, 32 anos, rendido às áreas científicas por uma ideia de estabilidade profissional, nunca abandonou a paixão pelas letras. É radioterapeuta no Instituto Português de Oncologia há uma década, lê muito, “rabisca umas coisas”, fez um mestrado em Estudos Literários. E assim se cruzou com a Poetria, onde ia em busca de obras e autores que não existiam noutros lados. Francisco, 36 anos, transmontano a viver no Porto desde a maioridade, estava desempregado há coisa de cinco meses quando o encontro com a Poetria se concretizou. Estudou Ciência Política, fez mestrados em catadupa (Sociologia, História, Cinema), é leitor enamorado e “dizem que um óptimo diseur” (declamador) também.
“A Poetria foi a possibilidade de criar o meu posto de trabalho, estou aqui a tempo inteiro, e de concretizar a nossa ideia antiga”, explica Francisco, admirador de Herberto Helder e de interesses literários pouco canónicos. A Poetria vai “manter a sua identidade” de livraria de poesia e teatro, mas juntar novos versos ao poema. A dupla vai apostar em publicações sobre cinema, já compôs uma estante dedicada à ficção (“uma selecção muito cuidada”), vai aumentar a oferta de obras em língua inglesa, apostar na poesia brasileira e em pequenas editoras, fugir do “óbvio ou do best-seller”.
Os primeiros sonhos devem ganhar forma já no primeiro trimestre de 2018. Dando continuidade a um esboço de uma editora já iniciada (a Poetria tem publicadas algumas obras), Nuno e Francisco querem dar mais força ao projecto de produção própria. Haverá livros e também uma revista mensal de poesia e teatro. Além disso, os novos donos da Poetria vão continuar com os eventos, estão a desenhar um projecto de poesia nas escolas e a erguer uma parceria com uma associação de crianças e adultos com necessidades especiais. Prometem mostrar que “qualquer pessoa pode declamar poesia” e que a arte pode e deve ser usada como “terapia”.
Desde que estão na livraria, têm feita prova de uma teoria que Dina Ferreira sempre teve: “Com meios humanos e tecnológicos, a Poetria pode sobreviver”. Nuno — leitor em mutação, sempre em busca de novos registos, apaixonado por Eugénio de Andrade — sorri enquanto reflecte no assunto: “Acredito que vai correr bem. Os livros são um nicho, os livros de poesia e teatro ainda mais. Mas também é verdade que quem lê poesia lê sempre. É fiel”.
O cartão Viver Poetria vai ser remodelado e dar ainda mais vantagens aos clientes. Em cima da mesa estão ideias como acumular dinheiro em cartão por cada compra, receber a revista da casa gratuitamente ou alargar as parcerias, como a existente com o Teatro Nacional de São João.
O resto, escrever-se-á com o tempo, como um poema. E terá certamente narrativas surpreendentes. “No fundo, isto não é bem uma livraria. Sei lá o que é. Talvez se possa falar de serviço público. Acho que passei a compreender melhor o ser humano desde que estou aqui”, examina Dina Ferreira, que fez da Poetria uma segunda pele. Ali, conheceu um dia Anabela Moreira, uma prostituta. Ela copiava para um caderninho os versos que lia na montra da livraria e um dia entrou para mostrar a Dina o que escrevia. Ou aquele arrumador de carros que juntou dinheiro para comprar um livro que namorava há algum tempo.
“A poesia também serve para ajudar a aproximar as pessoas”, acredita Nuno. Assim foi com ele, Francisco e Dina, num encontro que foi bóia de salvação de uma livraria. E afinal, como escreveu Maria Belchior à livreira fundadora da casa quando esta lhe anunciou a passagem de testemunho, “como havia a Poetria de morrer se ela é feita de sonho?".