Um fenómeno criminal que não conhece classes sociais ou económicas
Não é minha função ou intenção comentar directamente o conteúdo da sentença. É evidente que, não obstante, todas as decisões dos Tribunais são passíveis de crítica, vivendo-se em Portugal um tempo relativamente neófito neste sentido, de normalidade democrática, desde que contida em certas balizas. Em casos tão mediatizados, há um aspecto positivo que convém salientar: a visibilidade de um fenómeno criminal que não conhece classes sociais ou económicas.
Se a absolvição do arguido do delito mais “sonante” foi correcta ou não de um prisma jurídico-penal, dependerá do que a(s) instância(s) de recurso vier(em) a considerar em face dos factos dados como provados e não provados e da audição da prova produzida ou examinada em julgamento na 1.ª instância. Interessa salientar que o crime do art. 152.º do Código Penal (CP) exige que se prove que o agente tratou a ofendida (física e/ou psicologicamente) de modo a lesar a sua própria dignidade pessoal, aviltando-a, humilhando-a, reduzindo-a a uma condição de (quase) objecto. Assim é a interpretação que vimos dando ao segmento “infligir maus tratos” e que está sempre sujeito a uma hermenêutica complexa.
Uma última nota que gostaria de salientar é a circunstância de a sentença tecer comentários quanto à personalidade da assistente – uma “mulher determinada, independente e auto-suficiente em termos financeiros” –, para, com recurso às máximas da experiência comum a que o julgador está vinculado (princípio da livre apreciação da prova do art. 127.º do Código de Processo Penal), daqui retirar que não é crível que, a propósito de um concreto episódio, tenha existido o crime do art. 152.º do CP. Em si, este tipo de considerações são auxiliares válidos como quaisquer outros para poder inferir que o delito não terá ocorrido. Porém, e apenas, sublinhe-se, se e na medida em que corroborados por outros, uma vez que é conhecida a dificuldade extrema, em muitas situações, de a ofendida se queixar, por tantas razões, interrompendo o “ciclo da violência”. E, aqui, a circunstância de a assistente ser figura pública pode funcionar como factor propulsor para a queixa ou, ao invés, para a ocultação do que alegadamente se passaria, uma vez que o modo como o público percepciona estes seres humanos é um factor nada despiciendo no seu trabalho.
Em conclusão, só mesmo os sujeitos processuais que acompanharam todo o processo e o Tribunal da Relação de Lisboa, que, por certo, será chamado a decidir do recurso a interpor pela assistente e/ou pelo Ministério Público, poderão dizer se se fez justiça no concreto caso.