Num evento de três dias que terminou na quarta-feira, o Centro de Inteligência Têxtil (CENIT) juntou no Norte um grupo de 33 designers de oito países, representantes de algumas das mais conceituadas escolas de moda da Europa, e outros profissionais da indústria. Começou na segunda-feira, com uma visita a duas fábricas têxteis do Norte de Portugal, prosseguindo na terça-feira com a conferência Design & Sourcing in Europe e a entrega de prémios Fashion Design Competition e terminando na quarta com a visita a três outras fábricas.
O evento viu destacados, entre outros, o designer de calçado português Daniel Gonçalves (com um prémio total de 7500 euros), da Lisbon School of Design, e o criador belga de vestuário Cyril Bourez, da escola La Cambre. Contou com a parceria da Associação Portuguesa dos Industriais de Calçado, Componentes e Artigos de Pele e Seus Sucedâneos (APICAPPS), a Associação Nacional das Indústrias de Vestuário e Confecção (ANIVEC), e da ModaLisboa — responsável, essencialmente, por todo o trabalho de curadoria –, bem como o apoio do programa Portugal 2020.
“Queremos que as escolas [nacionais e internacionais] conheçam a nossa indústria”, explica Manuel Teixeira, CEO da CENIT. Um dos objectivos deste cruzamento de iniciativas foi a interacção entre designers e empresários. “Funciona muito bem no centro da Europa e nós queremos fazer parte desse circuito. Para isso temos de chamá-los cá”, justifica.
O grupo de estudantes e jovens designers de moda de vários países europeus convidados ocupavam dois autocarros grandes — junto com alguma imprensa nacional e internacional — na visita às fábricas. As paragens de segunda-feira representavam bem duas das principais facetas da indústria têxtil portuguesa de hoje: a confecção de qualidade para marcas premium e fabrico de fast fashion – termo utilizado para descrever marcas direccionadas para as tendências de moda de curta duração, como a H&M e a Zara.
Localizada no centro da indústria têxtil de Portugal, a Calvelex é uma das maiores fábricas e tem como clientes marcas de gama superior e uma produção de peças de maior dimensão que pode chegar a um milhão por ano. A alguns quilómetros, a Polopique — igualmente impressionante em termos de dimensão — serve um mercado bem diferente. Cerca de 90% da sua facturação vem da Inditex, a gigante espanhola detentora da Zara, Pull&Bear e Massimo Dutti, entre outras. Além de produzir os próprios tecidos e peças, vende também os seus designs ao grupo.
A indústria têxtil portuguesa destaca-se hoje pela qualidade da confecção e rigor nas prazos de entrega. É sobretudo esta última questão que faz com que a espanhola Inditex se vire a oeste apesar do custo de mão-de-obra inferior nos países asiáticos, explica Eduardo Guimarães, enquanto nos guia por uma sala da Polopique, onde cerca de duas centenas de pessoas trabalham num único modelo de camisa de homem. Regra geral, uma peça assim terá uma encomenda de cerca de 20 mil unidades e esta fábrica em concreto tem uma capacidade de produção de 3500 a 6000 por dia, o que significa que passarão alguns dias à volta da peça – numa lógica de linha de produção. Passando os corredores de costureiras que completam uma única tarefa, no final da sala chegamos às mesas ocupadas por camisas, já dobradas, etiquetadas e com alarme. A Polopique fabrica inclusive os próprios tecidos e consegue fazer chegar as encomendas de roupa aos centros de distribuição espanhóis num espaço de duas a três semanas.
A indústria têxtil portuguesa é cada vez mais conhecida pelos serviços extra que presta aos clientes. A concepção de peças para as várias marcas da Inditex é uma parte importante da Polopique. É Rita Afonso – distinguida com uma menção honrosa e um prémio, pela colecção própria que apresentou na última edição do Sangue Novo, da ModaLisboa – que guia o grupo pelos escritórios onde flui a criatividade. O resultado final é normalmente uma colaboração contínua entre os dois lados e por vezes uma peça pode chegar a ter cerca de 60 protótipos – para acertar questões como os tecidos e acabamentos, que têm de ser optimizados em termos de preço. O volume de trabalho está calibrado à escala industrial: a criadora recorda uma altura que a equipa teve de concluir 60 peças em dois dias. Por outro lado, também a Calvelex – além de ser sócia maioritária de duas marcas de criadores de moda – desenvolve duas colecções (uma mais conservadora e outra mais sofisticada) por estação, com designs que apresenta aos clientes, que os podem incorporar nas respectivas linhas.
Caminho a percorrer
Na conferência que encheu na terça-feira o salão árabe do Palácio da Bolsa estiveram em cima da mesa temas como a evolução da indústria têxtil de Portugal e a sua ligação com as escolas de moda. O debate esteve centrado à volta de designers e de fábricas. Portugal parece ter aceite a condição de fabricante para fora, abanando com orgulho a bandeira de uma indústria têxtil fortemente qualificada. No campo da criação e distribuição de marcas próprias – onde está o principal valor acrescentando – é que ainda há bastante caminho a percorrer.
Os ventos têm sido benéficos para a indústria portuguesa, aponta Manuel Teixeira, ao PÚBLICO: “Durante anos fomos esmagados pela Ásia” e, entretanto, “o factor capacidade de resposta ultrapassou o factor preço”. Além disso, falou-se ainda na conferência, numa realidade em que os consumidores se preocupam com questões ambientais e responsabilidade social, Portugal ganha a nível de competitividade.
Com a esmagadora maioria da produção das fábricas têxteis a servir empresas de fora, a dependência do sector – que deverá este ano facturar 3,2 mil milhões de euros, de acordo com César Araújo, presidente da ANIVEC – no estrangeiro é determinante. “A indústria portuguesa já foi abaixo no passado e já veio acima novamente. Neste momento temos uma indústria muito mais qualificada do que no passado”, aponta Eduarda Abbondanza, directora da ModaLisboa. Mas há que olhar também para o futuro. “Estas flutuações dos grandes produtores podem gerar muito dinheiro, mas não é fixo, para sempre. Como tal, é bom que nós nos blindemos, criemos músculo. Se cada uma dessas indústrias for juntando um pequeno percentual que não depende tanto [de fora], o país está mais seguro”, continua.
Uma das direcções para qual a indústria tem avançado é para a criação de private labels – como é o caso da Calvelex. Ainda assim, o design e a indústria de moda em Portugal são duas realidades relativamente distantes. Portugal “é um país que não tem tradição de marcas”, comenta Eduarda Abbondanza. Para a directora da ModaLisboa, é uma condição resultante da separação das disciplinas de “design e criatividade” de todas as outras relacionadas com o aspecto de negócio, desde a comunicação à distribuição, passando pelo packaging. “Nós não temos uma indústria da moda”. Enquanto Espanha tem de tudo, seja, marcas de luxo, média gama ou Zaras, conclui.
“Os produtos são feitos a partir de um mercado”, sublinha Manuel Teixeira. Caso contrário, um projecto “provavelmente está dotado ao fracasso”. “Primeiro temos de encontrar os segmentos de mercado: quem vai consumir, quem são os concorrentes, qual é a nossa estratégia de distribuição, qual a nossa estratégia de comunicação. Não se pode ter, num mercado altamente competitivo como o da moda, a lógica do empurrar o produto para o mercado – é ao contrário.”
Durante a conferência de terça-feira, João Paulo Pinto Machado, actual vice-presidente da ANIVEC, tomou espontaneamente o pódio para destacar a importância da subida na cadeia de valor. “A Europa está a olhar para nós Portugal, porque somos dos melhores”, comenta. O desafio, continua, “é criarmos competências internas para proactivamente oferecermos aos clientes mais do que o saber fazer”, como, por exemplo, “sabermos desenvolver o produto, desenvolver a modelagem e integrar informáticos e comunicações — a tal indústria 4.0”. “Porque o saber fazer de Portugal está nas etiquetas espalhadas nos maiores mercados”, concluiu. Ao PÚBLICO, comenta ainda que, depois de anos a olham para a média/alta gama, Portugal tem de começar mais a apontar para o luxo.