Cancro dos achismos
Como combater um relativismo intelectual crescente, na era da “pós-verdade”?
Achamos, hoje, mais que nunca. Entendemos que ter uma opinião, fundamentada ou arrogada, nos distingue, nos atribui individualidade e nos permite alguma relevância, num mundo frívolo que, sempre em busca do novo fenómeno, despreza a sabedoria serena. Ora se, efectivamente, saber arquitectar uma opinião, articulada e maturada, é uma virtude a cultivar, “achar coisas” é fenómeno de natureza distinta.
“Contra factos, não há argumentos” é um mantra em decadência na realidade deste século. E a frase, apesar de susceptível a interpretações totalitárias, quando olhada à luz de um honesto bom senso, diz-nos o óbvio. Aquilo que algo é difere daquilo que queremos que algo seja. Uma ideia basilar para a estruturação e supervivência de uma sociedade. Não é por desgostarmos de determinado facto que descende em nós a habilidade de o alterar com um juízo de valor. É preciso estabelecer que há factos — fenómenos, conceitos, acontecimentos — que o são por simplesmente o serem, pela natureza da razão. E depois, e só depois, podemos e devemos erguer uma argumentação em redor deles. Porém, se não há chão, se não há terreno comum em que nos entendamos, se dois mais dois for igual ao que se quiser, haverá forma de existirmos? Se tudo “depende”, se “isso é a tua opinião”, se “cada um pensa o que quer”, se tudo são nuvens ou vapores inconsistentes, mutáveis e relativos, o que fica para nos segurar?
Esta linha de pensamento, um fenómeno que tem várias origens, é potenciada por diversos cliques de pensamento e manifesta-se ubiquamente, desde a inconsequente conversa de café à orwelliana realidade dos “factos alternativos”. Aguçadamente, um dos lados deste problema foi aflorado por Obama, em 2016, quando interpelava uma assistência sobre a origem desta nova linhagem anti-intelectual no debate político. Concluía, com o seu carisma habitual, que “in politics and in life, ignorance is not a virtue. It’s not cool to not know what you’re talking about”. Mas, efectivamente, parece ser. Pensar diferente, só por essa mesma razão, e não por especial inovação intelectual ou raciocínio arguto, é visto como uma forma positiva de rebeldia, de “em mim ninguém manda, penso o que quero”.
Não atribuo responsabilidade por este cisma à população em geral, nem entendo haver origem unívoca para esta new age anti-intelectual. Sei, sim, dizer que alguma arrogância intelectual de especialistas das mais diversas áreas que não souberam, em tempo certo, contextualizar os seus factos de algibeira com a humildade de quem deve dizer “pensa-se que é assim”, terá contribuído para a sua descredibilização, quando tantas vezes as “verdades” são depois desmentidas pela realidade. Basta olhar para a crise económica da última década e constate-se o estatuto de ciência oculta que a economia adquiriu, muito pela embriaguez de ego dos seus agentes. Há beleza em reconhecer humildemente que não se sabe. Até porque, para uma mente bem arrumada, não saber é, na verdade, uma boa oportunidade.
O cancro intelectual de dobrar a realidade à nossa vontade, visionando-a por umas lentes tão nossas, tão pessoais, como se de “wishful thinking” se tratasse, tem metástases em inúmeros aspectos da sociedade. Recentemente, lembremos o caso gravíssimo do surto de sarampo, onde se viu a ignorância extravasar o debate de ideias para ceifar vidas inocentes, à boleia de um achismo infundado sobre a vacinação. Há por aí umas mães e pais que julgam, certamente iluminados por razões de um calibre que não atinjo, que centenas de estudos sobre vacinas, centenas de milhões de casos de sucesso de indivíduos vacinados por todo o mundo e uma óbvia boa-fé dos clínicos, investigadores e políticos que promovem a prática da vacinação, pouco mais são que um grande enleio maligno para danificar os seus infantes. Entretanto, os benefícios, vão-nos tendo, mas isso é outra conversa. É aquela mãe que achava que uma boa alimentação bastava. Não, está enganada. Está mal. Não sabe, esteja calada.
Há questões em que a clareza dos factos se funde com a obviedade, que sinto que nos perdemos em debate inútil quando, com o princípio democrático de a todos dar voz, permitimos equivaler todos os lados do debate. É como quem acha que o criacionismo é uma teoria alternativa ao evolucionismo. Não é. Uma é artefacto da religião, um desejo antropocêntrico de importância e de centralidade no propósito do universo; outra é a observação sistemática, rigorosa, objectiva e desapaixonada da realidade. É como quem acha que as alterações climáticas são uma casualidade, como quem tem de seu juízo que a homossexualidade é uma escolha, como quem tem de si para si que a medicina natural não tem produtos químicos — terá o quê, nesse caso? Uma sistematização da arbitrariedade no julgamento do que é factual permite, em extremo, a eleição de um Presidente com ausência de normal encéfalo, para quem a realidade é o que for que lhe convém. Representa a total ausência de objectividade, rigor, factualidade e humildade na vida política que depois escoa, tão perniciosamente, para todos os carizes da sociedade.
Como combater um relativismo intelectual crescente, na era da “pós-verdade”? Quando os meus avós eram gente da minha idade, há já lá tantos anos, havia uma humildade quase servil, imposta pelo regime — os doutores é que sabem. Não é a alternativa. A universalização do acesso ao conhecimento é uma riqueza inestimável. É, contudo, uma igualmente incalculável responsabilidade. Saber usar o saber é crucial. Como sociedade, temos uma responsabilidade colectiva de nos inspirarmos de serenidade intelectual para olhar em frente e ver, não a projecção da nossa vontade, mas aquilo que o universo tão bem arrumou. Então, depois, achemos coisas.