Aquilo que eu devo a Belmiro de Azevedo
Quem guarda a liberdade de um jornal deficitário não é o seu director – é, em primeiro lugar, o seu accionista. E se o PÚBLICO hoje continua livre, é a Belmiro de Azevedo que o devemos. Esse é o maior elogio que lhe posso fazer.
Quando o PÚBLICO nasceu, a 5 de Março de 1990, eu tinha 16 anos e era um estudante do 11.º ano do liceu Mouzinho da Silveira, em Portalegre, empenhado em entrar para o Instituto Superior Técnico. Já gostava bastante de jornais, e O Independente, lançado dois anos antes, era a grande referência da minha geração, por causa da escrita de Miguel Esteves Cardoso, Vasco Pulido Valente e Paulo Portas, em conjunto com a criatividade inicial do Caderno 3 e o prazer adolescente em provocar tudo e todos, de que sinto muita falta. O PÚBLICO, contudo, era uma outra coisa, bem mais difícil de conseguir, dada a ambição desmedida com que nasceu e o dinheiro que foi necessário para o fazer. Se O Independente em 1990 era um excelente divertimento, o PÚBLICO esforçava-se por ser um dos melhores diários do mundo – e, nos seus tempos de glória, conseguiu.
Esse PÚBLICO mudou a minha vida. Eu ainda cheguei a entrar para Engenharia Química no Instituto Superior Técnico, mas após dois anos e meio a arrastar-me penosamente por análises matemáticas, electromagnetismos e curvas de titulação, decidi voltar atrás, estudar Filosofia e Português, e concorrer novamente à universidade. A escolha de Ciências de Comunicação dificilmente teria acontecido se não fosse o PÚBLICO do início da década de 90, onde descobri quase tudo: as críticas aos filmes que passaram a ser os da minha vida, a música de que ainda hoje gosto, os textos de Adelino Gomes e Alexandra Lucas Coelho, a orientação intelectual que em boa medida me faltou na adolescência. Foi por causa desse PÚBLICO que resolvi ser jornalista.
Isto pode ser difícil de compreender para quem faz parte das elites de Lisboa ou do Porto, mas a importância formativa do PÚBLICO da era Vicente Jorge Silva para um miúdo da classe média que cresceu numa pequena cidade do Alentejo, sem cinema, nem livrarias, e numa época em que o mundo digital ainda não tinha sido inventado, dificilmente pode ser sobrevalorizada. Era tamanha a minha paixão pelo jornal que cheguei a ter dez anos de PÚBLICO religiosamente guardados em minha casa, primeiro num sótão, depois num armazém, até os ratos aparecerem e reciclarem, para minha grande tristeza, centenas de quilos de papel.
Eu não seria o que sou hoje sem esse PÚBLICO, e por isso não seria o que sou hoje sem Belmiro de Azevedo. Uma das consequências extraordinárias de quem tem um espírito empreendedor, e coloca todo o seu talento e empenho a criar empresas, é a forma como consegue influenciar milhares de vidas, boa parte das quais nunca chegará a conhecer. Eu nunca conheci Belmiro de Azevedo e, no entanto, tenho para com ele essa enorme dívida de gratidão que é o PÚBLICO com o qual cresci, o PÚBLICO dos anos 90, um projecto absolutamente megalómano que em boa hora ele financiou e sustentou até aos dias de hoje, sem qualquer lógica comercial, mas com uma lógica de serviço público e de serventia à comunidade, que o país bem precisa.
Embora o PÚBLICO de 2017 já não seja o PÚBLICO de 1990 – até porque se fosse, eu próprio não estaria a escrever aqui –, o jornal manteve-se como um espaço de liberdade e de independência, espaço esse que é uma extensão dos jornalistas que o criaram, mas sobretudo do empresário que o fundou. Quem guarda a liberdade de um jornal deficitário não é o seu director – é, em primeiro lugar, o seu accionista. E se o PÚBLICO hoje continua livre, é a Belmiro de Azevedo que o devemos. Esse é o maior elogio que lhe posso fazer.