Por que valem as bitcoins tanto dinheiro? (e outras questões sobre o fenómeno)

A tecnologia não é nova (tem quase uma década), mas nunca despertou tanta atenção. A bitcoin passou esta semana a fasquia dos dez mil dólares e continuou a subir até aos 11 mil.

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Uma grande operação de mining de bitcoins, na China LUSA/LIU XINGZHE/CHINAFILE

A bitcoin, uma moeda digital que funciona de forma descentralizada, revelou-se um dos fenómenos do ano, batendo sucessivos recordes de preços, e suscitando interesse e desconfiança por parte de investidores, bancos centrais, reguladores e muitos milhares de utilizadores. O preço quebrou esta semana mais uma barreira, ao atingir os dez mil dólares, continuando esta quarta-feira a subir até cerca de 11 mil. No início do ano, valia onze vezes menos.     

As bitcoins – e as outras criptomoedas –  suscitam múltiplas críticas, vindas de Governos e nomes importantes do sector financeiro. O presidente do banco norte-americano JP Morgan definiu a divisa como "uma fraude" apenas útil a "traficantes de droga, assassinos e criminosos" (no entanto, é um apoiante da blockchain, a tecnologia por detrás da bitcoin).

Em Setembro, por exemplo, a China e a Coreia do Sul proibiram a angariação de financiamento através do lançamento de novas moedas digitais (uma operação conhecida como ICO). As autoridades chinesas foram mais longe e ordenaram que os serviços de transacção de divisas digitais encerrassem no país. Na Rússia, o presidente Vladimir Putin também descreve as criptomoedas como “uma oportunidade de lavagem de dinheiro” e “terrorismo financeiro”, mas acha importante criar regulação.

Por outro lado, há países a apoiar a tecnologia: o Japão publicou um documento a oficializar transacções com moedas digitais, e tanto a Índia como a Suécia estão a analisar a possibilidade de lançar as suas próprias criptomoedas. 

Em 2013, a moeda já tinha tido um surto de popularidade, quando correu a história de que muitos cipriotas, a braços com uma crise de liquidez no país, estavam a converter o seu dinheiro em bitcoins. Mas 2017 foi o ano em que a bitcoin saiu definitivamente do nicho de entusiastas. Ainda assim, a moeda assenta num sistema complexo e a tecnologia está longe de massificada. Eis um guião para o que se está a passar. Começando pelo princípio.

O que é a bitcoin?

É um tipo de dinheiro digital, que pode ser enviado electronicamente entre utilizadores em qualquer parte do mundo, sem necessidade de uma entidade central (como um banco). É a primeira e mais famosa das chamadas “criptomoedas”. Foi apresentada ao mundo em 2008, num artigo escrito por Satoshi Nakamoto, provavelmente um pseudónimo.

A proposta de Nakamoto era criar um “sistema de dinheiro electrónico” (que não tem manifestação física e existe apenas no mundo digital) “que usa redes peer-to-peer” (em que os computadores estão ligados directamente uns aos outros, de forma descentralizada).

Para evitar que alguém utilize as mesmas bitcoin mais do que uma vez (um dos problemas do dinheiro digital), o sistema assenta numa base de dados distribuída – a chamada blockchain – que regista todas as transacções feitas, e que é mantida pelo esforço colectivo dos vários computadores ligados à rede.

As emissões de bitcoins são feitas periodicamente, de forma automática, e o dinheiro é atribuído ao computador que for mais rápido a resolver uma tarefa computacional, que é necessária para manter o próprio funcionamento da rede.

Como funciona a blockchain?

A blockchain é uma base de dados descentralizada, que nasceu com a bitcoin, mas que é usada por outras moedas e também para fins que não pagamentos (o MIT, por exemplo, está a experimentar emitir diplomas).

Cada utilizador ligado à rede tem a sua cópia da blockchain. As novas transacções de bitcoins são agregadas em blocos e validadas pelos computadores ligados à rede, que competem para ver quem resolve mais rapidamente uma espécie de problema matemático. Quando isso acontece, um novo bloco de transacções é acrescentado à cadeia de blocos já existente, e todos os utilizadores assumem como fidedigna a cadeia mais longa.

Este processo significa que não é preciso uma entidade central a validar as transacções e que qualquer pessoa pode verificar toda a base de dados.

Um dos problemas da blockchain das bitcoins é que as transacções demoram muito mais a serem processadas do que os pagamentos feitos no circuito financeiro tradicional.

A tecnologia suscitou o interesse de vários sectores, da banca à farmacêutica.

Como se obtêm bitcoins?

Há essencialmente três formas de obter bitcoins.

O computador que primeiro validar um bloco de transacções para o acrescentar à blockchain é recompensado com novas bitcoins – é esta a actividade a que normalmente se chama “mining”. O conceito é o de atribuir uma recompensa a quem gastou recursos (tempo, electricidade, capacidade de processamento) na manutenção da blockchain (também é possível cobrar uma taxa para validar transacções).

Porém, angariar bitcoins daquela forma requer actualmente imensos recursos computacionais: há quem tenha armazéns atulhados de processadores dedicados à tarefa.

A maioria dos utilizadores compra bitcoins em bolsas online, que funcionam de forma semelhante às bolsas de acções, mas não são reguladas. É possível um utilizador usar mais do que uma destas “bolsas”, e os preços não são exactamente iguais nos vários serviços.

Outra opção é receber bitcoins de alguém. Por exemplo, como pagamento por um bem ou serviço.

Por que é que as bitcoins valem tanto dinheiro?

É a questão que tem deixado muita gente perplexa.

A bitcoin é aceite como método de pagamento por um número crescente de empresas, mas está longe de ser uma forma de pagamento massificada. A principal razão para ter bitcoins parece ser esperar que o valor suba, o que significa que a valorização será fruto de especulação.

Ainda assim, muito mudou desde o início do ano: a bitcoin começou a despertar a atenção de investidores institucionais e surgiu entretanto a discussão sobre se são um novo tipo de activo, que pode funcionar como uma alternativa às acções e ao ouro, por exemplo.

O fenómeno é circular: a valorização das bitcoins deu azo a inúmeros artigos na imprensa generalista, o que atraiu mais atenção sobre a moeda e fez com que mais pessoas comprassem bitcoins (em parte movidas pelo medo de estarem a perder uma oportunidade de fazer dinheiro). De cada vez que uma valorização atinge um número redondo, surgem notícias sobre a bitcoin estar a bater novos recordes. No entanto, cada mil dólares a mais no preço representa uma valorização cada vez mais pequena: foi muito maior o salto dos mil para os dois mil dólares do que a recente subida dos nove mil para os dez mil.

Quais são os riscos da bitcoin?

Há vários. Por um lado, o valor da divisa varia muito e é possível ganhar ou perder uma fatia significativa do investimento em pouco tempo. Por outro, as bitcoins são ainda uma zona cinzenta em termos legais e não é certo o que vão decidir os reguladores e demais autoridades. Os bancos centrais de muitos países têm feito avisos sucessivos sobre o facto de as bitcoins serem um investimento de alto risco e não serem dinheiro verdadeiro.

Por fim, o próprio funcionamento do sistema é dado a surpresas. Como não há uma autoridade central, as alterações às regras de funcionamento são propostas pelos próprios utilizadores. Recentemente, uma alteração técnica á forma como são validadas as transacções (com o objectivo de acelerar o processo) foi alvo de debate aceso entre as várias partes envolvidas na tecnologia, incluindo empresas, programadores e os utilizadores conhecidos como miners (que se dedicam a validar as transacções e receber bitcoins). Alguns destes optaram por seguir outra via e criaram uma nova moeda, chamada bitcoin cash.

O que são criptomoedas?

As criptomoedas, ou altcoins, são divisas digitais que utilizam um sistema de encriptação para controlar a criação de moedas e a verificação de transacções. Não são, porém, um sinónimo de “dinheiro digital”: o conceito de usar dinheiro real para comprar tokens para utilizar num site ou jogo online existe desde a década de 1990, e as criptomoedas apenas nasceram com a bitcoin.

A inovação é que os métodos de criptografia permitem que não exista uma entidade central responsável pelo dinheiro digital. Está também aqui a a base de uma das grandes críticas ao sistema: como as criptomoedas não têm um repositório central, as autoridades não têm poder sobre elas. Muitas instituições financeiras preocupam-se que as divisas sejam apenas utilizadas para lavagem de dinheiro. Para os apoiantes, porém, as criptomoedas fomentam uma passagem do poder das instituições para os indivíduos.

Em Novembro de 2017, o número de criptomoedas já ultrapassa as 1100. A grande maioria serve apenas para ser transaccionada especulativamente.

O que são carteiras digitais?

Neste contexto, as carteiras digitais são programas de computador que permitem receber e enviar criptomoedas como a bitcoin. Porém, contrariamente a “carteiras convencionais”, não armazenam moedas. A bitcoin, e as suas derivadas, não existem em qualquer formato para além de registos na base de dados distribuída chamada blockchain.

O que fica armazenado nas “criptocarteiras” são as chaves públicas e privadas dos donos, que permitem interagir com outros utilizadores da blockchain, e monitorizar o balanço de criptomoedas que têm. A chave pública permite que outras pessoas enviem criptomoedas e a chave privada permite recebê-las.

Quando alguém “envia” criptomoedas está a enviar uma autorização que transfere a “posse” das criptomoedas para o dono de outra criptocarteira. Para poder utilizar essas criptomoedas, a chave privada do dono da carteira tem de corresponder à chave pública associada à carteira.

Quem inventou a bitcoin?

Ninguém sabe. Satoshi Nakamoto – o autor do artigo de 2008 que descreve o funcionamento da bitcoin – é provavelmente um pseudónimo utilizado pelo criador (ou criadores) da tecnologia. Entre 2008 (quando Nakamoto apresentou o conceito da bitcoin) e 2009 (quando desapareceu completamente depois de lançar o sistema) comunicava apenas através de mensagens online.

No fórum online dedicado à criptomoeda, o fundador tem sido descrito como um homem japonês nascido em Abril de 1975. Muitos refutam esta teoria devido ao nível de inglês de Nakamoto (o relatório original da bitcoin, com a estrutura típica de um artigo académico, foi escrito totalmente em inglês) e à falta de referências ao Japão no seu trabalho. 

Ao longo dos últimos anos, várias investigações jornalísticas têm tentado resolver o mistério, mas sem sucesso.

Há dois anos, um empresário australiano chamado Craig Wright disse ser o verdadeiro Nakamoto. Wright, um obscuro empresário e académico, com múltiplos mestrados e empresas na área da criptografia e segurança informática, encaixava no perfil. Porém, desapareceu da vida pública depois de apresentar informação falsa (incluindo um doutoramento que parece inventado), e não conseguir provar que era, de facto, Nakamoto.

O que é que se pode comprar com bitcoins?

Contrariamente às divisas convencionais – como o euro, a libra e o dólar – a bitcoin não é largamente aceite como uma forma de pagamento.

Existem, no entanto, empresas que já aceitam pagamentos em bitcoin. Alguns exemplos são a loja online da Microsoft (para pagar aplicações móveis e jogos para PC e Xbox), a Dell e algumas agências de viagem como a Air Lituanica e a Air Baltic, na Europa, e a CheapAir, nos EUA. A Wikipedia também aceita donativos em bitcoins. Há também algumas universidades que aceitam o pagamento, como a Universidade de Cumbria, no Reino Unido, e a Universidade de Lucerna, na Suíça. E há algumas pequenas lojas, restaurantes e cafés que também dão aos clientes a possibilidade de pagar em bitcoins.

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