Robin Campillo: “Tive tanto medo da palavra sida, mal a via num jornal, que a partir de certa altura quis que a víssemos por todo o lado”
Achou que ia morrer, descobriu que ia viver e decidiu não conter mais o silêncio e o medo. Activista do Act Up nos anos de maior ferocidade da epidemia, Robin Campillo viu, ouviu, registou. O espectador é agora o destinatário dessa memória que transcende os tempos: 120 Batimentos por Minuto é um espectáculo de raiva e melancolia, dança e tristeza. Antestreia no dia 4, estreia a 7.
Robin Campillo não se lembra de nada do que aconteceu na sua vida enquanto esteve no Act Up, organização a que aderiu em 1992, quando transformou o medo e a raiva em acção política. Isto é, não se lembra de nada do que se passava ao lado do Act Up. Lembra-se que antes, vencida a certeza de que ia morrer (quando achava que era seropositivo...), abandonara o sexo e as emoções para se proteger do vírus. Nascido em 1962, saíra do Idhec, escola de cinema, em 1986, mas esvaíra-se o desejo de fazer filmes. O cinema nada podia, parecia-lhe pitoresco, perante a enormidade do que acontecia: uma epidemia.
Em 1989 fizera o teste e percebera que, afinal, era seronegativo. Mas tinha ficado anestesiado pelos sete anos de medo irracional em que viu amigos morrer e sentiu, como uma “espécie de fenomenologia da epidemia”, o movimento a aproximar-se, a sair da imprensa, das páginas dos jornais com títulos com a palavra “sida”, e a chegar até às pessoas. Foi nesse momento que começou a ouvir falar no Act Up, a ver imagens das suas acções na televisão, os famosos zaps que tanto tinham como objectivo enfiar um preservativo pelo obelisco de 23 metros da altura da Praça da Concórdia, em Paris, como atirar sangue sobre individualidades. Percebeu-se subjugado por expressões como “comunidade sida” que ouvia da boca de gente que lhe parecia alucinada mas que encontravam eco dentro dele. Essas expressões falavam de pessoas que, por serem homossexuais ou toxicodependentes, estavam a ser confrontados com uma catástrofe e ignorados pela sociedade. Nesse momento decidiu que os silêncios, os medos, a opressão não podiam mais ser contidos — nem no seio da sua família.
Supertímido — e pálido, e magro — demorou a perder o medo de entrar nas instalações do Act Up Paris. O que viria a acontecer porque um dia falhou um encontro sexual, e havia reunião activista no edifício ao lado. Robin entrou.
Estaria três anos na organização antes de conseguir tomar a palavra em público. Mas era um dos estrategas da violência simbólica do grupo, em todo o caso visual, cujas acções devolviam ao mundo político a violência que a doença impunha. Como dissera a si próprio no momento em que deixou de resistir à força do Act Up e a ser partícula atraída por outras partículas: “É preciso efectivamente que nos tornemos paneleiros maus, que não sejamos mesmo aceites, e que estejamos mesmo coléricos.” (citamos Agir pour ne pas mourrir, livro de Christophe Brocqua, onde Robin se descreve e ao seu percurso, sendo um dos perfis considerados exemplares do activismo que o Act Up congregou). Ou como ele diz nesta entrevista: como activista fez o mesmo que as personagens de Freaks/Parada de Monstros (1933), de Tod Browning, devolveu aos outros a narrativa que os outros impunham; se era monstro, comportava-se como tal.
Nesse dia, efectivamente, em que do engate passou à política, em que as zonas erógenas ficaram contíguas às do activismo, Robin fazia, sem o saber, a primeira performance Act Up: ali, tudo o que era privado, a sexualidade ou a doença, era já político. E embora sentisse o cinema ao longe, percebe hoje que entrou para a organização “como cineasta”. Porque foi observando, captando, registando.
Seria cineasta, efectivamente, a partir de 2004, com Les Revenants, filme onde começou a encarar a dificuldade das ausências e dos mortos, negociação que se começou a soltar em Eastern Boys (2013), já depois de uma colaboração como argumentista de Laurent Cantet que seria decisiva em A Turma (2008, Palma de Ouro de Cannes), e que se transcende agora em 120 Batimentos por Minuto - Grande Prémio do Júri em Cannes 2017.
É um filme sobre gente que, depois do silêncio dos anos 80, quis controlar a sua história, soltar a palavra e os actos, viscerais, espectaculares, trágicos, para fazer política na primeira pessoa. É um filme em permanente movimento, organismo em metamorfose, a passar do sexo à política, não se prendendo ao pitoresco do “filme de época” (nem se prendendo a qualquer pitoresco), propondo antes ao espectador um vibrante debate no anfiteatro das ideias e da sensualidade — a sala de cinema. Agindo de forma performática sobre o tempo narrativo, o que é um espectáculo em si, juntamente com a raiva e a melancolia, a dança e a tristeza. O espectador é o destinatário de uma memória que transcende os tempos.
Num filme seu de 2004, Les Revenants, os mortos regressam. O que coloca os vivos num embaraço. Era também o seu desconforto, na altura, a lidar como cineasta com a sida e com os mortos? 120 Batimentos por Minuto estava já na sua cabeça e não sabia como fazer? Porque este é um filme em que os mortos regressam. Mas o clima, agora, é oposto ao do constrangimento daquele filme inicial.
Sim, estava já na minha cabeça. Les Revenants nasceu a partir do aparecimento das terapêuticas de combinação tripla. Tinha amigos que eram seropositivos e que estavam à espera de morrer e de repente perceberam que iam ter uma vida. E era preciso fazê-los regressar ao trabalho, e espantou-me que não quisessem regressar, porque entretanto a sida tinha-lhes modificado a vida. Tinham entrado em associações, tinham-se especializado noutras coisas, não queriam regressar. Parecia que estávamos a querer meter mortos-vivos no trabalho. Isto dos mortos-vivos era uma ressonância também do facto de na altura estar a trabalhar com Laurent Cantet no Haiti, em Vers le Sud (2005). Estávamos interessados nos zombies, na forma como os escravos do Haiti não escapavam à escravatura nem com a morte. Regressavam à vida para serem obrigados a trabalhar.
Havia essa relação estranha com o trabalho e uma forma de evocar os anos 1980. Quando, em 120 Batimentos por Minuto, a personagem de Nathan evoca os anos 1980, o momento em que viu fotos dos doentes nos jornais, fala de espanto. Les Revenants era produto desse espanto. Não era tanto o que fazer com os mortos, mas o facto de estarmos numa espécie de espaço-tempo, de não estarmos nem mortos nem vivos. Dou-me conta disso hoje: Les Revenants é um filme sobre esse contacto entre a vida e a morte, em que os vivos não estão tão vivos assim, estão numa espera.
Para lhe mostrar até que ponto esse filme estava de facto já ligado à sida: em 1983, um rapaz com quem tive relações sexuais — lembro-me como se fosse hoje — no dia seguinte leu-me uma frase de [Marguerite] Duras que está em L’Homme Atlantique (1981), que diz “Après votre départ votre absence est survenue”, frase muito simples e estranha. Les Revenants fala dessa frase. Até porque esse rapaz adoeceu e morreu no final dos anos 1980. Foi o último tipo com quem dormi antes da epidemia, depois retirei-me da vida sexual e sentimental para me proteger — de tudo, como da vida. Essa frase, a ausência de que ela fala, não é a ausência dos que morreram, é a ausência dos que regressaram à vida. Esse filme falava dessa estupefacção, desse sentimento de limbo entre a vida e a morte em que vivi durante os anos 1980, antes de ter feito da sida um objecto político.
Já lá chegaremos, isso é 120 Batimentos por Minuto. Antes houve Eastern Boys (2013), a história de um homem que é invadido — literalmente, entram-lhe em casa estranhos. Mas essa personagem, interpretada por um actor parecido consigo, aliás [Olivier Rabourdin], revela já capacidade de lidar com esses estranhos. De vítima de assalto, reinventa-se...
Há algo de programático nesse filme como realizador. A questão em Les Revenants era o que se faz com os mortos, e no fundo isso é perguntar: o que se faz com os outros? Passei a juventude a ser absorvido pelos outros, a desaparecer face aos outros — não me via, demasiado interessado que estava nos outros. A personagem interpretada por Olivier Rabourdin representa-me como realizador. Em vez de os outros serem os inimigos que me impedem de aceder ao meu filme, por isso tenho de os controlar, de explicar, os outros são aqueles que vão invadir-me, que vão entrar em minha casa e tornar o meu filme melhor. Tento estar aberto aos outros. Tal como a personagem, estou inquieto pela presença dos outros, são uma ameaça, mas também uma promessa. Isso é o cinema, o cinema que faço hoje.
Invasão... há uma sequência, no final de 120 Batimentos por Minuto, quando os amigos de Sean chegam depois da sua morte. É parecida com a invasão em Eastern Boys. Mas vamos ao princípio de 120 Batimentos por Minuto. A palavra “pedagógico” costuma ser utilizada de forma negativa para falar de um filme. Neste caso, utilizo-a na sua dimensão mais vibrante para descrever o que se passa entre o espectador e o ecrã. A sequência inicial, uma operação do Act Up, é isso. Alguém pergunta: “O que é o Act Up?”. Vemos a explicação, dirigida ao espectador, de uma retórica, os seus rituais, a sua política e, simultaneamente, a reflexão sobre isso. A sequência começa nos bastidores, de onde saem os activistas que vão ocupar o palco, há a acção, depois as reflexões no anfiteatro, debate em que o espectador pode participar mentalmente.
Este filme fala do que senti na época quando pertenci ao Act Up. Durante muitos anos queria entrar, mas não tinha coragem, tive de perder o medo, antes de fazer algo com a questão da sida, antes de poder enfrentar isso. Na verdade, tudo aconteceu porque tinha marcado um encontro com um tipo, ele não apareceu, mas havia ao lado uma reunião Act Up... fui.
O que é um episódio muito Act Up, o íntimo é político...
Exactamente. Fui e um tipo apresentava o grupo. A minha vida mudou. Tudo se tornou Act Up na minha vida, não me lembro de nada do que se passou ao lado. Queria que o espectador se encontrasse na posição de quem entra. Alguém diz também ao espectador: “Bem-vindo!” Queria esse sentimento de estar numa sala de cinema, no meio, e o olhar a dispersar-se pelas personagens e a coisa a começar a vibrar. Interessava-me ser um espaço fechado, muito branco, ao contrário do negro da sala de cinema mas em que também há uma espécie de ecrã, o quadro negro em que os activistas vão escrevendo coisas, as suas acções. Esse lugar é como um cérebro. Eles estão a interrogar as imagens, as acções que produziram, ou as imagens que estão a criar, as acções que programam. A analogia com a sala de cinema é forte. Como um espectador também eles se interrogam sobre um filme, que foi a acção que produziram, e que alguns acham que foi falhada, porque demasiado violenta, outros que foi um sucesso. Mas o que cria a percepção dessas cenas é a palavra, é a palavra que interpreta as imagens que vemos. É aí que aparece a personagem de Sean [Nahuel Pérez Biscayart]...
... é ele quem diz que a acção não foi falhada...
... e que foi um sucesso, A sua agilidade intelectual, retórica, transforma em algo de majestoso qualquer coisa que na verdade foi bastante sinistra. Essa questão julgo ser jubilatória no filme, e é uma questão política. Temos tendência a pensar, quando se trata do combate político e quando estão em causa pessoas com VIH, que quando a luta é encarnada não há distância. Havia distância no Act Up, uma distância teatral...
... representação.
O Act Up era um grupo de performers.
A performance não é o contrário da verdade; ao representarmos, intensificamos as nossas verdades...
Exactamente. Não se trata de uma questão de autenticidade ou não, palavra que é do mundo da tele-realidade. Sobre a personagem de Sean: precisamente ele perde o combate quando a doença se torna demasiado forte e perde a possibilidade de distância. As imagens que vêm parasitar a última reunião em que assiste não são as imagens de uma acção falhada que é preciso reinterpretar, são as imagens da sua doença. A realidade, a doença, está de tal maneira colada a ele que ele deixa de poder reinterpretar. É por isso que quando Thibault [Antoine Reinartz] propõe que numa das acções os doentes sejam colocados em cadeiras rolantes nas primeiras filas, isso é insuportável para Sean.
Outra sequência capital, a acção contra o laboratório. Tudo começa antes, na reunião. As sequências da acção surgem como projecção no futuro do que é proposto nessa reunião...
... absolutamente, a cena da reunião foi concebida como interpretação das imagens do que se passou, a acção que se completou, e depois das imagens por vir...
Mas quando estamos em plena intervenção do Act Up, um presente a decorrer, logo percebemos que esse presente é afinal a memória dos intervenientes, que no metro falam do que acabaram de fazer. O que dá ao filme uma experiência de tempo particular, nem presente nem passado, é como uma narrativa mitológica destinada a reactivar a memória. Depois há um “solo” de Sean, muito melancólico, a dizer como a sida mudou a sua vida — e logo a seguir distancia-se com o humor e a irrisão, e diz que não é nada disso. Tudo desemboca, finalmente, na dança, a poeira sobre os corpos a transformar-se em célula e vírus. São várias metamorfoses, o filme em si é uma performance. Era isto o Act Up, não é, uma comunidade que tinha de agir para não morrer...?
O que é uma comunidade? Nos anos 1980 a palavra era odiada pela nossa República. Mesmo hoje. O que se passa entre o íntimo e o público? Quando a sida chegou a França, as pessoas tiveram uma experiência pessoal da doença. Mas isso em si já é o princípio de uma comunidade: tenho tanto medo que preciso de estar com pessoas que me possam dar informação sobre a doença. Estávamos todos nesta epidemia. Enquanto o resto da sociedade estava bastante pouco. O Act Up cristaliza isso, é uma porta aberta, como uma máquina, em que as pessoas se reúnem, como partículas que se atraem. Eu vou porque tenho de ir. O íntimo é já colectivo porque há muitos a sentirem o medo. Ser seropositivo tornou-se uma experiência comum e encontramo-nos todos cá dentro. Com a cólera que foi sendo acumulada ao longo de anos. No meu caso, a cólera foi crescendo ao longo de dez anos e nunca me apercebi disso. Quando essa máquina foi criada, a partir de ideias dos Estados Unidos, por Didier Lestrade [jornalista, um dos co-fundadores do ramo francês do Act Up em 1989] e toda essa gente, foi aberto um espaço para o qual as pessoas se precipitaram e assim produziram o político. Quando entrei para o Act Up abandonei a ideia de fazer cinema, porque a epidemia matou a ideia de fazer filmes. Mas de alguma maneira entrei como realizador. Porque me coloquei numa posição de observador. Participava em tudo, mas registava sobretudo tudo. O prazer do colectivo é muito forte. Mas há um momento em que o colectivo não pode ajudar mais. As pessoas morriam sempre com o grupo ao lado, mas para alguns foi uma terrível melancolia morrer antes dos outros, que é sempre morrer sem os outros. Quis mostrar isso.
É o filme mais construído que fiz. Fala-se do romance fleuve, eu queria um film fleuve, muitas personagens, com um movimento de grande corrente. Nathan aparece nessa corrente...
... e Nathan é você...
... não em tudo, só em algumas coisas. Sim, tudo o que ele conta do seu passado sou eu a contar ao espectador.
Dizia que naqueles anos não se tinha conseguido projectar no cinema, mas o Act Up implicava representação, mise en scène, já era ficção...
O Act Up foi uma forma de eu entrar “no cinema”. Havia percepção... faço cinema por causa da percepção, das coisas e dos seres. Na primeira cena de que falámos, as personagens interpretam as coisas que viveram. Agora reinterpreto o que vivi. Faço o filme a partir da minha memória, não a partir de documentos. Fui consultar documentos depois para verificar duas ou três coisas. A Invenção de Morel, de Adolfo Bioy Casares, é a razão por que faço cinema. Fabricar uma máquina que reproduz o real de maneira estranha. A personagem de Nathan, na sua experiência humana com um grupo, é como a personagem de Casares que se inscreve num filme já registado dos outros e assim se reinscreve no grupo. Nathan faz o mesmo: para se inscrever num grupo é preciso fazer de conta que se pertence. Há uma mise en scène de si mesmo face ao grupo.
Ainda sobre Act Up e cinema: você já disse que os activistas eram como as personagens de Freaks/Parada de Monstros (1933), de Tod Browning, no sentido em que devolvem aos outros a narrativa que os outros impuseram. Se são monstros, vão comportar-se como monstros.
O filme de Browning é uma obra-prima, mas, além disso, politicamente é extraordinário. Começa por mostrar que essas pessoas de feira, esses monstros, são como nós, fazem tudo como nós, casam-se, têm sexo, mas quando são atacados pelos outros, os normais, usam a monstruosidade para aterrorizar os normais, para se vingarem. Havia disso no Act Up. Não era muito fácil dizer sou paneleiro ou tenho sida — na altura não se dizia sou seropositivo... —, metia medo.
Mesmo quem não era seropositivo, mas militava no Act Up, tinha de lidar e impor a sua “seropositividade” ficcionada.
O que às vezes era embaraçante. Uma vez fui a uma reunião na Direcção-Geral da Saúde, porque estava a trabalhar sobre a tuberculose. Estava com gripe. As pessoas pensavam que eu estava nos momentos finais, que ia morrer [risos]. Foi terrível, não disse nada, as pessoas traziam-me água...
Isso dá uma sensação de poder...
Claro, servi-me disso durante a reunião. Enquanto falava, toda a gente escutava. Era uma estratégia como qualquer outra. Lembro-me de que havia um jornalista que de cada vez que me encontrava perguntava: “E então, como está?” Um dia compreendeu. O jogo é interessante. Mesmo quando se fazia uma acção: nas reuniões dizíamos que era preciso mostrar raiva, e às tantas era a própria representação que chamava a realidade. Era isso o extraordinário na representação. Isso e outra coisa que foi muito importante no Act Up e que é muito importante no cinema: a noção do ridículo, de nos marimbarmos para o ridículo. Politicamente, é extraordinário. E cinematograficamente também, veja-se os filmes em que as personagens estão sempre embaraçadas. A personagem de Eastern Boys às tantas decide começar a dançar com aqueles que fazem dele refém.
Faz o jogo...
Faz o jogo, e é essa a questão: não há metamorfose de si próprio sem o ridículo. Se queremos tornar-nos outros, temos de nos pôr em perigo.
“Metamorfose” é a palavra para a sequência de sexo entre Nathan e Sean. Começa com um beijo, um beijo dado numa manifestação, provocação política. A relação íntima começa assim, como uma representação em público. E a seguir estamos na cama. Com eles e com o passado deles, cada um contando a sua história ao outro e isso intervindo na cena. É a sensação, de novo, de que o filme vai tomando formas diferentes.
Estava tudo escrito no argumento. Faço filmes sempre como se fossem de ficção científica ou fantásticos. Tenho a impressão de que coloco blocos sobre blocos de puro presente, mas como se houvesse espaço-tempo entre esses blocos, como túneis, pelos quais se passa. E é assim que se dá a metamorfose. Procuro isso: em que momento estamos no presente ou noutro tempo? Acho que isto é muito realista: por exemplo, nunca me lembro dos meus momentos no metro de Paris, é como se nesse momento não existisse, é como se fossem momentos de pura anestesia.
É o mesmo com a cena de sexo. Não gosto que me digam que uma cena de sexo deve ser uma cena de sexo. Isso é o quê? Nunca pedi aos actores uma performance, porque não o fazemos na vida. Vão fazer sexo, digo-lhes, mas há muitas outras coisas na cena. Há esse beijo, como disse, coisa simples, depois a cena de boîte, com projectores, e depois a cena na cama, para a qual convocámos inicialmente os projectores para que eles se sentissem confusos, para que não soubessem onde estavam. E queria que na cena, depois de uma relação sexual inepta, eles conversassem. Adoro isso. O erotismo vem do facto de o sexo não ser de especialista. Essa cena é como um continente à parte, quando se encontra alguém, encontram-se todos os seus amantes do passado.
Sobre a questão de género cinematográfico, há um lado fantástico, de invocação de espíritos. Mas não queria que as coisas fossem do passado, queria que estivessem no presente. Porque uma coisa me deixa triste: não posso trazer de volta os meus amigos.
Que outras emoções tem ao convocar essa memória? Poder romanesco, de distribiur personagens?
Foi muito duro. Do ponto de vista técnico, foi complicado de escrever. Emocionalmente, foi o mais difícil. Sou como Nathan: protegi-me das emoções e do vírus, mas aqui foi muito brutal, violento.
Há pessoas que comparam o filme ao [Frederick] Wiseman...
... porque nos filmes de Wiseman temos a sensação de estar no interior de um cérebro, a ver esse cérebro, uma instituição, funcionar...
Exactamente, mas não concordo com a comparação, porque no caso de Wiseman trata-se de saber como funcionam as coisas e não o sentido das coisas. Eu tento interpretar as coisas. Interessa-me a relação entre Nathan e Sean, entre uma personagem que se protege demais e outra que se queima. No início da epidemia houve pessoas que tiveram a inteligência de conseguir a distância certa em relação a ela, de forma pragmática. Depois houve pessoas com excessiva protecção, como eu, ou que fizeram o contrário. É o que se passa entre Nathan e Sean.
A outra tensão que me interessa é a que existe entre Sean e Thibault, o presidente [do Act Up, no filme]. Não é a mesma relação com a representação. Thibault é o criador do grupo, por isso vê as coisas como um objecto que encena. Tem mais tempo em relação à doença. Sabe isso. No Act Up sabia-se quem iria morrer. Thibault tem o luxo de uma representação mais distante.
Há quem queira ver nessas personagens pessoas que existiram, mas são puros objectos de cinema, havendo obviamente coisas que se passaram assim na realidade.
Como o episódio em que alguém espalha no chão os comprimidos de AZT numa manifestação. Estava lá.
Sim, os pormenores aconteceram todos.
Se há pedagogia em 120 Batimentos por Minuto, podemos dizer que as personagens são reservatórios de memória que se transmite. Como se faz um casting para um filme assim? Escolhem-se corpos, sabendo-se que esses corpos, pela idade, não podem ter a memória das personagens?
O problema é esse. Escolhem-se corpos, obviamente, mas a minha obsessão eram as vozes. Queria encontrar a música das vozes da época. Essa música era muito particular, para dizer a verdade, éramos um bando de bichonas e de lésbicas a falarem... era uma maneira de falar de política... vi actores heterossexuais, e era catastrófico, parecia a Assembleia Nacional. Como fazer? Dizer a esse actor: “Sê mais homossexual.”? Encontrei equivalências, gente que me parecia justa para a personagem e a época. Mas confrontei-me com gente que não tem a mesma relação com o VIH. E percebi que eu não sabia que eles não sabiam.
O filme também foi pedagógico para os actores, é isso?
Sim, em relação a uma história mas também em relação à percepção e às emoções, sensações e sensualidade. Íamos para o Act Up porque os rapazes mais giros de Paris estavam lá. Via esses tipos de T-shirt, que eram mais fortes do que eu, era mais sexy.
Era a estética de representação do Act Up, uma forma de dizer: somos doentes, mas somos fortes.
Eu era muito magro, toda a gente pensava que estava doente. Nos anos 1980, os gays, de forma geral, eram muito magros. Estávamos todos constrangidos nos nossos corpos. Transportávamos “o armário” connosco. Tínhamos corpos mais frágeis do que os de hoje. Havia a precariedade na nossa vida de todos os dias. Era preciso encontrar isso nos corpos dos actores, e por isso até fiz Arnaud Valois, o intérprete de Nathan, emagrecer. Mas o mais importante eram as vozes, a forma de falar de política. Quando vi Antoine Reinartz, o actor que faz de Thibault, fiquei emocionado: adoro quando se vê numa personagem o pensamento em acção, não se sente o diálogo mas o tipo a reflectir e a pensar a palavra ao mesmo tempo que a diz. Sobre Sean, queria sentir a distância teatral em relação ao que diz — mas quando ele chega ao hospital, pedi ao actor (Nahuel Pérez Biscayart) que parasse de interpretar para que o espectador sentisse a nostalgia do momento em que ele podia representar.
Era preciso sempre uma reflexão sobre as pessoas. Fizemos muitos ensaios dois a dois, durante nove meses.
Antes mesmo da rodagem?
Sim.
E no final desses nove meses as pessoas podiam não ser escolhidas?
Sim, tinha de ser assim. Mas muitas delas fi-las regressar de outra forma, com algum papel.
Depois, já em plena rodagem, as cenas de anfiteatro tiveram três ensaios.
Importou o método d’A Turma [2008, filme de que foi argumentista]?
No caso d’A Turma houve ateliers de trabalho, mas não verdadeiramente ensaios das cenas.
Queria ver como eles trabalhavam o texto, porque havia coisas que não compreendiam. Não compreendiam o que esteve em causa. Muitas vezes foi necessário reescrever o texto, para que pudessem compreender.
A relação das cenas de anfiteatro com as cenas de escola em A Turma são, no entanto, evidentes.
Nas cenas de reuniões filmámos com três câmaras para as outras com duas. Não nos concentrávamos nos enquadramentos. Há outras coisas que se passam. Decidimos, eu e a directora de fotografia [Jeanne Lapoirie], que não esperaríamos mais de vinte minutos antes de começar a filmar. Decidimos não preparar muito. Os actores punham-se nas suas posições, ou mais ou menos [risos], filmávamos e era catastrófico. Mas genial, porque víamos os erros, as pessoas que se enganavam nas posições. Indicávamos o que era preciso ajustar, as posições correctas... e filmávamos tudo.
E era assim que decorria o dia, os actores iam-se esquecendo das câmaras, as câmaras começavam a fazer parte do grupo. No fim do dia chegávamos a coisas mais profissionais. Na montagem consegui aliar momentos mais descontrolados das primeiras rodagens e os mais controlados das últimas — tudo o que tem que ver com questões mais políticas vem das filmagens mais tardias, em que os actores estavam mais seguros.
Sobre a pedagogia, pode acontecer algo com o espectador: há uma sequência que inicialmente achei desnecessária — o rio Sena tintado a vermelho-sangue —, mas, ao fim de várias visões, não só a compreendo como acho que é uma apoteose do filme. 120 Batimentos... é como uma performance do Act Up, e ali o filme concretiza uma das acções planeadas pelo grupo e que nunca foram concretizadas.
Éramos o Act Up Paris. O Sena corta a cidade em dois. É enorme e central. A epidemia foi isso: cindiu a sociedade em dois. Lamentámos não ter feito essa acção. É uma imagem terrível, mas toda a gente tinha essa imagem na cabeça nos anos 1980/90. O sucesso em França também se explica pelo facto de o filme autorizar toda a gente que viveu nessa época a dizer que a epidemia foi uma coisa enorme nas suas vidas, mesmo se não era toxicodependente ou seropositivo. Foi um túnel na nossa cabeça. Por isso há aquelas imagens do vírus também. Lembro-me de que na época Didier Lestrade era presidente do Act Up e estava excitadíssimo porque um laboratório tinha produzido imagens colorizadas do vírus. Para Lestrade, era uma revolução: assim via-se o inimigo. Fez com isso, aliás, imagens para um cartaz do Gay Pride. É de novo uma forma de enganar a realidade, os obstáculos.
Falou de performance: é tornar as coisas visíveis. Não podia filmar Paris sem isso. Esse plano vem de um filme de Marguerite Duras, uma descida de um rio, Aurélia Steiner (1979). Essa cena é um ponto de ordem no filme, uma coisa melancólica, como se lamentasse que as pessoas não tivessem visto a epidemia tal como deveriam ter visto: uma coisa catastrófica que estava a acontecer. Essa cena encarna essa enormidade.
Nos anos em que pertenceu ao Act Up houve cinema que caminhou em direcção à sida. Em França, Les Nuits Fauves (1992), de Cyril Collard (1957-1993), La Pudeur ou L’Impudeur (1992), de Hevé Guibert (1955-1991). Na América, Filadélfia (1994), de Jonathan Demme (1944-2017), Silverlale Life, The View from Here (1993), de Tom Joslin (1946-1990) e Peter Friedman. Que espectador foi desses filmes?
Cyril Collard morreu de sida, não quero “bater-lhe” agora... mas o filme conta, para resumir, que quando amamos fodemos sem preservativo, mesmo quando somos seropositivos, e coloca em relação o inferno, o lado homossexual, o que reconfortava o burguês, e a pureza, a experiência heterossexual. Era atroz. Mesmo a nível da mise en scène. Mas tenho o sentimento de que esse filme, como todos os outros, já era importante por falar da sida.
O filme de Hervé Guibert achei interessante, mesmo se havia coisas que me desagradavam. Era o problema de um certo dandismo que vinha dos anos 1970. Se eu era do Act Up, era para recusar esse dandismo que fazia com que em França não houvesse comunidade. Fartei-me disso, mas o filme era importante na representação da doença. Foi talvez mais importante nisso do que propriamente sobre o que dizia.
A martirologia que constrói, a solidão de Guibert como gesto artístico, era contrária à performance actupiana...
Sim, por isso o filme me desagradava, embora compreenda. Eu tinha outra atitude face à epidemia, mas não estava doente, por isso não posso dar lições aos outros. O que quer que pensasse, não era eu que estava a morrer. Já Silverlake Life era interessante. Os dois foram um choque em França.
Filadélfia não era um grande filme, não gosto porque despolitiza a sida. De forma engenhosa coloca-se como filme de processo — há aquela cena em que uma personagem sai do tribunal, de um lado está o Act Up e do outro os homofóbicos, e essa personagem e o filme passam pelo meio. Não o achei detestável, tornou a luta contra a epidemia mainstream mas percebia-se que envelheceria ao fim de três anos. Em The Celluloid Closet [Rob Epstein, Jeffrey Friedman, 1996], o tipo de Torchsong Trilogy [Harvey Fierstein] diz uma coisa genial: desde que haja uma personagem gay e lésbica num filme, mesmo que caricatural ou negativa, já é importante. Era isso o que eu sentia. Tive tanto medo da palavra sida, mal a via num jornal, que a partir de certa altura quis que a víssemos por todo o lado. Por causa dessa mudança não podia completamente querer mal a esses filmes.