Saindo da infância, espreita-se já o porno
Ao trabalho da dupla André Santos e Marco Leão o Porto/Post/Doc faz justa homenagem: uma integral. Tem sido uma década a habitar a intimidade. No momento em que esta bolha de ambiente rarefeito se deixa corromper: vem aí a ironia, o sexo, vem aí uma longa-metragem.
Não está finalizada a nova curta-metragem de André Santos e Marco Leão, mas espreitámos essa divertida ficção da rodagem de um porno gay com actores hetero — numa floresta, em que outro sítio poderia ser? Sentimos que uma bolha rebentou e que se espalham novos sabores. Por exemplo, uma indisfarçável ironia, auto-ironia mesmo, quando a câmara e o desejo dos realizadores lambem os corpos dos actores. Sexo, pornografia, obsessões lá de casa, aliam-se a aventuras novas, a “uma vontade de fazer um filme muito light, com outro tom: falar da masculinidade, da elasticidade sexual, mas uma coisa irónica, não tão densa nem tão pesada” como os filmes anteriores — este até está “inundado por diálogos”, como diz Marco, coisa nova na dupla.
Self Destructive Boys, assim se chama, estrear-se-á em 2018 e não está programado, porque ainda está a ser terminado, na retrospectiva integral do trabalho dos dois cineastas que o Porto/Post/Doc lhes dedica e agenda para dia 28 — seis filmes, A Nossa Necessidade de Consolo (2008), Cavalos Selvagens (2010), Infinito (2011), Má Raça (2013), Aula de Condução (2015), Pedro (2016), a que se acrescenta Go Get Some Rosemary, dos irmãos Safdie (dia 27), resultado de uma “carta branca” do festival. O Porto/Post/Doc chamou a esse programa Da Intimidade: André Santos e Marco Leão. Tem sido esse o sítio, a intimidade, onde as coisas aparecem e tem sido esse também, ao longo de uma década de trabalho, um modelo de produção. Algo que é tocado pela utopia — algo que às vezes precisa de ser despedaçado para a vida poder continuar.
Os dois títulos iniciais de André e Marco, A Nossa Necessidade de Consolo e Cavalos Selvagens — um em que homenageiam as mães em cenário de estufa de flores e aulas de hidroginástica (cada mãe espelha de forma tão evidente o seu filho que ele está no filme sem precisar de aparecer) e outro em que se filmam a si próprios num momento de crise de uma relação que na altura já tinha seis anos —, eram há dez anos experiências de respiração singulares e rarefeitas. Com o tempo, adquiriram um esplendor olímpico e memorialista — não por acaso, são dois filmes ocupados do princípio ao fim pela música. Neles, André e Marco falavam de onde vinham, fixavam a sua biografia. Olham agora para trás, quando, numa série de declinações, a estufa deu lugar a florestas e a um microclima com mães e filhos e a intimidade se aventura e desdobra pelo sexo: há muito que não vêem A Nossa Necessidade de Consolo e Cavalos Selvagens, não sabem como se aguentam (estão ainda melhores...).
“A Nossa Necessidade de Consolo começou como um projecto de documentário, mas depois mudámos tudo. Queríamos filmar momentos das nossas mães, falámos com elas, foi um desastre, deitámos tudo fora. A minha mãe”, conta Marco, explicando o título, “dizia que quando trabalhava na estufa isso a acalmava em relação ao que sabia que ia acontecer no futuro” — uma avó acamada, um fim a aproximar-se.
“Já Cavalos... surgiu como um projecto fotográfico, como o Instagram da altura, um registo de rotinas, lavar os dentes, pequeno-almoço... Foi uma fase difícil da nossa relação. Quando o filme se estreou foi violento, a nossa intimidade exposta... Precisámos de recuo para começar a olhar aqueles momentos, perceber o que ali está.”
Foi nessa altura que gente como o programador Miguel Valverde, o director de fotografia Rui Xavier ou, a trabalhar com eles no som, Adriana Bolito acreditou em Marco e André e fez Marco e André acreditar. Como amigos forneceram material técnico, ajudaram a aproximar o que faziam de um “projecto profissional”. “Sem eles poderíamos ter ficado pelo caminho. Os nossos filmes chegaram a algum sítio porque, por exemplo, o Miguel Valverde nos disse onde devíamos mostrá-los. Sem um festival de cinema que te programa, não existes.”
Sim, desde o início que são tocados por um sentimento de não pertencerem — sentem-se vindos de fora e por alguma razão, porque, por exemplo, não frequentaram a escola de cinema, sentem-se olhados dessa forma. Marco: “Sempre quis estudar cinema, mas quando chegou à altura achei que não era capaz, sou demasiado cauteloso” — tem licenciatura em Audiovisual e Multimédia, não era o que lhe interessava. André, o caótico, o barulhento e o bossy a precisar de alguém que o acalme, foi a primeira pessoa da família a ter licenciatura — em Publicidade e Marketing. Queria partilhar a emoção dos filmes de Pedro Costa, mas os amigos estavam numa onda diferente... “Quando decidi que queria ser artista, imagine-se a pressão.”
Uma década depois de terem começado, a sensação de marginalidade não acalmou, até se adensou. Querem ter “dinheiro para pagar às pessoas” que com eles trabalham. Têm 33 anos, continuam “a trabalhar no limite”, as curtas vão-se tornando mais longas, a desejar serem longas — depois a montagem torna-se o embate duro com a realidade.
“A última curta, Self Destructive Boys, foi filmada em quatro dias, com cinco actores, é muito pouco tempo. Ao fim de dez anos continuamos a ser pobres a fazer filmes”, desabafa André.
Marco: “Uma curta faz-se em quatro dias, passa num instante, só voltamos a experimentar isso um ano depois. Com uma longa podemos passar mais tempo assim. As nossas curtas estão a ficar cada vez maiores, temos de cortar, cortar. Gostava de não fazer mais isso.”
Na altura em que são alvo desta retrospectiva, escrevem a primeira longa, Em Parte Alguma, “filme mais pessoal, não sendo biográfico, em termos de pulsões sexuais”. Vindos de um e de outro apanhamos estillhaços: há um tipo de 35/40 anos, professor de Educação Física no Norte, que desaparece para ir ter com um tipo mais velho num sítio recôndito, uma cabana no meio do nada — há uma floresta, claro. (Estão sempre a voltar a esses sítios, que lhes trazem “coisas boas”.)
Depois, o homem mais velho desaparece e o outro decide ficar à espera. “Move-se entre a cabana e a natureza, um espaço que não lhe pertence. É um filme sobre a incapacidade de estar sozinho.”
Esta retrospectiva acontece então no “momento crucial” de um trajecto — sublinha Dario Oliveira, do Porto/Post/Doc, onde André e Marco participarão no projecto educativo do festival partilhando “ideias, métodos de trabalho, visões, influências e os filmes com um público específico que frequenta o ensino artístico”. Seguramente passará a outra(s) coisa(s), a infância terminou, adeus, avista-se o porno.
“Estamos constantemente a somar coisas e pessoas que conhecemos e que entram inevitavelmente nos filmes — numa personagem, por exemplo.” É assim que descrevem o trabalho de escrita de argumento, de que não têm formação: discutem uma cena, tomam notas, cada um dedica-se a ela, regressam para discutir e assim passam o trabalho um ao outro “Uma longa-metragem ainda vai ser mais assim. Queremos passar para um modelo mais complexo e manter o que somos.”
Não sabemos que lugar continuará reservado para as florestas e para o consolo. Por isso Da Intimidade: André Santos e Marco Leão, o ciclo, se estará inevitavelmente carregado com o sentimento de reconhecimento de território, relação umbilical que cada filme forja, também se dá a ver como perda, transformação, a inevitável — e é inevitável dizê-lo — corrupção.
Veja-se a passagem de Infinito (2011) a Pedro (2016). Algo que parecia inexpugnável é afinal transformado, naturalmente destruído: a relação entre uma mãe e o seu filho. No primeiro filme, o mais atmosférico, sensorial e abstracto dos realizadores, somos testemunhas da intimidade entre mãe e bebé, numa tenda na floresta, à luz da manhã. Começou como um workshop sobre uma memória de infância, é agora uma fábula. Ou um documentário sobre Adriana Bolito e a sua criança. Ou um dos cumes do ideal familar do cinema destes rapazes.
“Nunca estive naquela situação com a minha mãe”, conta Marco, “mas aquela imagem leva-nos para sítios... Filmámos tardes inteiras com a Adriana e o miúdo, fizemos parte da experiência íntima deles”.
Em Pedro algo se quebrou, é o adeus. O sexo e as suas histórias meteram-se no meio, sobram as saudades. Não se nota, nem pelo desencanto do filme, que foi a obra “difícil”, com problemas na rodagem, que mal começou teve de ser interrompida (o que acontece quando tem de se simular que é praia e Verão e é Novembro e chove). Meteram pelo meio Aula de Condução (2015) para aliviarem a frustração, para resistirem. Depois regressaram a Pedro, mas a angústia prolongou-se na montagem, o universo estava contra eles. André e Marco ainda estão em ressaca disso e decidiram que para a nova curta, Self Destructive Boys, pela primeira vez, não montariam o seu filme.
Pedro foi rodado em 2016, quando se deveria ter seguido a Má Raça. Este é o tour de force de 2013. Um filme em que utilizam um cão — chama-se Simão — como reflector que expande o que se passa em fundo. A relação entre uma mãe e uma filha assim se liberta. São mesmo mãe e filha e são as donas de Simão. É a casa delas, são as roupas delas, as situações delas. Má Raça é também um documentário sobre um ansioso cão e sobre a sua clausura entre esfregonas. É um filme-esponja.
“Adoro filmar cães, dá-me conforto tê-los na rodagem. Há coisas que trazem de verdadeiro ao filme. Simão parecia estar a representar. Criou uma simbiose connosco. E aquela casa é a prisão em que ele estava. O cão existe com aquela tensão nervosa. Quando nos juntávamos” — é Marco que conta — “fazíamos sessões em grupo, a falar dos nossos problemas, das nossas tensões. Criámos esta bolha para que elas ficassem confortáveis e se expusessem. O cão e as esfregonas eram reais. Para se conseguir estar com ele, havia esfregonas em todo o lado” para o conter.