Warsaw, onde a América parou num sonho antigo
De Manhattan a Warsaw são cinco horas e meia de carro no mesmo estado. E a distância entre o lugar mais liberal e o mais conservador. População branca, rural, de baixa formação e um silêncio que atravessa tudo. O tempo passou e deixou tudo como estava. Igual como há um ano, igual como quase sempre.
Warsaw não é Varsóvia. Em inglês, tem a mesma grafia da capital da Polónia, mas é uma pequena cidade no Sudeste do estado de Nova Iorque e sede do condado de Wyoming, nome tal qual o de outro estado no Midwest americano. A 8 de Novembro de 2016, Donald Trump conseguiu ali 71,9% dos votos, um dos melhores resultados nas eleições que o levaram à Casa Branca. Desmonte-se o número: foram 12.442 votos para o actual Presidente, 3904 para Hillary Clinton e 673 para Gary Johnson, o ex-governador republicano do Novo México, que concorreu como independente. Num estado considerado solidamente azul, onde os democratas vencem desde 1988, o condado de Wyoming só por uma vez na sua história não deu vitória aos republicanos. Foi em 1964, quando escolheu Lyndon B. Johnson.
Que lugar é este? Fica a cinco horas e meia de carro da cidade de Nova Iorque e num domingo de Novembro, um ano depois das eleições, parece um postal dos anos 50. Searas de milho, celeiros, floresta agora em vários tons de amarelo e vermelho, com destaque para o ácer de onde se extrai o famoso maple syrup, o xarope obrigatório nas cozinhas tradicionais da América. Espaçados, ao longo das estradas secundárias, alguns parques de caravanas e casas ambulantes que quando saírem deixam apenas uma pequena marca na erva que pouco tempo depois será coberta por vegetação nova e é como se nunca alguém ali tivesse morado. São núcleos urbanos associados a pobreza rural, os lugares do chamado “white trash”, os brancos pobres a que Trump foi buscar grande apoio até chegar a Washington. De um deles a vista vai até longe, a oeste onde estará o sol dali a horas. É na colina antes de descer até mais uma vila, igual a muitas, sem traços distintivos, quando se passa entre os condados que fazem fronteira com Wyoming: Genesea, com um ar ligeiramente mais próspero, Livingston, Allegany... lugares com um centro e uma estação de serviço ou uma igreja ou uma estrada a dizer Buffalo, a maior cidade do estado depois de Nova Iorque e também democrata.
É um postal muito composto. Nostalgia e algum kitsch, elementos de folclore, as abóboras do recente Halloween juntam-se a cadeiras de baloiço e luzes de Natal que por aqui vêm com o Thanksgiving, a grande celebração nacional de agradecimento pelas colheitas. Uma mulher tenta equilibrar um peru gigante, insuflável, como que a domesticá-lo, ao vento. Há pequenos núcleos de moradias com a bandeira dos Estados Unidos no jardim, umas poucas casas senhoriais, vilas de ruas desertas, cúpulas de igrejas protestantes que se avistam ao longe entre a bruma ou a chuva que cai espaçada, um vento que não chega a ser frio. Imagine-se isto, mas com cor desbotada, janelas sem vidros, casarões abandonados, lojas fechadas, um bar com dois rapazes sentados, cerveja à frente, sem ver ninguém na rua principal, uma mulher sozinha vestida de preto na lavandaria pública e a música indefinida que sai de uma porta entreaberta. Lá dentro, balões cor-de-rosa, bolos sobre as mesas e uma dúzia de homens e mulheres sentados de olhar fixo na única pessoa que anda pelo passeio.
É um postal gasto pelo tempo, com vincos e cartão meio desfeito. “Parece que esta gente insiste em manter um sonho que acabou há muito tempo”, diz alguém que não é dali, mas olha como quem conhece muito bem a América.
Chama-se Jane, é de Toronto, e foi a Buffalo, a cerca de uma hora de distância. O filho estuda na universidade daquele condado mais a oeste de Nova Iorque, o único reduto democrata na parte mais ocidental do estado. “É um contraste com estas terras”, continua a mulher, que aparenta uns 60 anos e bebe um café na estação de serviço mais próxima. A máquina fotográfica e um sotaque que lhe pareceu “europeu” fê-la meter conversa. Foi a única em muitas horas. Diz que segue para sul, aproveita e vai a Nova Iorque, “à cidade”, precisa.
À primeira vista, Warsaw, a sede do condado de Wyoming, é uma rua de onde saem meia dúzia de perpendiculares curtas que acabam num monte, por um lado, e num arrabalde, por outro. Os seus habitantes, como os de Manhattan, Brooklyn, Long Island ou Queens são de Nova Iorque, mas a grande cidade, capital do estado, parece não só estar muito longe, como ser de outro tempo.
Os restaurantes estão fechados. No bar, a televisão passa imagens de uma cidade no Texas, lá está a igreja onde justamente nesse dia, domingo, um homem entrou com uma arma durante o serviço religioso e matou ainda não se sabe quantas pessoas. Não se ouve um comentário. A cerveja e o telemóvel disputam as atenções com o ecrã na parede e os olhares a refugiam-se ora num, ora no outro. A estranheza também é este silêncio que parece resistir a tudo. Há uns sorrisos tímidos e a barreira é logo erguida. A ideia era perguntar: e um ano depois, como estão, como se sentem, o que pensam do homem que é Presidente? Percebe-se rapidamente que não se pode perguntar assim. Pede-se uma cerveja e imitam-se os gestos dos outros sabendo do desconforto deles, procura-se ganhar confiança, fazer conversa. Até que um: “Parece que era louco, o tipo.” E a resposta: “Yep.” Todo o tempo do mundo não iria arrancar mais uma palavra àqueles dois a não ser um “see you”.
Em Warsaw é assim em 2017, podia ser assim em 1957 ou 1967, ou 1977. Nessa rua principal, a Main Street, há pequenos estandartes fixos nos candeeiros com fotografias de heróis de guerra, soldados do Vietname, rostos jovens, nome, data de nascimento, local de morte, sob o fundo da bandeira dos Estados Unidos. E o silêncio seria o de um cemitério com o chão coberto de folhas amarelas das árvores. A espaços, passa um carro, o estacionamento está livre. Parece que todos se foram embora e só ficaram os que tiveram de ficar e uns poucos serviços para os manter.
A população é mais ou menos a mesma, mas há menos trabalho. Há as quintas, uns serviços e poucos mais e aos domingos as famílias vão almoçar umas milhas a sul, junto à Interstate 86, a auto-estrada que liga o Sudeste de Nova Iorque ao Noroeste da Pennsylvania. É nesse imenso centro comercial a céu aberto, igual a milhares de outros ao longo de outras estadas do país, que parece concentrar-se toda a população dos condados vizinhos, uma Nova Iorque muito diferente da que aparece associada à cidade que deu nome ao estado. Homens e mulheres de todas as idades e estratos sociais, em que se destaca a classe média e média baixa, almoçam entre os hambúrgueres do Five Guys, o Subway, Starbucks e uma fila grande no Cracker Barrel, a cadeia de restaurantes do Tennessee que replica comida caseira por todos os Estados Unidos, com especial sucesso nas zonas rurais.
Está cheio. Uma rapariga toma nota dos nomes de quem chega e uma voz num altifalante chama quando uma mesa vaga. Carne estufada, bifes, puré de batata, cidra. Nada de álcool e muitas famílias. Ali só uma mesa faz a diferença no tom de pele. Em Wyoming, 91% da população é branca e apenas 15% possui educação acima do ensino secundário. O rendimento médio per capita é de 23 mil dólares (na cidade de Nova Iorque, com todas as desigualdades, é de 33 mil).
Nos condados à volta, à excepção de Buffalo, os números são muito semelhantes aos de Wyoming. A melhor maneira de aferir diferenças e semelhanças é andar por esses centros comerciais, espécie de locais de peregrinação onde se concentra todo o comércio e lazer em centenas de milhas. As diferenças são muito poucas. Há uma sensação de nunca sair do mesmo lugar, ver os mesmos rostos, ler frases como esta, na t-shirt de um rapaz que se debruça sobre um prato de comida numa sala de refeições barulhenta, pray allways, allways pray.
Qualquer tentativa de falar de política, ler jornais, comentar o quotidiano sai gorada, as conversas são um imenso burburinho sobre o que comprar para o Natal, para a ceia do Dia de Acção de Graças. A loja trata da decoração, dos agasalhos, dos pijamas. Tudo a preços que competem com a concorrência menos rural.
Toda a gente estava ali. Volta-se à estrada, às vilas, aos bares. Fechado. Fechado. Fechado. “Quando cheguei aqui com o meu marido, comprámos uma quinta. O tractor avariou-se numa sexta-feira e só na segunda-feira seguinte conseguimos ter uma loja aberta para comprar a peça para que ele voltasse a funcionar. Era uma coisa bem simples.” Foi uma lição para quem decidira mudar-se de Long Island, no extremo leste do estado, junto ao mar, para o interior de Nova Iorque. Frances ri-se da sua decisão. Não está arrependida. Tem dois filhos, um estuda também em Buffalo e a filha em Itália. “É um lugar conservador, onde não acontece nada, mas eu habituei-me. O meu marido sente a falta da pressa. Eu gosto do isolamento”, conta. Pergunta porque se está ali. “Ah, isso é uma conversa complicada para se ter aqui.” Imita uma continência presidencial e diz: “Welcome to America.”
O rádio do carro que atravessa as estradas secundárias traz um som de Nova Iorque. A contestação, os recentes escândalos, os comentários, a expectativa sobre onde tudo isto pode levar o Presidente. É um som que parece vir de outro país, uma país mais próximo da Europa do que esta terra de Wyoming, Nova Iorque, terra de bandeiras americanas, terra de casas com bandeiras da confederação, terra onde não se ouviu uma vez o nome de Trump, nem se viu a sua fotografia, mas também não se ouviu quase mais nada. O tal postal ilustrado que quer manter um sonho antigo vivo e não tem voz.