Menos homicídios e mais crimes informáticos em duas décadas

Entre 1993 e 2016, os crimes relacionados com a emissão dos cheques “carecas” tiveram o maior decréscimo. Evolução na percepção do que é crime e as alterações na lei ajudam a explicar as mudanças.

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Em 1998, registaram-se 158 crimes informáticos. Em 2016 foram denunciados 9246 crimes desta categoria Kacper Pempel/Reuters

Em 24 anos muito mudou no crime em Portugal. Em 1993, a emissão de cheques sem cobertura (35.858) era o segundo crime mais cometido no país, apenas precedido pelos furtos em veículos motorizados (36.345). Hoje, o crime relacionado com os cheques “carecas” é um dos menos praticados. Em grande parte porque a utilização desta forma de pagamento caiu em desuso. Mas também devido às alterações feitas à lei - em 1997 e em 2005 - que estabeleceram um valor mínimo a partir do qual o cheque sem cobertura pode ser considerado crime. Em 2016, contaram-se 74 delitos deste género.   

Já os crimes informáticos foram os que mais cresceram durante os últimos anos. Em 1998, registaram-se os primeiros casos deste género (158). No ano passado tinham sido denunciados 9246 crimes desta categoria.

Por outro lado, os crimes de furto continuam a imperar. Em 2016 quatro em cada 10 crimes cometidos eram algum tipo de furto. Em 1993 eram ainda mais, cerca de metade dos delitos registados nesse ano. Já o número de homicídios diminuiu dos 1801 para os 448 casos.

Crimes aumentaram 7%

Em termos globais, os dados sobre os crimes registados, recolhidos pelo PÚBLICO junto do Sistema de Informação das Estatísticas da Justiça da Direcção-Geral da Política de Justiça, mostram que o número total de delitos reportados às polícias aumentou 7%, dos 307.333 para os 330.872. 

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Houve, porém, um pico de crimes atingido em 2008, quando foram registados 431.977 delitos. Desde então a descida foi constante.

Pedro Sousa, professor e investigador na Escola de Criminologia da Universidade do Porto, confirma que a tendência é decrescente e acredita que “se se mantiver, vamos estar com níveis mais baixos [do que em 1993] em breve”. Quanto à acção da justiça portuguesa, o investigador, que estudou a fundo os casos de crimes de colarinho branco em Portugal, defende que “Portugal é mais organizado do que se diz e vemos que do lado dos magistrados há muito boa intenção”. 

Em relação ao pico registado em 2008, a professora e investigadora de História Contemporânea no ISCTE, Maria João Vaz - cuja tese de doutoramento se debruça sobre a criminalidade em Portugal no final do século XIX -, diz que normalmente há um acontecimento específico que provoca o aumento de queixas à polícia (que se  reflectem directamente nos dados dos crimes registados). E elenca a possibilidade de ter sido esse o caso no ano em causa.

“Acho que não há aumentos de criminalidade assim tão pontuais. Há uma dinâmica de crescimento ou decréscimo”, adianta a professora do ISCTE. Normalmente, algo que causa alarmismo e motiva as pessoas a fazerem denúncias mais facilmente, detalha.

Ao nível dos grandes grupos, os crimes contra o património são os que se verificam em maior quantidade desde 1993, sem grandes alterações. Seguem-se os crimes contra as pessoas e depois contra a sociedade. No caso dos crimes contra a sociedade, Pedro Sousa nota que o aumento dos casos relacionados com a condução sob o efeito de álcool se reflectiu num acréscimo do número de delitos nesta categoria. Algo que pode ser explicado com o investimento nas operações stop. O registo da condução sem habilitação legal também cresceu nos últimos anos pelas mesmas razões.

Aumento dos crimes fiscais

Além disso, o investigador destaca o aumento dos casos de crimes fiscais. Isto tem a ver com a maior “proactividade” da Autoridade Tributária, nota.

Maria José Fernandes, procuradora do Ministério Público no Porto, também faz o balanço das duas últimas décadas. Nomeadamente, no que se refere ao “aumento enorme” de queixas por violência doméstica, porque “há mais informações e a legislação de apoio à vítima foi melhorada”.

A “cifra negra” do crime  

Mas há algo que estas estatísticas não revelam: os casos em que não há uma queixa formalizada às autoridades competentes. A percentagem de casos em que isso acontece é difícil de saber, explica Maria João Vaz, mas será “enorme”. Sabe-se, historicamente, que “os crimes mais graves são aqueles que são mais facilmente relatados e os menos graves, são aqueles que são menos reportados. Como o pequeno furto, por exemplo”.

Há ainda outra questão que tem a ver com a confiança nas autoridades, detalha a historiadora. Portugal tem uma taxa de criminalidade – em 2012 registavam-se 38,6 crimes por mil habitantes - muito mais baixa do que na Suécia (142,2 delitos por mil habitantes nesse ano), não por ter menos crimes do que neste país da Europa do Norte, mas porque os suecos reportam mais, explica Maria João Vaz. Tanto pela “confiança que têm nas autoridades”, como no empenho em “não deixar passar nada em branco”.

"Níveis mais elevados de insegurança”

Pedro Sousa, contudo, reitera que “Portugal é um dos países onde há níveis mais elevados de insegurança”. Também Pinto Monteiro, antigo procurador-geral da República, reconhece que “com o problema do terrorismo, aumentou a sensação de insegurança e medo”. Algo que é “perigoso”, uma vez que “são permitidas práticas às autoridades que não são [permitidas] em situações normais”.

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Num estudo sobre a qualidade de vida na Europa, o instituto de estatística europeu (Eurostat), concluiu que 25% dos portugueses que vivem em áreas expostas ao crime se consideram “muito pouco seguros”. Já entre os que vivem em zonas que não se consideram expostas à criminalidade, o número desce para 8,8%. Ainda assim, em ambos os casos, o sentimento de insegurança está entre os maiores da Europa. Os primeiros lugares são ocupados pela Grécia, Irlanda, Bulgária e Hungria.

Mas “as pessoas não têm noção do país onde vivem”, argumenta Paulo Brandão, presidente da Comarca de Aveiro. “Vivemos num país tranquilo”, defende. “Nos 10 anos em que fui juiz contam-se pelos dedos da mão os casos de homicídio que tive.”

Albufeira no topo da lista da criminalidade

Não é em Lisboa nem no Porto que se contabilizam mais crimes por mil habitantes. É em Albufeira. O município que se localiza no distrito de Faro e tem pouco mais de 40 mil habitantes é o cabeça de lista no que toca à criminalidade. Segundo os cálculos do Instituto Nacional de Estatística (INE), são 82,8 por cada mil. Os crimes contra a propriedade são os mais frequentes (52,8).

A professora do ISCTE não se surpreende. Por várias razões: o facto de ser um município com uma população muito flutuante; “a grande intolerância dos locais para com os estrangeiros”; e por ser o tipo de local tipicamente mais vigiado, o que faz com que seja mais fácil tomar conta da ocorrência. 

Contudo, a taxa de criminalidade tem vindo a seguir a tendência do país, pelo que diminuiu. Em 2011, ultrapassaram-se os cem crimes por mil habitantes (104,9).

No fim da lista dos municípios com menor criminalidade, está Sernancelhe. Neste concelho, que fica no distrito de Viseu e tem cerca de seis mil habitantes, contaram-se 10,2 crimes por cada mil residentes. Na maioria, contra a propriedade. 

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“Toleramos cada vez menos a violência”

Maria João Vaz explica que “os crimes têm a ver com o contexto em que se manifestam e também têm a ver com a construção social que cada sociedade faz do que é crime”.

A investigadora compara o final do século XIX, cujas tendências estudou a fundo, com a actualidade. “A pedofilia também era definida como crime, mas era muito tolerada socialmente. Desde que as pessoas tivessem uma reparação não apresentavam queixa. A mesma coisa relativamente à violência doméstica. Agora são crimes fortes e isso tem a ver com o facto de os considerarmos inaceitáveis”, detalha. O mesmo se passa com a criminalização dos maus tratos a animais de companhia que, em 2015, passaram a ser considerados crime.

Enquanto sociedade, a nossa tolerância à violência vai diminuindo. A historiadora do ISCTE recorda que “há 150 anos as pessoas deslocavam-se a uma praça para ver as pessoas serem degoladas”. “A vida era tão violenta que em termos relativos aquela violência não era tão chocante como é agora para nós”, acrescenta a investigadora.

No futuro, acredita que “o pequeno delito vai continuar a existir e vai tomar conta daquilo que é a criminalidade registada”. Mas é algo que está “assimilado” socialmente. “O crime internacional e organizado é aquilo a que temos de dar mais atenção, porque pode ser desagregador.”

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