Inimputáveis?
A António Costa só nos resta pedir que não nos faça chorar mais, que faça de uma vez o que tem de ser feito. Porque este Governo pode ser popular, mas não pode mesmo ser inimputável. Ou será, senhor Presidente?
Já não é o acto, é a maneira. Já não é a teimosia, é a atitude perante a dificuldade. Já não é a ministra, é António Costa. Será que este Governo se acha inimputável?
Vamos por partes, de cabeça fria — alguém tem de a manter.
O país voltou a arder este fim-de-semana. A arder por todo o lado. Desta vez não como em Pedrógão. Não foi só um grande fogo, não foi um raio ou downburst em cima de um incêndio, foi um clima louco que pôs tudo de pantanas. Não foi um erro de coordenação, foi uma total incapacidade de chegar a todo o lado com os meios existentes.
Houve mais do que isso: desde domingo que ouvimos as autoridades dizer que houve muita negligência no que aconteceu. Isso aconteceu. Com o anúncio de que viriam uns dias de chuva, muitos portugueses resolveram fazer as queimadas do costume, sem pensar duas vezes nas consequências que poderiam trazer.
Tudo isto é seguramente verdade e ajuda a marcar fronteiras entre o que agora aconteceu e o que já nos marcou para sempre em Pedrógão Grande. O que não ajuda é a desculpar o Estado, nem este Governo, pelo estado a que as coisas chegaram.
Começando pelas queimadas: houve um tempo em Portugal em que os municípios, com a ajuda da GNR, faziam patrulhas para as controlar. Aconteceu desta vez?
Mas há mais, infelizmente: nesta segunda-feira, já depois de termos percebido o que se passou na A25, depois de termos sabido que dezenas e dezenas de portugueses estiveram perdidos em estradas por onde não podiam estar a circular, a GNR confirmou-nos que só tem duas linhas telefónicas para explicar aos portugueses por onde podem ou não fugir do fogo.
Há uma semana foi exposta outra fragilidade: o Governo deixou acabar o tempo da fase Charlie, aquela em que todos os meios estão disponíveis. Com ela foram-se os postos de vigia, mas neste caso, por sorte, os media ajudaram: bastou sair uma notícia e o Governo chamou-os de volta. Se chegaram a tempo de acorrer à loucura, não sabemos. Temos de o perguntar, mas nem sei se queremos ter a resposta honesta.
Agora pior: como explica nesta terça-feira, no PÚBLICO, Liliana Valente, também os meios aéreos ficaram reduzidos a menos de metade desde o final de Setembro — porque acabaram os contratos de dezenas de aviões alugados e ninguém cuidou de negociar um prolongamento do contrato a tempo de precaver o que há uns dias percebemos que viria mesmo: um fim-de-semana muitíssimo perigoso, com os efeitos de um furacão que passou o Atlântico, e os imponderáveis da acção humana. Ninguém nunca saberá como teria sido, se estes 29 meios aéreos estivessem a postos para o primeiro ataque. Mas não é atrevimento dizer que podia ter sido melhor do que foi. De resto, pior era quase impossível.
Foi em cima disto tudo — e isto tudo é pouco para o que se pode dizer — que ouvimos, atónitos, as respostas do primeiro-ministro na sua enésima deslocação à Protecção Civil, na madrugada de segunda-feira. Foi quando já sabíamos que tinham morrido três pessoas, muito antes de sabermos que afinal tinham morrido 36. Aí, às 2h40 da manhã, uma jornalista fez-lhe uma pergunta sobre a reforma florestal e as mortes que continuam a acontecer. Se a pergunta era parva, a resposta foi inqualificável: “Não me faça rir a esta hora.”
Para não chorarmos, vamos voltar atrás no tempo. Bastam três meses e meio. Depois das 64 mortes do dia 17 de Junho, mesmo antes do pleno da época de incêndios, o Bloco de Esquerda exigiu ao primeiro-ministro que apresentasse um plano de emergência para o combate aos fogos neste Verão. António Costa ignorou a exigência. Num debate quinzenal logo a seguir, Assunção Cristas pediu-lhe que demitisse a ministra da Administração Interna. António Costa disse-lhe que não. A líder do CDS, e bem, devolveu-lhe que a partir daí a responsabilidade seria só dele — e a resposta do primeiro--ministro foi cáustica: “É sempre comigo.” Assim seja, senhor primeiro-ministro.
Eis, portanto, o chefe do Governo perante a sua responsabilidade: a floresta não pára de arder; demitiu-se o responsável operacional da Protecção Civil, não por ter falhado, mas por ter uma licenciatura “inventada”; nada mais mexeu no combate aos fogos; e morreram já mais de 100 portugueses, um número sem paralelo na história do Portugal moderno.
A lista ainda não acabou. Desde a primeira tragédia deste nosso triste Verão, um relatório independente confirmou a total descoordenação do que se passou naquele dia trágico, mas o primeiro-ministro ainda nem o tinha lido quando nos falou. A ministra da Administração Interna, que continua em funções, deixou acabar a fase Charlie, deixou sair os vigias dos postos, deixou acabar os contratos dos meios aéreos e mantém à frente da estrutura operacional da Protecção Civil um homem que os técnicos independentes dizem não ter qualquer experiência para o cargo e que mandou interromper registos de ocorrências em Pedrógão que podem ter impedido conhecer-se toda a verdade do que aconteceu. O Orçamento de 2018 já foi apresentado, mas nele não se antevê um reforço nas contas do MAI, nem se lê uma linha sobre o que se fará depois de tudo arder.
Em cima de tudo isto, o que António Costa tem a dizer aos portugueses é que isto “vai seguramente repetir-se”, que “é um bocado infantil a ideia de consequência política ser a demissão de um ministro” e que “em 2008” alertou “que se estava a esgotar o tempo que se tinha ganho” para mudar o combate aos fogos.
Talvez seja preciso dar uma pequena novidade a António Costa: ele foi nomeado primeiro-ministro em 2015, ele já era primeiro-ministro quando Pedrógão aconteceu, ele foi primeiro-ministro durante todo este Verão. A António Costa só nos resta pedir que não nos faça chorar mais, que faça de uma vez o que tem de ser feito. Porque este Governo pode ser popular, mas não pode mesmo ser inimputável. Ou será, senhor Presidente?