Caracol, a casta que podia salvar a cultura da vinha no Porto Santo
Já foi uma ilha de vinho, mas hoje a cultura da vinha está em vias de extinção, perante a inoperância do instituto regional que devia tratar da sua preservação e dinamização. O que se passa com o projecto experimental em torno da casta Caracol é bem elucidativo.
No ano passado, o presidente do Governo Regional da Madeira, Miguel Albuquerque, foi ao Porto Santo apresentar o primeiro vinho branco tranquilo da ilha, da colheita de 2015 e feito com a casta Caracol. Foi uma festa e o governante anunciou amanhãs risonhos para a vitivinicultura da ilha dourada. Era o primeiro vinho de um projecto experimental do Instituto do Vinho, do Bordado e do Artesanato da Madeira (IVBAM), 600 litros apenas. As uvas foram levadas de barco do Porto Santo para a Madeira e vinificadas na adega regional de São Vicente. A qualidade do vinho surpreendeu até a própria presidente do IVBAM da altura, Paula Cabaço.
A experiência era para continuar nos anos seguintes, mas em 2016 já não foi feito vinho nenhum. E este ano também não. Não por falta de uvas, mas apenas porque “não se criaram as condições para o fazer”, como justificou à Fugas uma técnica do IVBAM.
É assim que os bons projectos fracassam, sem que ninguém seja responsabilizado por isso. Neste caso, o que está em causa é a sobrevivência da própria vitivinicultura do Porto Santo. Em boa verdade, tecnicamente já se pode falar em “vinha em vias de extinção”. Os menos de 10 hectares de vinha que ainda há, distribuídos por cerca de 50 pequeniníssimos produtores, são pouco mais do que uma amostra museológica da cultura da vinha naquela ilha. Enquanto isto, nas vizinhas ilhas Canárias, uma geração de novos enólogos e produtores está a fazer vinhos fantásticos e a colocar aquele arquipélago no atlas espanhol do vinho.
No caso do Porto Santo, podia dizer-se que esta ilha é vítima do sucesso do vinho Madeira, produzido na ilha vizinha. Mas até isso não é verdade, porque durante muito tempo o Porto Santo foi o salva-vidas dos vinhos da Madeira, porque as uvas eram mais doces e ajudavam a atenuar o baixo grau dos vinhos da Madeira. Hoje, já não tem esse papel porque já não produz uvas que o justifiquem.
Mais: no Porto Santo também se produzia vinho Madeira. Um dos vinhos que nos ficou na memória para sempre foi um Listrão do Porto Santo que bebemos na antiga adega/garrafeira dos irmãos Barros e Sousa, no Funchal. Hoje, as poucas uvas que ainda se produzem desta casta são vendidas a turistas no Porto Santo. Não é nenhuma heresia: sempre se venderam uvas de Listrão. É uma variedade muito saborosa que tanto dá para vinho como para uva de mesa. Na década de 60 do século passado, entre os mercados do Porto Santo e da Madeira, vendiam-se cerca de 100 mil quilos de uvas Listrão. Cem mil quilos de uvas dava para fazer mais de 50 mil litros de vinho, o que dá bem a ideia da importância que a viticultura já teve no Porto Santo.
Claro que a viticultura na ilha da Madeira foi sempre mais importante. Nesta ilha, começou logo com a chegada dos primeiros povoadores e os seus vinhos, devido à natureza dos solos vulcânicos da ilha, depressa se tornaram famosos. No Porto Santo, onde os solos são maioritariamente de areia e de calcário, a cultura da vinha só começou a ganhar alguma expressão a partir de 1770, quando D. José fez uma espécie de reforma agrária, entregando aos agricultores locais terras de alguns senhorios que “viviam vida folgada na Madeira ou na corte à custa dos rendimento delas”, enquanto “os habitantes gemiam sob o peso do contrato de parceria agrícola”.
Em 1955, ainda chegou a ser construída uma adega regional no Porto Santo, mas também durou pouco. A costa sul, que em tempos foi bordada a vinhas, começou a ser ocupada por casas de veraneio e hotéis e a construção do aeroporto e, mais tarde, do campo de golfe, acabaram com as terras mais férteis. Hoje, quem chega à ilha e tenta captar a essência da sua geografia, de uma aridez quase lunar, em especial na parte norte, não vislumbra nada que a ligue de imediato à viticultura. É preciso percorrer as estradas da zona central da ilha, junto ao aeroporto, para se ver, de onde em onde, pequenas parcelas de vinha. Junto à costa, já só se vislumbram uns pequenos tufos de vinha, uns ainda domados por agricultores teimosos, outros já bravios.
Se a viticultura, mesmo moribunda, ainda persiste no Porto Santo, isso deve-se a pessoas como José Diogo, professor reformado com um bar de petiscos e vinhos na Vila Baleira, o 3 V’s (Vinho, Vinha e Volta). É o único que, a partir do seu hectare de vinha e de algum Moscatel fortificado herdado do sogro, vai engarrafando algum vinho no Porto Santo, embora só para vender no bar (muito bons o 1980 meio doce e o 2003 seco ). A sua dimensão não lhe deixa outra alternativa e também não é possível comercializar vinhos com a marca “Porto Santo”, devido à protecção que existe sobre a marca “Porto”.
É tudo difícil no Porto Santo: é o nome, é a insularidade e é também o clima, mais árido. Como chove pouco, as uvas amadurecem rápido e os pássaros e as lagartixas comem boa parte da produção. É por isso que as variedades mais usadas no vinho Madeira (Verdelho, Sercial, Boal, Terrantez e Tinta Negra Mole), de cacho mais pequeno, têm hoje uma expressão quase microscópica no Porto Santo. O que prevalece são variedades de cacho grande e mais resistentes e rentáveis, como diversas variantes do Moscatel, Listrão e, acima de tudo, Caracol.
Além de muito produtiva (um hectare dá uvas para cerca de 5 mil litros de vinho), a casta Caracol tem um potencial enológico interessante. Chegou à ilha na década de 30 do século passado, vindo da África do Sul (de onde já terá desaparecido), e depressa se tornou popular. As primeiras videiras foram levadas por um emigrante e oferecidas a um agricultor local que tinha a alcunha de “Caracol”. A casta era conhecida como Olho de Pargo, nome bem mais bonito, mas acabou, com o tempo, por ser rebaptizada de Caracol. Localmente, também é conhecida por Uva das Eiras, por ter sido o primeiro lugar onde foi cultivada. É uma casta que só existirá no Porto Santo e que podia (pode) ser a salvação da cultura da vinha na ilha. Mas, como outras variedades, arrisca-se a desaparecer sem nunca ter chegado a ser bem conhecida — até mesmo pelo instituto, o IVBAM, que devia tratar da sua preservação.