Não são os sindicatos quem ameaça Macron. São as “emoções” francesas
O risco é que a acumulação de queixas dispersas se fundam num único movimento.
A reforma do Código do Trabalho em França é um dos grandes testes europeus deste Outono. É a reforma-bandeira de Emmanuel Macron. A incógnita é saber se Macron a levará até ao fim ou se acabará por recuar, como antes dele fizeram Jacques Chirac, Nicolas Sarkozy ou François Hollande. Um recuo no início da presidência, e numa questão central, poderia condenar o seu mandato à inoperância. Na França e na Europa.
Não me ocupo aqui da reforma em si (ver PÚBLICO de 12 Setembro) mas da dinâmica do protesto político e social que se anuncia. Macron tem a maioria absoluta na Assembleia Nacional. E não teme a oposição sindical. Após quase cem sessões de negociação, em que foram feitas emendas, a maior força sindical, a Confederação Francesa Democrática do Trabalho (CFDT), e a Força Operária (FO), não rejeitam a reforma e não se associarão aos protestos. A CFDT apenas se declara “decepcionada” com o texto final da reforma. Politicamente, não poderia dizer o contrário.
O risco de Macron está nas sempre imprevistas “emoções” francesas. “O grande temor do governo, como de todos o que o precederam, seria ver os diferentes descontentamentos, que de momento se manifestam em ordem dispersa, condensarem-se para formar um único”, resume o Monde. A elaboração do Orçamento inquieta vários sectores, a começar pelos funcionários. A rentrée escolar poderá revelar a frustração dos estudantes e professores.
Escreveu em Julho o economista Charles Wyplosz: “Começou a música lancinante. Os autarcas, os sindicatos, os magistrados e todos os grupos de pressão começam a queixar-se das intenções de mudança de Macron. A soma dos interesses particulares não constitui o interesse geral, nunca foi o caso, mas o ruído aumenta. [...] Perante uma pressão em crescendo, Macron vai ter de afrontar o grande desafio que todos os reformadores conheceram um dia ou outro.”
A debilidade sindical
Começo pelos sindicatos. Em si mesma, a mobilização sindical contra a reforma não tem força para travar Macron. A frente sindical está dividida. O sindicalismo francês, outrora poderoso, está debilitado, com uma das mais baixas taxas de sindicalização na Europa — 7,7%, contra 17,5 em Espanha, 20,7 na Alemanha, 36,9 na Itália ou 67,7 na Suécia.
As primeiras manifestações, no dia 12, de iniciativa da Confederação Geral do Trabalho (CGT, de matriz comunista), da Federação Sindical do Ensino (FSU) e da União Sindical Solidários (diversos de tendência radical), não foram impressionantes. Haverá mais no dia 21. E, por iniciativa da CGT e da federação dos transportes da FO, os camionistas entram em cena no dia 25. O objectivo é bloquear estradas e refinarias, de forma a dar a imagem de um país no caos.
Há também uma vertente política. O que está em jogo não será tanto a reforma do código como a “refundação” da esquerda: a CGT, o Partido Comunista (PCF), a esquerda do PS e a França Insubmissa, de Jean-Luc Mélenchon, preparam o terreno para liderar a recomposição da esquerda. Mélenchon agendou uma jornada própria contra o “golpe de estado social” para dia 23: quer ser líder da oposição na Assembleia mas também na rua. São tensas as suas relações com a CGT e o PCF.
Quatro precedentes
Em 1995, o governo de Alain Juppé (e Chirac) lançou uma reforma da segurança social e dos regimes especiais de aposentação nos caminhos-de-ferro e no metro. Após a paralisação dos transportes colectivos na Grande Paris, as greves alargam-se na administração pública, dos correios à educação, da electricidade ao gás. As paralisações do sector público foram designadas por um sociólogo como “greves por procuração” — em nome dos trabalhadores do privado. As greves atingem enorme amplitude e Juppé mete a reforma na gaveta.
Em 2006, o executivo de Dominique Villepin (e de Chirac) lança a lei do “Contrato de Primeiro Emprego”. O protesto começa devagar mas explode em Março. O grande impulso é dado pela entrada em cena dos estudantes. O movimento não teve a dimensão de 1995 mas obrigou o governo a recuar.
Em 2010, Sarkozy quis alargar em dois anos a idade da reforma. Teve pela frente, como nos casos anteriores, uma frente comum sindical. A extensão do movimento de protesto com a adesão dos estudantes apanhou de surpresa o governo e os sindicatos. O bloqueio das refinarias foi outra surpresa. O movimento alarga-se, da energia ao audiovisual público.
Os francesas protestavam contra o quê? Havia uma acumulação de queixas: idade da reforma, crise económica, desemprego, falta de perspectiva para os jovens, medo do futuro. Mas o alvo era claro: Sarkozy. O protesto durou quase um ano.
François Hollande passou pela mesma prova em 2016, com a lei El Khomri, de revisão do Código do Trabalho, que dividiu o PS. As manifestações declinaram rapidamente mas o movimento mobilizou estudantes e levou ao bloqueio de depósitos e refinarias. O sociólogo Guy Groux considera que foi sobretudo um movimento de “minorias activas”. Hollande cedeu e fez numerosas modificações à lei.
E desta vez?
A táctica da CGT é “adicionar os descontentamentos”. Exemplo do ensino: “Os cortes orçamentais vão atingir as faculdades, a redução das APL [subsídios de alojamento] e a reforma do BAC [exame de fim do secundário] vão ser incendiárias.”
E Macron? Não recuará, garante. Mas é apanhado numa fase de rápida quebra de confiança. O barómetro de Agosto da BVA aponta uma perda de 11 pontos num só mês: apenas 43% de opiniões favoráveis e 55 de desfavoráveis. Os “satisfeitos” dão muitas razões, como “a vontade de reformar o país” ou “a mudança do jogo político que paralisava o país há 40 anos”. Os “descontentes” têm outras tantas razões, em que o Código do Trabalho pouco conta. As mais curiosas dizem respeito à imagem de distância do Presidente Júpiter: “Não comunica com o povo e trata-o de forma altaneira”; “É demasiado distante”; “Não é um Presidente que represente os franceses. Parece que vive noutro planeta”; “Está convencido de que só ele tem razão.”
O risco é a referida “condensação” de descontentamentos, a maioria dos quais pouco ou nada tem a ver com os quatro meses da era Macron, agravada pela quebra de confiança no Presidente.
Os franceses são únicos na capacidade de produzir “emoções populares”, uma figura com longas raízes no país. Macron, que lê História, deve sabê-lo.