Começaram os 20 dias mais perigosos do conflito catalão
O Tribunal Constitucional suspendeu a lei de ruptura com Espanha. Em Barcelona, a Procuradoria ordenou à polícia autonómica que confisque as urnas de voto. É a prova de força final
A manifestação da Diada marcou na segunda-feira o arranque da grande prova de força entre o Estado espanhol e o govern catalão até ao referendo secessionista de 1 de Outubro (1-O), declarado ilegal pelo Tribunal Constitucional (TC). Esta terça-feira, foi o dia da resposta do Estado. O referendo será previsivelmente um simulacro. Teme-se que, entretanto, o conflito passe das instituições para a rua.
O pleno do Tribunal Constitucional aceitou o recurso do Governo e suspendeu cautelarmente a lei de ruptura com Espanha — Lei da Transitoriedade Jurídica e Fundadora da República Catalã — aprovada pelo parlament de Barcelona na quinta-feira. Suspendeu igualmente a lei tributária que previa a criação de um Ministério das Finanças catalão. Já anteriormente declarara inconstitucional a “lei do referendo”.
A decisão do TC será óbvia. A Lei da Transitoriedade revoga, de facto, a Constituição espanhola. Não está apenas em causa a inconstitucionalidade do referendo e da secessão, mas o próprio modo da deliberação no parlament, coarctando a voz da oposição. De resto, para alterar o Estatuto catalão é necessária uma maioria de dois terços e, para rever a Constituição, uma maioria de três quintos. O parlament decidiu que as leis da independência seriam aprovadas por maioria simples.
Mariano Rajoy, presidente do Governo, debateu a Catalunha no Senado. Sem novidade. Apenas uma azeda troca de palavras com o senador independentista catalão Josep Lluís Cleries. Este acusou Rajoy de ter “dinamitado a convivência” com a Catalunha com a sua campanha contra o Estatuto referendado pelos catalães em 2006 e mutilado pelo TC em 2010. “Agora colhe os frutos desses erros. Abandonou todos os catalães, inclusive os que queriam continuar no Estado espanhol”.
Respondeu Rajoy: “Os senhores dividiram a sociedade da Catalunha, ameaçando jornais e autarcas por se negarem pôr à vossas ordens. Querem liquidar a Constituição, o Estatuto e 500 anos de História.”
Os Mossos sob pressão
Em Barcelona, a Procuradoria da Catalunha ordenou às forças de segurança que actuem de modo a impedir o referendo, incluindo a polícia autonómica, os Mossos d’Esquadra. Deverão apreender todas as urnas e materiais necessários à votação. Para muitos independentistas, os Mossos deveriam servir como garantes da realização do referendo.
É um terreno minado. Em Julho, o presidente da Generalitat (governo catalão), Carles Puigdemont, provocou a demissão do seu director-geral, Albert Batlle, conhecido pelo seu legalismo, substituindo-o por um independentista, Pedro Soler. Falou-se na politização da polícia. A “cabeça” de Batlle teria sido pedida pela Candidatura de Unidade Popular (CUP), uma facção ultra-radical, apenas com dez deputados mas que assumiu de facto o comando táctico do “processo”.
Os Mossos serão submetidos a uma forte pressão por parte dos independentistas, que recusam a “legalidade espanhola” em nome da “legalidade catalã”. A sua tradição é a estrita obediência ao poder judicial. A figura decisiva não será Soler, figura sem prestígio, mas o comandante dos Mossos, Josep Lluís Trapero, que goza de grande autoridade e popularidade. Os sindicatos da polícia apelaram há dias ao respeito da legalidade.
Pouco depois da ordem da Procuradoria, o porta-voz do govern, Jordi Turull, declarou que Puigdemont desvinculava a polícia autonómica da vigilância ou do apoio ao referendo, indicando que a sua “prioridade máxima é evitar atentados e perseguir os terroristas”.
Este “desvio” da tarefa dos Mossos poderá também ter como objectivo forçar o Estado a recorrer à polícia espanhola e à Guardia Civil no 1-O, correndo o risco de confronto directo entre elas e independentistas, a última coisa que Madrid deseja que aconteça. Na semana passada, a Guardia Civil fez buscas, à procura de urnas e boletins de voto, o que serviu de tema de propaganda aos secessionistas.
20 dias perigosos
O que se teme é que a escalada da violência verbal prepare a violência política. A Diada decorreu como uma festa. Ontem foi um dia calmo. Reportagens jornalísticas dão conta da saturação de grande parte da população.
As forças independentistas radicalizaram o confronto mas não conseguiram alargar o seu espaço político. Para isso, os próximos 20 dias são vitais.
A Assembleia Nacional Catalã (ANC), a organização com maior capacidade de mobilização de massas, projecta “mobilizações prolongadas” até ao 1-O. Mas a dinâmica de rua poderá vir a ser dominada pela CUP, que quer cortar todas as pontes, tem experiência no combate de rua e não hesitará em forçar confrontos.
A táctica da CUP e de outras franjas radicais consiste em provocar uma “guerra de atrito” para suscitar uma “reacção desproporcionada” do Governo de Madrid. Aguardam-se 20 dias perigosos.
Decorre um teste em Barcelona. A presidente da cidade, Ada Colau, recusou até agora ceder as instalações municipais para o 1-O. Invoca a segurança dos funcionários. Poderá ela resistir à pressão dos independentistas? O que está em causa não são os edifícios: a maioria dos espaços públicos pertence à Generalitat. É uma questão política altamente simbólica: a “grande Barcelona” demarca-se do referendo ilegal.
E se não houver referendo? O nacionalismo vitimizar-se-á. Mas proclamará Puigdemont a independência no dia 2 de Outubro, como prometeram os secessionistas? De momento, tudo é ficção.
O que está em causa não é apenas a sociedade catalã, que poderá partir-se ao meio, mas a perspectiva de abertura de uma crise maior em Espanha, com repercussão em toda a Europa. A crise das instituições espanholas, do regime das autonomias aos partidos políticos, está aberta desde há alguns anos. O conflito catalão poderá ter uma virtude inesperada: expor essa crise de modo tão dramático que exija resposta.