Catalunha: Uma identidade que nem o tempo nem Madrid apagaram
Catalanismo, nacionalismo, independentismo, palavras que têm hoje sentidos diferentes do que tiveram e certamente do que terão passada a actual crise. Para já, sai-se à rua, que é dia de celebrar a Diada.
[Setembro de 2000: Falta muito para o independentismo ocupar o centro do debate na Catalunha, mas na Universidade Pompeu Fabra, de Barcelona, os recém-chegados alunos Erasmus não tardam a perceber que a política está bem presente nas salas de aula e a sua expressão mais óbvia é a língua. Nos cursos de Jornalismo e Cinema, os Erasmus por turma são tão poucos que a questão nem se coloca. Três trimestres de aulas, dezenas de disciplinas e só uma não foi dada em catalão – o professor de Documentário vinha de Madrid. Nos cursos com mais estrangeiros, Gestão ou Direito, os Erasmus bem pediram aulas em castelhano (que tinham estudado para preparar o ano lectivo) mas em cada situação o professor deu a escolher aos alunos e estes nunca tiveram dúvidas – aulas em catalão. “Tens de perceber, os meus pais não puderam estudar em catalão, os livros liam-se clandestinamente…”, repetia amiúde Nuria, independentista convicta, que não se cansava de nos indicar museus e livros de história para nos ajudar a perceber a sua intransigência.
Por causa dela, e de mais alguns colegas, o catalão depressa deixou de ser um conjunto de sons duros para se tornar numa língua familiar. A universidade ajudou, com um curso de três meses. E quem é que não acha piada aprender uma língua nova aos 21 anos? Barcelona não se tornou menos cosmopolita por isso, a oferta cultural continuava a ser esmagadora comparada com a Lisboa da altura, bastava sair à rua para conhecer espanhóis de todo o país ou estrangeiros de todo o mundo. Dizer “Si us plau” tem mais graça do que “por favor” e “butxaca” é uma bela palavra para algibeira e era também o nome da agenda cultural, de bolso, a que todos queriam deitar a mão no início de cada mês, a única onde aparecia tudo, mas mesmo tudo o que acontecia a cada dia na cidade.
Às vezes irritava tanta intransigência. Mas depois as palavras da Nuria, a quem nunca ouvimos uma frase em espanhol, soavam mais alto. E então lembrávamos as histórias contadas pelos nossos pais, quando eram obrigados a ouvir algumas músicas com almofadas nas janelas ou eram expulsos do liceu por falarem em democracia. E a seguir Nuria queixava-se de Madrid, que “ignora os catalães” mas “deu privilégios fiscais aos bascos por causa da violência da ETA”. E tudo aquilo parecia mesmo fazer sentido. Ajudava a universidade ser tão boa e Barcelona ser Barcelona.]
Não pode ser por acaso que os catalães decidiram que o seu feriado nacional seria a 11 de Setembro, data que em 1714 assinalou a integração definitiva da Catalunha no Estado espanhol, após mais de um ano de cerco à cidade de Barcelona. No mínimo, é sinal de uma relação mal resolvida, com uma das partes a insistir na necessidade de lembrar a outra que várias guerras as opuseram e que o outro várias vezes o bombardeou.
“A Barcelona, pelo bem de Espanha, é preciso bombardeá-la pelo menos uma vez a cada 50 anos”. Se a parte “pelo bem de Espanha” é discutível, ninguém nega que o resto tenha mesmo sido dito pelo general Baldomero Espartero, militar tornado regente de Espanha de 1840 a 1843. A frase, tal como as ordens para bombardear a capital catalã como resposta ao levantamento popular provocado pela crise no sector do algodão, acabaram até por apressar o fim da sua regência.
A actual narrativa histórica dos independentistas catalães sustenta que a Catalunha foi uma nação soberana durante muito mais tempo do que aquele em que esteve integrada em Espanha. A verdade é que foram muitas as ocasiões em que a Catalunha tentou a sua independência (Guerra dos Trinta Anos, “revolta dos ceifeiros”, nos anos 1640, primeira república a ou a própria Guerra civil…) e, do ponto de vista histórico, poderia hoje ser um Estado. E é inegável que tem desde o período medieval uma longa tradição de identidade e autonomia.
A instituição política de que os catalães mais se orgulham é o seu parlamento, que vêem como uma continuação dos Tribunais Catalães (e nunca se esquecem de sublinhar que têm uns anos a mais do que o Parlamento britânico). Até 1714, diferentes reinos coexistiam no que é hoje Espanha e no reino da Catalunha e Aragão o poder era partilhado entre o rei (monarca de dinastia catalã) e os membros destes Tribunais. Nos séculos seguintes, a Catalunha diluiu-se num Estado unificado com Castela e Madrid a ocuparem um papel central. Mas a Catalunha histórica, genética, dir-se-ia, nunca desapareceu.
Ser mais feliz
O que é ser catalão? O que significa a nação catalã? Mais a mais hoje, quando a maioria dos quase 8 milhões de habitantes da Catalunha tem pelo menos um dos pais com origem noutras partes de Espanha. O nacionalismo catalão não é étnico. É linguístico, é cultural, é territorial. “Nação significa um território definido, que nós temos, uma cultura própria, que temos, uma língua específica”, dizia em Fevereiro de 2014 o antigo presidente da Generalitat, Artur Mas, numa entrevista conjunta a jornalistas europeus.
Em 2012, Muriel Casals tinha 67 anos (morreu o ano passado) e presidia à Òmnium Cultural, uma organização que nasceu ainda durante o franquismo (foi ilegalizada e passou a funcionar na clandestinidade), em 1961, para promover a língua e a cultura catalãs. “Durante o franquismo, a resistência na Catalunha foi feita pelos escritores, pelo mundo da cultura, era uma resistência que se exercia através da língua", diz Ferran Casas, jornalista catalão. A Òmnium nasceu de uma aliança habitual na Catalunha, entre intelectuais e o mundo da burguesia industrial.
Na entrevista que deu ao PÚBLICO há cinco anos, Casals respondeu de forma simples sobre o que mudaria na sua vida se a Catalunha se tornasse independente. “Eu seria mais feliz. E é melhor ter um bom vizinho contente do que um familiar desavindo”, explicava. Casals escolheu falar de vizinhança mas a metáfora mais usada em conversas com catalães é a do casamento, um casamento em que uma das partes fez o que pôde para encontrar um lugar para si sem desistir do casal e a outra nunca lhe deu o espaço que desejava.
Nacionalidades e nações
Na Constituição espanhola, aprovada em 1978, em plena transição do franquismo para a democracia, diz-se que Espanha tem “nacionalidades” (Catalunha, País Basco e Galiza) e “regiões”, mas a todas se deu poderes alargados de autogoverno. “É difícil ter uma nacionalidade sem uma nação”, dizia Artur Mas antes da consulta não vinculativa sobre a independência que o seu governo ajudou a organizar a 9 de Novembro de 2014. Uma consulta que começou por se pretender referendo – é inconstitucional referendar a secessão de um território em Espanha – e se transformou em voto simbólico, para desespero de muitos nacionalistas catalães que por esses dias acreditaram pela primeira vez que ainda votariam a sério o seu estatuto político.
Historicamente, sempre houve 25 a 30% de independentistas na Catalunha. O salto que se verificou nos últimos 15 anos – em 2012, pela primeira vez, uma maioria de 51,1% afirmou numa sondagem que escolheria a independência num referendo, quando até então a maioria sempre quisera numa autonomia reforçada dentro de Espanha – tem várias explicações. A principal, concorda a maioria dos investigadores, é a forma como o Partido Popular, de José María Aznar, “foi muito activo na sua mobilização contra as autonomias”, principalmente no segundo mandato (2000-2004), dizia em 2012 ao PÚBLICO o jornalista Xavier Vidal-Folch, que até 2004 foi editor da edição do El País na Catalunha.
Aznar e Rajoy
O PP na oposição, durante os anos de Governo socialista de Rodríguez Zapatero, não se portou melhor. Depois de os parlamentos catalão e espanhol terem aprovado um novo Estatuto de Autonomia, entretanto referendado pelos catalães, o PP organizou uma campanha nacional de recolha de assinaturas para um referendo contra o documento, levando-o até ao Tribunal Constitucional, que enfraqueceu muito o Estatuto. Começaram aí os referendos simbólicos, organizados em municípios, e os protestos, com cada vez mais bandeiras independentistas a aparecerem na Diada.
Quando o PP de Mariano Rajoy ganhou com maioria absoluta em 2011, as relações sofreram novo golpe. A sensação, a partir de Barcelona, era que o Governo tinha lançado guerra às autonomias e se esforçava por aprovar leis para reforçar a centralização. “O que eu quero é respeito. E não sou respeitado por Madrid”, dizia-nos em 2014 Òscar Palau, editor do jornal nacionalista El Punt Avui.
Desde que o PP levou o Estatuto a tribunal, o nacionalismo catalão nunca mais parou de crescer. Organizações como a Associação Nacional Catalã (durante anos liderada pela actual presidente do parlamento catação, Carme Forcadell) ou a própria Òmnium ganharam força. E foi assim que, há cinco anos, a Diada juntou um número nunca visto de pessoas (1,6 milhões, segundo a polícia, dois milhões, disseram os organizadores). “Catalunha, o novo Estado da Europa” foi o lema da marcha que reuniu membros de quase todos os partidos.
Entretanto, muito aconteceu. Rajoy recusou negociar um novo pacto fiscal, Artur Mas teve de ceder a presidência a Carles Puigdemont, a Diada tem reunido cada vez menos gente (afinal, a promessa de um referendo tarda em ser cumprida), o “não” à independência num referendo voltou a ser a escolha da maioria e os independentistas perderam força no parlamento catalão. Só uma coisa não se alterou: entre 70 a 80% dos catalães continua a defender o direito a decidir o seu futuro político numa consulta vinculativa.
Puigdemont insiste que vai realizar o prometido referendo a 1 de Outubro e proclamar a independência de forma unilateral se essa for a vontade da maioria. Esgotadas as tentativas negociais de Artus Mas, os actuais líderes independentistas decidiram avançar, contra tudo e contra todos, se preciso for. Faça Madrid o que fizer, Puigdemont não tem nada se não tiver os catalães consigo. A Diada desta segunda-feira vai ajudá-lo a perceber quem se dispõe a caminhar consigo até ao fim.