A independência da Catalunha: o labirinto jurídico-político
Até agora, nunca ocorreu na Espanha democrática uma invocação do art.º 155 da Constituição. Se ocorrer, poderemos ter, na prática, algo que se aproxima da suspensão da autonomia. A Catalunha teria de acatar ordens directas do governo central.
1. O dia da Catalunha, a Diada, comemora-se a 11 de Setembro. Simboliza a resistência durante a guerra de sucessão do trono da monarquia espanhola, que se prolongou até esse dia de 1714, após mais de um ano de cerco da cidade de Barcelona. De um ponto de vista histórico, a Catalunha poderia ser hoje um Estado independente, tal como a Escócia nas ilhas britânicas, ou o Quebeque na América do Norte / Canadá. Tem uma longa tradição de identidade e autonomia política que emergiu ao longo do período medieval. Nessa altura, a Catalunha e o Reino de Aragão foram governados por um mesmo monarca de dinastia catalã. Foi na segunda metade do século XVI, quando Fernando II de Aragão se casou com Isabel I de Castela, que a Catalunha passou a integrar-se numa Espanha unificada. Nos séculos seguintes, a sua inserção num Estado espanhol unificado, onde Castela e Madrid se tornaram centrais, nunca deixou de estar isenta de contestação, latente ou aberta, e de turbulência política.
2. Várias vezes a Catalunha tentou a sua independência, aproveitando as circunstâncias internas espanholas e/ou internacionais. No século XVII, durante a guerra dos Trinta Anos (1618-1648), fê-lo durante a chamada “revolta dos ceifeiros” nos anos 1640. Essa sublevação contra a monarquia espanhola facilitou a restauração da independência portuguesa. (Sobre as relações com Portugal, sobretudo ao nível cultural, mas também histórico-político, ver o interessante livro de Félix Cucurull, Dois Povos Ibéricos. Portugal & Catalunha, numa reedição da Guerra & Paz, 2017). No início do século XVIII, durante a guerra da sucessão de Espanha (1701-1714), que marcou a transição da coroa espanhola da dinastia germânica (austríaca) dos Habsburgos, para os Bourbons (francesa), a Catalunha esteve do lado dos Habsburgos. A derrota consolidou a perda de autonomia e das suas instituições próprias e a centralização do Estado espanhol. Poderíamos acrescentar ainda os anos 1870, durante a primeira república espanhola, e a guerra civil (1936-1939), onde a ambição secessionista voltou, de alguma forma, a (re)emergir significativamente. Acabou por ser esmagada, primeiro pela restauração da monarquia e depois pelos nacionalistas de Francisco Franco.
3. Independentemente das injustiças históricas, e do rumo que seguiram os acontecimentos no passado, a Espanha de hoje é um Estado democrático, respeitador dos direitos humanos e membro de pleno direito da União Europeia. Nele, as comunidades autónomas têm já importantes poderes de autogoverno, garantidos constitucionalmente. Ao mesmo tempo, vivemos, também, num mundo globalizado, onde a soberania adquiriu novos contornos de partilha, que não são os do período medieval, nem do século XVII, onde a soberania emergiu como conceito político central, nem sequer da primeira metade do século XX. É neste contexto que tem de ser avaliada uma hipotética independência da Catalunha, a qual, de novo, irrompeu com intensidade. Não face um passado histórico mais próximo, ou mais distante. (Isto não significa, obviamente, que este seja irrelevante para a questão, como referimos logo ao iniciar.) Com a aproximação do referendo sobre a independência, previsto para 1 de Outubro próximo (veremos se, e como, se realizará), urge, assim, tentar antecipar algumas das possíveis consequências. Em particular, é necessário ter em conta o cenário de uma hipotética declaração unilateral de independência que lhe poderá suceder a seguir.
4. Pelas posições políticas totalmente antagónicas de ambas as partes, nada indica que uma hipotética separação da Catalunha do Estado espanhol seria um processo consensual, baseado num acordo (tratado), regulando os diferentes aspectos da mesma. Se fosse assim, não se levantariam a grande maioria das questões que aqui vou discutir, a começar pela própria convocação do referendo. Este referendo, segundo declarações do Primeiro-ministro espanhol, Mariano Rajoy, nem sequer se irá realizar. Seja como for, pode-se discutir a questão no plano das hipóteses, o que vou fazer aqui. Numa perspectiva jurídico-política as questões a debater são fundamentalmente as seguintes: (i) o referendo sobre a independência respeita a legalidade da ordem jurídico-constitucional interna espanhola? (ii) é uma declaração de independência unilateral compatível com a legalidade internacional? (iii) poderá, nessas circunstâncias, uma Catalunha independente (continuar a) ser membro da União Europeia? Naturalmente que um assunto complexo como este tem múltiplas facetas importantes, como a económica, comercial e financeira, as quais aqui apenas irão ser marginalmente abordadas. Os aspectos ligados ao Direito Constitucional espanhol, ao Direito Internacional, ao Direito da União Europeia (e políticos) irão ser o centro da análise.
5. A lei do referendo, recentemente aprovada no Parlamento da Catalunha, evidenciou as profundas divisões entre os pró e contra a independência. Nela está formulada a pergunta que os catalães deverão responder a 1 de Outubro: "Quer que a Catalunha seja um Estado independente sob a forma de república?". Também já foi aprovada a Lei de Transitoriedade Jurídica e Fundacional da República da Catalunha (vulgarmente conhecida como “lei de desconexão”). Ambas têm por base um texto pactuado entre os partidos da coligação Junts pel Si / Juntos pelo Sim (JxSÍ) e a Candidatura d'Unitat Popular / Candidatura de Unidade Popular (CUP). Não cabe aqui analisar o texto da “lei de desconexão”. Apenas lhe vou fazer uma referência sumária para enquadramento da questão. O art.º 1.º estabelece que “A Catalunha se constitui numa República de Direito democrática e social”. Por sua vez, no art.º 2.º é estabelecido um princípio de soberania do povo da Catalunha “do qual emanam todos os poderes do Estado”. O artigo 3.º refere que “Enquanto não for aprovada a Constituição da República, a presente Lei é a norma suprema do ordenamento jurídico catalão”. No art.º 4.º nº 1 diz-se que “O direito da União Europeia mantém a sua natureza e posição face ao direito interno”. O art.º 10.º, n.º 2 estabelece que “Também se continuam a aplicar, de acordo com esta Lei, as normas de Direito da União Europeia, o direito internacional geral e a os tratados internacionais”. Nada é dito relativamente à moeda a usar — pressupõe-se que continuaria a ser o euro —, nem à questão das forças de segurança, polícias e exército. Como se enquadram a Lei de Transitoriedade Jurídica e Fundacional da República da Catalunha (e a lei do referendo) na Constituição espanhola de 1978, que é o quadro de legalidade vigente?
6. Antes de mais é necessário notar que a Constituição de 1978 foi efectuada em democracia, após o final da ditadura franquista. Tal como qualquer Constituição de um Estado soberano, democrático e pluralista, contém o quadro jurídico fundamental do Estado espanhol, enquadrado por princípios de respeito dos direitos humanos e das minorias. Não prevê o direito à secessão das comunidades autónomas, ou seja, de estas se separarem retirando-se do Estado espanhol. A Constituição de 1978 é inequívoca quanto a esse aspecto no seu art.º 2.º. Aí é afirmado que esta se baseia “na unidade indissolúvel da nação espanhola, pátria comum e indivisível de todos os espanhóis”. Ao mesmo tempo, no texto constitucional, é reconhecido e garantido “o direito à autonomia das nacionalidades e regiões que a integram.” Tudo isto é algo normal em termos constitucionais comparativos, sobretudo em quadros jurídicos democráticos e pluralistas. O mesmo acontece na grande maioria das constituições de outros Estados, nomeadamente em Estados federais com larga autonomia conferida às suas entidades constitutivas, como, por exemplo, os Estados Unidos da América ou da República Federal da Alemanha.
7. Sabemos já que o Tribunal Constitucional de Espanha admitiu os recursos apresentados pelo governo central, o que se traduz, na prática, numa suspensão cautelar imediata da lei que convocou o referendo na Catalunha. Será a decisão efectivamente acatada pelo governo da Catalunha (Generalitat) e outras entidades públicas (desde logo as autarquias), incluindo as forças de segurança, nomeadamente os Mossos d'Esquadra? Veremos a evolução da situação nas próximas semanas. Quanto à Constituição espanhola, é de notar que contém disposições sobre um possível incumprimento. Atente-se no conteúdo do art.º 155 n.º 1: “Se uma Comunidade Autónoma não cumprir as obrigações impostas pela Constituição ou outras leis ou actos que prejudiquem seriamente o interesse geral da Espanha, o Governo, mediante solicitação ao Presidente da Comunidade Autónoma e, no caso de não ser atendido, com a aprovação da maioria absoluta do Senado, pode tomar as medidas necessárias para obrigar o último a cumprir essas obrigações ou a proteger o referido interesse geral.” Acrescenta ainda o número 2 do mesmo artigo: “Para a execução das medidas previstas no parágrafo anterior, o Governo pode dar instruções todas as autoridades das Comunidades Autónomas.” Este dispositivo, inspirado no art.º 37 da Lei Fundamental alemã, que contém um mecanismo de “medidas coercitivas federais”, foi concebido como uma solução de último recurso.
8. Até agora, nunca ocorreu na Espanha democrática, sob a vigência da actual ordem constitucional, uma invocação do art.º 155 da Constituição pelo governo central. Se ocorrer, poderemos ter, na prática, algo que se aproxima da suspensão da autonomia. A Catalunha teria de acatar ordens directas do governo central. Resta saber qual a dimensão das tensões políticas que daí iriam emergir, como seriam exploradas pelos independentistas, e como seriam geridas pelo governo central. Se o governo espanhol de Mariano Rajoy (PP) tem o apoio do Ciudadanos de Albert Rivera, e do PSOE, de Pedro Sanchéz, na oposição à realização do referendo na Catalunha, já o mesmo não se pode dizer do recurso ao art.º 155. Mas, se é claro, do ponto de vista da ordem constitucional em vigor — poderá é contestar-se esta —, que uma “lei de desconexão”, e a lei que convoca o referendo para a independência, não respeitam a Constituição de 1978, isso não encerra a totalidade do problema. Para além da dimensão política — e a questão da independência da Catalunha é incontornavelmente política —, é necessário avaliar a sua pretensão de independência no plano externo, jurídico e político. Aí será necessário ter em conta o Direito Internacional, e, ainda mais, o quadro jurídico da União Europeia. Isto porque o objectivo proclamado é fundar uma República da Catalunha que seja membro da União Europeia. Será viável? Analisaremos esta questão crucial na segunda parte deste artigo.