Por que é que querem tanto convencer-nos a “comer limpo”?
O conceito de “comida limpa”, com o seu quê de culto de pós-verdade, veio confirmar o quão vulneráveis e perdidos milhões de nós se sentem relativamente ao regime alimentar – ou seja, relativamente ao nosso corpo. E como qualquer culto, pode tornar-se sombrio e fracturante quando seguido cegamente.
Na Primavera de 2014, Jordan Younger reparou que o cabelo lhe estava a cair aos tufos. Not cool, foi a sua reacção. Na altura, Younger estava com 23 anos e acreditava ter a mais saudável de todas as dietas possíveis: raw vegan, de origem completamente vegetal e livre de glúten, açúcar, óleo e azeite, grãos e legumes. Conhecida como “The Blonde Vegan”, Younger era uma blogger de “bem-estar” em Nova Iorque, uma de milhares que no Instagram (onde tinha setenta mil seguidores) se agrupam sob a hashtag #eatclean. Embora não possuísse qualquer formação em nutricionismo, Younger tinha vendido mais de quarenta mil cópias, a 25 dólares cada, do seu programa de “limpeza” de cinco dias – uma fórmula para uma dieta completamente crua e de origem vegetal, com especial foco nos sumos verdes detox.
Mas a dieta “limpa” e saudável que vendia aos seus seguidores estava a deixá-la a ela própria doente. Longe de ser muito saudável, sofria de uma grave distúrbio alimentar: ortorexia, a obsessão pelo consumo exclusivo de alimentos puros e perfeitos. A dieta raw vegan de Younger fez com que deixasse de ter menstruação e que a sua pele ganhasse um tom laranja, de tanta batata-doce e cenoura que consumia (os únicos hidratos de carbono a que se permitia). Procurou ajuda psicológica, e começou lentamente a alargar o repertório de alimentos que permitia a si própria comer, começando pelo peixe. Percebeu, por fim, que o problema não estava no veganismo per se, mas na dieta particularmente rígida e restrita que tinha imposto a si mesma.
À medida que recuperava paulatinamente do seu distúrbio alimentar, Younger agonizava perante um novo dilema. “O que pensarão as pessoas quando souberem que a ‘Blonde Vegan’ agora come peixe?” Decidiu ser frontal com os seus seguidores, escrevendo um post no seu blogue intitulado “Why I’m Transitioning Away from Veganism” [“Por Que Estou a Deixar o Veganismo”]. Poucas horas depois começou a receber mensagens de vegans em fúria, exigindo a devolução do dinheiro gasto em programas de limpeza e em T-shirts compradas no seu site (que exibiam slogans como “OH SIM, COUVES”)
Perdeu “milhares” de seguidores e recebia uma dose diária de mensagens iradas, incluindo ameaças de morte. Houve quem respondesse à sua confissão de que sofria de um distúrbio alimentar acusando-a de ser “um pedaço de banha gorda” a quem faltava a disciplina necessária para ser verdadeiramente “limpa”.
Uma escola moderna “limpa"
A história da alimentação está cheia de dietas e curas milagrosas. Mas antes estas ficavam, quais teorias da conspiração, nas margens da cultura alimentar. Com a “comida limpa” foi diferente, porque se estabeleceu como um desafio aos modos de alimentação tradicionais, e porque atingiu picos de popularidade nos últimos cinco anos que a levaram muito para lá dessas margens. Impulsionada pelas redes sociais, faz alegações mais absolutas e tem um alcance mais abrangente do que qualquer outra escola moderna de aconselhamento nutricional.
No seu âmago, a dieta “limpa” aponta para a ingestão exclusiva de alimentos “orgânicos” e “não-processados” (seja qual for o significado atribuído a termos tão ambíguos). Há desde versões vegan até outras que preferem a carne (preferencialmente de caça) ou algo misterioso chamado “caldo de ossos” (ou como nós lhe chamamos, sopa). No início, a “comida limpa” parecia algo modesto e até caseiro: em vez de andarmos a contar calorias, a ideia passava por comermos o maior número possível de alimentos nutritivos e cozinhados em casa.
Mas rapidamente se tornou claro que a “comida limpa” era mais do que um regime alimentar: era um sistema de valores, que propagava a ideia de que a maneira como a maior parte das pessoas come não só as engorda como as torna impuras. Vindo do nada, surgiu todo um novo universo que envolve óleo de coco, promessas dúbias e courgetes em espiral. Nos distantes tempos de 2009, James Duigan, dono do ginásio The Bodyism e ex-personal trainer da modelo Elle MacPherson, publicou o primeiro dos seus livros, Clean and Lean. Um dos primeiros a adoptarem o #eatclean, Duigan conta que “batalhou” com a editora “para que fossem incluídos ingredientes como couve e quinoa, porque ninguém sabia o que eram”. Agora, há quinoa em todos os supermercados e a couve é tão quotidiana como a alface. “Tenho saudades dos tempos em que ‘comer limpo’ significava não nos sujarmos muito”, ironizou recentemente a romancista Susie Boyt.
Taças de quinoa e nutribalelas
Quase tão rapidamente quanto se tornou omnipresente, a “comida limpa” provocou uma reacção. Em 2015, Nigella Lawson deu voz a muitos quando expressou “nojo” pela maneira como o “comer limpo” se tornara numa forma preconceituosa de fascismo corporal. “A comida não é suja”, escreveu Lawson. Outros críticos, como a cozinheira e autora de livros de receitas Ruby Tandoh, que escreveu a propósito, em Maio de 2016, um artigo amplamente partilhado na revista Vice, acusaram a “comida limpa” de levar a distúrbios alimentares.
Muitas das vozes críticas argumentam que, como método de alimentação saudável, os seus fundamentos assentam em bases científicas incorrectas. Em Junho, a Associação Americana do Coração afirmou que o óleo de coco, visto pelos adeptos da “comida limpa” como uma panaceia, não tem afinal “efeitos compensatórios e favoráveis conhecidos”, e que o seu consumo pode resultar num aumento do colesterol LDL – o colesterol “mau”. Umas semanas depois, Anthony Warner – consultor alimentar com formação científica e autor do blogue The Angry Chef – publicou um enorme artigo a atacar a ciência por trás da “comida limpa”, chamando-lhe um mundo de “taças de quinoa” e “nutribalelas” alimentadas pela era da informação moderna.
Quando Giles Yeo, geneticista na Universidade de Cambridge, apresentou este ano um episódio do programa BBC Horizon dedicado a examinar os factos científicos em que as diferentes escolas de “comida limpa” assentam, encontrou desde receitas inócuas a casos sérios de negligência.
Fez referência à “dieta alcalina” do Dr. Robert O. Young, que vendia a ideia de que as doenças são causadas pela ingestão de alimentos “ácidos”. Em 2012, após ter sido diagnosticada com um cancro terminal sem ter ainda completado 30 anos, Naima Houder-Mohammed, oficial do exército britânico, pagou a Young mais de 77 mil dólares por um tratamento (que incluía refeições compostas por abacate, a que Young chama “a manteiga de Deus”) no seu “rancho do pH milagroso” nos EUA. Acabou por morrer nesse mesmo ano. Young foi preso em Junho deste ano após ter sido considerado culpado - num outro caso que não se encontra relacionado com o de Naima - de exercer medicina sem ter qualificações para tal. Embora possa ser um caso extremo, parece claro que muitos gurus do bem-estar contam uma “narrativa perturbadora” baseada em falsidades, conclui a análise de Yeo.
#eatclean em rebranding
À medida que no último ano se tem intensificado a imprensa negativa em torno da “comida limpa”, muitas das primeiras deusas do #eatclean têm vindo a apostar num rebranding – assegurando terem deixado de usar a palavra “limpa” para descrever as receitas que as fizeram vender milhões de livros. Ella Woodward Mills – também conhecida por Deliciously Ella, autora e empresária cujas bolinhas energéticas de coco e aveia se vendem nos supermercados ingleses a 1,79 libras a unidade, cerca de dois euros – afirmou no programa de Yeo que, no início, “limpo” estava relacionado com comida natural, real, não-processada. “Agora está relacionado com dietas e modas”, lamentou.
Mas por muito que o conceito de “comida limpa” tenha sido refutado pela lógica e publicamente criticado, o movimento não parece estar a perder fulgor. Basta passar os olhos pela secção de culinária de qualquer livraria para perceber como muitos autores nos continuam a prometer pureza interior e beleza exterior. E mesmo que nunca se tenha conscientemente tentado comer “limpo”, é impossível fugir completamente à tendência, porque tem consequências nos alimentos à nossa disposição e na maneira como eles são descritos.
No Reino Unido já se vendem mais abacates do que laranjas. Famílias que antes comiam waffles de batata agora experimentam fazê-los em versão light, com abóbora-menina, e a Nutribullets – marca de liquidificadoras que afirma que os seus sumos e smoothies dão brilho à pele – é hoje mencionada em alguns círculos tão naturalmente como uma colher de pau.
Mas por que é a “comida limpa” tão difícil de exterminar? Hadley Freeman identifica-a como parte da cultura da pós-verdade, cujos partidários são impermeáveis, ou até hostis, a factos e a especialistas. Mas para se perceber como a “comida limpa” se estabeleceu com tal tenacidade, é necessário primeiro compreender como a comida se tornou numa coisa aterradora para milhões de pessoas no mundo moderno. A questão interessante não é saber se a “comida limpa” é um disparate, mas as razões que levaram tantas pessoas inteligentes a acreditarem nela.
Olhar para a História
Não somos a primeira geração a olhar com repugnância para um universo alimentar pouco saudável, desejando poder substitui-lo por nutrientes completamente benéficos para a nossa saúde. Nos anos cinquenta do século XIX, o químico inglês Arthur Hill Hassall convenceu-se de que toda a comida que chegava a Londres estava repleta de toxinas e contrafacções. E tinha razão. Como investigador para a revista científica The Lancet, Hassall tinha chegado à conclusão de que muitos dos alimentos e bebidas à venda não eram bem o que pareciam: “café” feito de açúcar queimado e chicória; picles tingidos de verde por venenosos corantes à base de cobre.
Os anos que Hassall passou a expor as fraudes tóxicas à sua volta parecem tê-lo levado a um estado de paranóia. Começou a ver veneno em todo o lado, e decidiu que a única solução era criar um conjunto de produtos alimentares completamente não-contaminados. Em 1881 fundou a sua empresa, a The Pure Food Company, com a intenção de usar apenas ingredientes de incontestável qualidade. Hassall combinou água “suavizada e purificada” com a melhor carne de vaca do mercado de Smithfield para produzir gelatina de carne pura e “losangos de carne fibrinosa” – as barras energéticas da Inglaterra vitoriana. A Pure Food Company de 1881 assemelha-se a centenas de empresas alimentares dos dias de hoje – excepto pelo pormenor de as diminutas vendas a terem levado à falência em menos de um ano.
Vivemos outra vez num mundo em que a comida do dia-a-dia, em vez de ser confiável e sustentável, passou a parecer nociva. Mas ao contrário da população da era vitoriana, o nosso medo não passa pela veracidade do café, mas antes pela ideia de que todo o nosso padrão de alimentação pode estar a ser-nos prejudicial, e de maneiras que nem sequer conseguimos identificar na totalidade. Um dos factores que tornam a moda dos livros de receitas de “bem-estar” tão apelativa é a forma como asseguram ao leitor que oferecem uma nova maneira de comer, sem medos ou culpas.
O princípio fundamental em que assentam estes novos regimes de bem-estar é que o nosso tipo de alimentação nos está a envenenar lentamente. “Muita da comida que nos é hoje oferecida é nutricionalmente pobre”, escrevem as irmãs Hemsley, campeãs de vendas de comida “densa em nutrientes”. É difícil não concordar com a teoria de que os regimes alimentares modernos são geralmente “pobres”, mesmo que não se siga a solução “sem cereais” das Hemsley. “Todas estas dietas partem de uma premissa verdadeira, depois transformada numa fantasia maior – daí serem tão apelativas”, diz Giles Yeo.
A melhor maneira de olhar para a “comida limpa” – chame-se-lhe isso ou outro nome qualquer – será talvez como uma resposta disfuncional a uma oferta alimentar ainda mais disfuncional: um desejo de pureza num mundo tóxico. Entrar num supermercado ocidental moderno é ser atacado, corredor após corredor, por snacks salgados e oleosos, cereais cheios de açúcar, “pão” que não fermentou, bebidas baratas e açucaradas ou carne de animais tratados de forma desumana.
Nas palavras do professor de nutrição Barry Popkin, nas décadas do pós-guerra ocorreu uma “transição nutricional” na maior parte dos países do mundo, que adoptaram um regime alimentar ocidentalizado rico em açúcar, carne, gordura, sal, óleo e mistelas ultra-processadas, e pobre em vegetais. A comodidade e as empresas multinacionais saciaram a fome das gerações mais jovens com um banquete venenoso de bebidas açucaradas e comida de conveniência, que nos ensinam desde tenra idade a querer mais do mesmo. A evolução deste padrão de alimentação trouxe consigo um aumento dramático dos problemas de saúde, desde as alergias ao cancro.
Nos países mais ricos, um grande número de pessoas – quer tivessem intenção de perder peso ou não – ficaram compreensivelmente assustadas com a cadeia alimentar moderna e com as suas consequências para a nossa saúde: diabetes tipo 2, obesidade e doenças cardiovasculares, e ainda um leque de outros problemas relacionados com a alimentação, que vão do Alzheimer à gota. Se o regime alimentar mainstream está a tornar as pessoas doentes, não é surpreendente que muitos de nós procurem outras formas de alimentação que não nos sejam prejudiciais. A ansiedade colectiva relativamente à alimentação agravou-se com a percepção geral de que não podíamos confiar nos conselhos da ciência estabelecida, empolados pelos títulos da imprensa. Primeiro estes supostos especialistas dizem-nos para evitarmos a gordura, depois o açúcar, e entretanto as pessoas estão cada vez menos saudáveis. O que é que os “especialistas” vão dizer a seguir? E por que devemos acreditar neles?
Foi nesta atmosfera de ansiedade e confusão que surgiram uma série de gurus com promessas maravilhosamente simples e tranquilizadoras: coma isto e sentir-se-á novamente revigorado e saudável. É muito difícil apontar o momento exacto em que nasceu o conceito de comer “limpo”, porque mais que um regime alimentar específico, é um termo que condensa em si ideias de várias dietas já existentes: um bocadinho de “paleo” aqui, um bocadinho de “Atkins” ali, e uma pitada da macrobiótica dos anos 60 para dar sabor.
Modo de vida holístico
Em meados dos anos 2000, duas correntes de “comida limpa”, distintas mas relacionadas entre si, tornaram-se populares nos EUA – uma baseada na fé em comida “real”, outra na ideia de “detox”. Após o conceito de “limpeza” ter entrado no reino da alimentação, foi apenas uma questão de tempo até se ter espalhado contagiosamente pelo Instagram, onde adeptos do #eatclean começaram a partilhar incessantemente fotografias artísticas de sumos verdes e taças de salada arco-íris.
A primeira, e mais moderada, versão da “comida limpa” foi apresentada ao mundo em 2007, quando Tosca Reno, modelo canadiana de fitness, publicou um livro chamado The Eat-Clean Diet, onde afirmava ter perdido 34 quilos e transformado a sua saúde evitando todos os alimentos “ultra-refinados e processados”, particularmente a farinha e o açúcar. Uma refeição “limpa” típica das propostas de Reno podia ser frango frito com vegetais e arroz integral, ou biscoitos de amêndoa com chá. De muitas maneiras, The Eat-Clean Diet era igual a imensos livros de dietas anteriores, aconselhando a ingestão de vegetais e de refeições caseiras, em pequenas porções. A diferença, a que Anthony Werner chama o “golpe de génio” de Tosca Reno, foi que ela a apresentou, acima de tudo, como um modo de vida holístico.
Surgia entretanto uma segunda versão da “comida limpa”, encabeçada pelo cardiologista uruguaio Alejandro Junger, autor de Clean: The Revolutionary Program to Restore the Body’s Natural Ability to Heal Itself, publicado em 2009 depois de o plano detox de Junger ter sido elogiado pela actriz Gwyneth Paltrow no seu site Goop. O sistema de Junger é bastante mais restrito do que o de Reno, obrigando a uma dieta radical de algumas semanas assente em refeições líquidas, e que exclui totalmente cafeína, álcool, produtos lácteos e ovos, açúcar, os vegetais da “família do tomate” (tomate, beringela e afins) e carne vermelha (que, segundo Junger, cria um “ambiente interior” ácido), entre outros alimentos. Durante o tempo da dieta, Junger defende um regime quase completamente líquido composto ou por sumos e sopas caseiros, ou pelos seus próprios batidos especiais em pó. Findo o período de detox, Junger aconselha uma cautelosa reintrodução de “desencadeadores tóxicos”, como o trigo (“clássico causador de alergias”) e os lacticínios (“alimentos que provocam acidez”).
Ler o livro de Junger é sentir que tudo o que é comestível é potencialmente tóxico. No entanto, tal como no caso de Arthur Hassall, muitas das suspeitas de Junger são justificadas. Junger escreve do ponto de vista de um médico, com conhecimento em primeira mão sobre epidemias de doenças relacionadas com a alimentação, como “cancro, doenças cardiovasculares, diabetes e doenças auto-imunes”. O livro está cheio de exemplos de pessoas que, após completarem o detox de Junger, se sentem mais leves, mais esguias e mais felizes. “Quem são os destinatários deste programa?”, pergunta Junger, respondendo de seguida: “Qualquer pessoa que tenha uma vida moderna, faça uma alimentação moderna e viva no mundo moderno.”
Para minha surpresa, dei por mim atraída pelo tom messiânico do Clean de Junger – não o suficiente para pagar 475 dólares pelo seu programa de 21 dias (que, de qualquer forma, não está disponível fora dos EUA) ou para deixar de tomar o meu pequeno-almoço quotidiano de café inflamatório, tostas levedadas que atacam os intestinos e manteiga causadora de acidez, que surpreendentemente não me faz mal nenhum. Quando contei a Giles Yeo o quão sedutoras me pareciam as palavras de Junger, mesmo quase contra a minha vontade, ele respondeu: “É essa a magia deles! São todos pessoas carismáticas. Acho que os gurus da ‘comida limpa’ acreditam mesmo no que dizem. São parte de um rebanho.”
Livros de bem-estar, mercado em ascensão
Nos últimos cinquenta anos, os cuidados de saúde convencionais do Ocidente têm sido inexplicavelmente cegos para o papel da alimentação na prevenção e mitigação dos problemas de saúde. No seu início, o #eatclean apelava a um número crescente de pessoas que sentiam que a sua alimentação lhes estava a causar problemas, desde aumento de peso a enxaquecas ou stress, e que a medicina convencional não as conseguia ajudar. Na falta de conselhos de nutrição por parte dos médicos, uma resposta natural para estas pessoas foi começar a experimentar cortar este ou aquele alimento.
De 2009 a 2014, o número de americanos que passaram a evitar o glúten, mesmo não sofrendo de doença celíaca, mais que triplicou. Também se tornou moda beber um vasto leque de tipos de leite não-bovino, desde o leite de aveia ao de amêndoa. Sendo intolerante à lactose, eu própria compro hoje ingredientes que antes só estavam disponíveis em lojas especializadas em alimentação saudável. O que não é tão fácil de encontrar, num mar de meias-verdades e charlatanice, é informação segura sobre estas dietas especiais.
Uma pessoa que observou de perto a maneira rápida e radical como o #eatclean mudou o mercado dos livros sobre alimentação saudável foi Anne Dolamore, da editora independente Grub Street, de Londres. Dolamore está envolvida na publicação deste tipo de livros desde 1995, altura em que a “cozinha sem” era ainda uma minúscula subcultura. Nesses tempos pré-Google, Dolamore – que sempre acreditou que “comida é remédio” – sentiu que livros sobre tipos de regimes alimentares diferentes, se escritos por autores com “boas referências”, podiam ser úteis. Em 1995, a Grub Street publicou The Everyday Diabetic Cookbook, que desde então vendeu mais de 100 mil cópias no Reino Unido. Seguiram-se-lhe outros livros bem-sucedidos, incluindo The Everyday Wheat-Free and Gluten-Free Cookbook, de Michelle Berriedale-Johnson, publicado em 1998.
Em 2012, o mercado de livros de receitas de “bem-estar” no Reino Unido alterou-se subitamente, começando pelo surpreendente sucesso de Honestly Healthy, de Natasha Corrett e Vicky Edgson, que vendeu cerca de 80 mil exemplares. Louise Haines, da editora 4th Estate, recorda como o anterior grande boom da literatura culinária tinha sido a doçaria, moda que “desapareceu do dia para a noite, e para o seu lugar vieram os livros sem-açúcar.”
Na Grub Street, Anne Dolamore assistiu horrorizada à sucessão de bestsellers escritos por um “rol infindável de ‘autoridades na matéria’, loiras e magras, muitas das quais pareciam inventar dietas baseadas em pouco mais do que a sua limitada experiência pessoal”. Se Junger e Reno tinham lançado as bases para que a “comida limpa” se tornasse numa moda à escala global, as redes sociais e a Internet fizeram o resto do trabalho. Quase todos os autores de bestsellers britânicos de alimentação “limpa” começaram como bloggers ou Instagrammers, muitas das quais bonitas mulheres de vinte e poucos anos, genuinamente convencidas de que as dietas que tinham inventado as tinham curado de variadas doenças crónicas.
Mudar de alimentação, mudar de vida
Para cada grão de sal rosa dos Himalaias há um guru do bem-estar com a sua história de como mudar a alimentação pode mudar a vida. “A comida tem o poder de nos construir e de nos destruir”, escreveu Amelia Freer no seu bestseller de 2014 Comer.Nutrir.Brilhar (Jacarandá Editora) que vendeu mais de 200 mil exemplares. Como assistente pessoal do príncipe de Gales, Freer levava uma vida frenética, quando se apercebeu que a sua barriga “parecia que tinha uma bola de futebol lá dentro”, de tantos jantares apressados de tostas de queijo e “comida de fábrica”. Freer afirma que ter deixado de comer alimentos “processados” e de conveniência (“margarina, que nojo!”), além de glúten e açúcar, tinha sido a sua receita para “parecer mais nova e sentir-se mais saudável”.
A história mais célebre de transformações devido ao regime alimentar é talvez a de Ella Mills – que tem mais de um milhão de seguidores no Instagram. Em 2011, Mills foi diagnosticada com síndrome de taquicardia postural, uma doença caracterizada por provocar tonturas e fadiga extrema. Começou a bloggar sobre comida depois de descobrir que, após ter trocado uma alimentação carregada de açúcar por “alimentos naturais, com base em plantas”, os seus sintomas tinham melhorado radicalmente. Foi Mills – uma ex-modelo – que fez com que as dietas “sem-” começassem a parecer não enfadonhas e depressivas, mas profundamente ambiciosas. Quando o seu primeiro livro chegou às prateleiras em Janeiro de 2015, a sua vasta trupe de seguidores nas redes sociais ajudou-a a vender 32 mil exemplares só na primeira semana.
Há algo de paradoxal na maneira como este livros foram publicitados. Vendiam-se como uma alternativa a uma indústria alimentar sórdida: “Se tem um código de barras, não compre”, chegou a escrever Freer. Mas a “comida limpa” é ela própria uma indústria altamente lucrativa, que se promove à custa do que bloggers jovens e fotogénicas escrevem numa plataforma digital multimilionária. A agente literária Zoe Ross conta que, por volta de 2015, começou a notar que “o mercado andava a vasculhar o Instagram à procura de imitações – especificamente raparigas muito bonitas e muito novas, para venderem estilos de vida e de alimentação que oferecem uma “cura”.
Depois de anos longe dos olhares, a cozinha saudável estava finalmente a chegar às massas. Em 2016, 18 dos 20 livros mais vendidos na secção de comida e bebida da Amazon britânica tinham como tema alimentação e dietas saudáveis. A ironia, no entanto, é que o tipo de livros bem-fundamentados que Dolamore e outros tinham publicado antes já não vendeu tão bem, porque as publicações sobre alimentação saudável são agora dominadas por celebridades das redes sociais. As prateleiras das livrarias estão tão cheias de livros “de limpeza” que até os próprios autores começam a achar que já são demais. Alice Liveing, uma personal trainer de 23 anos que escreve como “Clean Eating Alice”, afirmou no seu livro de 2016 Eat Well Every Day que pretendia “trazer uma lufada de ar fresco a um mercado incrivelmente saturado”. Passei os meus olhos leigos pelo seu livro, e pareceu-me que a nova dieta de Alice assemelha-se bastante a incontáveis outras: bolinhas energéticas de tâmara e amêndoa, couve em palitos, hambúrgueres de beterraba e queijo feta.
Comer vegetais é cool
Por outro lado, será que não devemos dar o devido crédito à “comida limpa” pelo milagre de ter tornado a beterraba e a couve desejáveis? A informação recolhida pelos analistas da empresa que analisa hábitos de consumo Kantar Worldpanel mostra que, no Reino Unido, a venda de beterraba fresca cresceu de 42,8 milhões de libras em 2013 para 50,5 milhões de libras em 2015. Há quem defenda que, em países desenvolvidos onde a maior parte das pessoas tem um regime alimentar extremamente pobre, com poucas verduras e muitos açúcares, esta nova união entre saúde e alimentação tem um lado positivo.
Giles Yeo – que no seu programa na BBC cozinhou com Ella Mills uma receita de batata-doce picante – é da opinião que muitas das receitas de “comida limpa” são até “uma maneira saborosa e cool de comer vegetais”. O problema, diz Yeo, é que estes autores não se limitam a dizer “este é um óptimo livro de receitas vegetarianas”, e fazem afirmações mais vastas acerca da capacidade dos vegetais para tornar as pessoas mais bonitas ou prevenir doenças. “O veneno está no facto de eles embrulharem tudo em pseudociência”, acusa Yeo. “Uma base de falsidades leva as pessoas a tomarem medidas drásticas, e é aí que os problemas começam.”
Mas não é possível fundar uma nova “Igreja” com base no lema “este é um óptimo livro de receitas vegetarianas”. Para isso é preciso algo mais forte. É preciso a garantia da projecção mental, sussurrada de forma muito suave. Se cortar uma couve-flor em pequenos pedacinhos poderá fazer um incrível arroz sem carbs! Largue o açúcar e a sua pele resplandecerá! Entre outras coisas, a “comida limpa” veio confirmar o quão vulneráveis e perdidos milhões de nós se sentem relativamente ao regime alimentar – ou seja, relativamente ao nosso corpo. Estamos tão desorientados que depositamos as nossas esperanças numa qualquer entidade que nos prometa que também nós podemos ser puros e bons.
Uma “bolha de brilho"
Consigo recordar o momento exacto em que a minha opinião sobre a “comida limpa” passou de ambivalente para uma completa aversão. Estava a participar num debate no festival literário de Cheltenham com a dietista Renee McGregor (que trabalha tanto com atletas olímpicos como com pessoas que sofrem de distúrbios alimentares), quando uma multidão de 300 adeptos da “comida limpa” começou a insultar-nos aos gritos. No debate, que discutia o tema da “comida limpa”, participava também a “nutricionista” Madeleine Shaw, autora de Get the Glow e Ready Steady Glow.
Antes dessa semana, não conhecia o trabalho de Shaw. Ao folhear Ready Steady Glow, fiquei bastante bem-impressionada com o tom optimista (“deixe as privações e comece a viver”) e as alegres fotografias de uma Shaw radiante. “Estou sempre a fazer espirais de coisas diferentes”, escreve na introdução a uma salada de “noodles de batata-doce”. Pizza de couve-flor é, na sua opinião, “simplesmente a melhor invenção de sempre”.
Mas por trás de todo esse brilho havia notas de restrições que me pareceram confusas e preocupantes. “Como sempre, nenhuma das minhas receitas leva açúcar ou trigo”, anuncia Shaw, para logo a seguir propor uma receita de brownies sem glúten que contém 200 gramas de açúcar de coco, uma substância muito mais cara do que o açúcar branco granulado normal, mas que é metabolizada da mesma maneira pelo corpo. Fiquei ainda mais alarmada pelo quarto passo da “filosofia” alimentar de Shaw, dividida em nove pontos, onde se pode ler que o pão e a massa devem ser completamente evitados: são “alimentos beige”, e portanto “cheios de químicos, conservantes e trigo geneticamente modificado” e que não são “alimentos completos”. O livro de Shaw não faz qualquer distinção entre, por exemplo, um pão branco tipo lixívia e um pão caseiro de farinha integral.
Quando nos conhecemos naquele palanque em Cheltenham, perguntei a Shaw porque aconselhava as pessoas a cortarem completamente o pão, e fiquei chocada ao vê-la negar alguma vez ter dito isso (aliás, o pão de centeio era o seu favorito, acrescentou). McGregor questionou-a sobre o que queria dizer ao afirmar que as pessoas deviam tentar comer apenas “proteínas limpas”: carne que “não foi mergulhada em óleo de fritar” foi a sua desconcertante resposta. McGregor fez notar que a sua preocupação com a “comida limpa” era que, como profissional de saúde com experiência no tratamento de distúrbios alimentares, tinha visto em primeira mão como as regras e as restrições da “comida limpa” muitas vezes resultavam em debilitantes casos de anorexia e ortorexia.
“Mas eu só vejo o lado positivo”, desculpou-se Shaw, agora em lágrimas. Foi nesse momento que o público, já antes agitado sempre que eu ou McGregor falávamos, passou a um estado de hostilidade absoluta, assobiando-nos e gritando para que saíssemos do palco. Após o debate dirigimo-nos a uma livraria onde, enquanto fãs agradeciam a Shaw por lhes ter dado “o brilho”, também eu não contive as lágrimas quando uma pessoa me apontou o dedo e disse que eu, como “mulher mais velha” (tenho 43 anos), devia ter vergonha por criticar uma jovem. Nessa mesma noite, alguns seguidores de Shaw no Twitter fizeram, sob a hashtag #youarewhatyoueat, comentários depreciativos sobre o meu aspecto e o de McGregor. A lógica era que se nós éramos menos fotogénicas do que Shaw, então obviamente não tínhamos nada de válido a dizer sobre alimentação (passando por cima do facto de McGregor ser licenciada em Bioquímica e em Nutrição).
Factos. Factos. Factos
No comboio para casa vim a pensar no que tinha acontecido. Percebi que as pessoas estavam irritadas connosco não por discordarem do que estávamos a dizer (é difícil não concordar que receitas “sem açúcar” não deviam ter açúcar), mas porque não gostaram sequer de nos ver a contestar o assunto. Insistirmos em factos fez-nos parecer cruelmente negativas. As pessoas tinham vindo para absorver de Shaw uma “bolha de brilho”, e nós estávamos a rebentá-la. É impressionante como em muitos livros de receitas de “bem-estar” a ciência estabelecida em torno da alimentação é vista mais ou menos como irrelevante, em parte porque os gurus vêem a complacência da ciência como um dos factores que tornaram os nossos regimes alimentares tão maus.
Em Comer.Nutrir.Brilhar, Amelia Freer admite que “não é possível provar que os lacticínios são a causa” de problemas que vão desde irritações intestinais a dores nas articulações, mas conclui que “seguramente vale a pena”, por precaução, cortar a ingestão diária de lacticínios. Num outro trecho, Freer escreve que “dizem que são precisos 17 anos para que o conhecimento científico seja filtrado” e se torne conhecimento geral, ao mesmo tempo que aconselha que o glúten seja evitado. Quando entramos num território em que todas as autoridades e especialistas são automaticamente suspeitas, é possível afirmar-se quase tudo – e é isso que fazem muitos dos gurus do #eatclean.
Nessa noite em Cheltenham percebi que a “comida limpa” – ou o que quer que lhe chamem agora – tem elementos de um culto de pós-verdade. E como qualquer culto, pode tornar-se sombrio e fracturante quando seguido cegamente. Giles Yeo contou-me ter ficado chocado com a quantidade de críticas que tinha recebido online após a emissão do seu programa na BBC. “Dizem que fui patrocinado pela indústria farmacêutica, e que portanto obviamente não salientei os benefícios das dietas saudáveis relativamente à medicina. São completas mentiras.” (Yeo é funcionário da Universidade de Cambridge, e a sua pesquisa custeada pelo Medical Research Council, entidade estatal britânica).
Torna-se cada vez mais claro que a “comida limpa”, por muito boas intenções que tenha, pode causar danos reais, tanto à verdade como às pessoas. McGregor diz que, nos últimos 18 meses, “todas as pessoas com um distúrbio alimentar que entraram na minha clínica ou seguiam ou queriam começar a seguir um regime alimentar ‘limpo’”.
No seu novo livro, Ortorexia, McGregor observa que embora os distúrbios alimentares tenham surgido muito antes da moda do #eatclean, as “regras alimentares” (como não ingerir lacticínios ou evitar todos os cereais) se tornam facilmente “um meio de restringir a ingestão de alimentos”. Além disso, nem sequer são regras saudáveis, porque assentam em “afirmações sem fundamento e sem base científica”. Veja-se o caso do leite de amêndoa, amplamente publicitado como uma alternativa superior ao leite de vaca. McGregor considera-o pouco melhor do que “água cara”, dado que contém apenas 0,1 g de proteína por 100 ml, muito abaixo dos 3,2 g por 100 ml do leite de vaca. Mas a especialista tem muitas vezes grandes dificuldades em convencer os seus pacientes de que as restrições destas dietas “limpas” lhes são, no longo prazo, mais prejudiciais para a saúde do que o que ela chama de “alimentação sem restrições” – refeições equilibradas e variadas, mas sem pânicos causados pelo ocasional gelado ou chocolate.
Gordura é gordura
É certo que nem toda a gente que compra um livro de “comida limpa” sofre de um distúrbio alimentar. Mas um movimento que partiu da premissa de que a comida normal não é saudável acabou por inquinar o mundo da “alimentação saudável”, por defender dietas baseadas em verdades absolutas.
O verdadeiro flagelo da “comida limpa” não é ser completamente falsa, é ter “um fundo de verdade”, como lhe chama Giles Yeo. “Se retirarmos toda a conversa fiada, é claro que eles têm razão em afirmar que devíamos comer mais vegetais, menos açúcar refinado e menos carne”, diz Yeo enquanto toma café no seu escritório no Instituto de Ciências Metabólicas de Cambridge, onde se dedica à investigação das causas da obesidade. Yeo concorda que o nosso paradigma de comida gordurosa, açucarada, barata e em excesso é causador de obesidade generalizada e problemas de saúde. O problema é que é praticamente impossível escolher as partes sensatas da “comida limpa” e ignorar tudo o resto. O #eatclean fez com que a alimentação saudável parecesse algo “caro, exclusivo e difícil de alcançar”, escreveu Anthony Warner. Use ou não o termo “limpo”, há um novo puritanismo relativamente à comida que ganhou raízes profundas.
Há algumas semanas, ouvi no ginásio um homem de meia-idade, em boa forma física, a repreender um amigo por este não se alimentar melhor – uma conversa masculina inimaginável noutros tempos. Dizia que os “hambúrgueres magros” não passavam de “péssima carne picada e marketing”, afirmando conseguir quase todos os nutrientes necessários com uma dieta só de vegetais cozinhados a seco. “Diga-se o que se disser, gordura é gordura”, concluiu, antes de lamentar como os “idiotas” que tentam comer algo saudável como uma salada a estragam juntando-lhe sal. “Se falhares a dieta uma vez por semana, é como se não fizesses nada.”
A verdadeira questão é como lutar contra este tipo de absolutismo alimentar sem voltar a uma glorificação negligente dos regimes alimentares modernos, que efectivamente estão a tornar muitas pessoas doentes. Em 2016, havia no Reino Unido mais de 600 crianças com diabetes tipo 2; antes de 2002, não havia registo de casos de crianças com a doença, que tem causas relacionadas com a alimentação. [Em Portugal, segundo o relatório da Organização Mundial de Saúde Adolescent obesity and related behaviours: trends and inequalities in the WHO European Region, 2002-2014, aponta para que a prevalência da obesidade, nos adolescentes aos 11, aos 13 e aos 15 anos, seja de 5%. Este número representa uma subida de 0,3 pontos percentuais desde 2002. A contribuir para este resultado estão sobretudo os rapazes, com 6,9%. Já as raparigas registam um valor de 3%]
Sem fundamentalismo
É desesperadamente necessária uma reforma do nosso sistema alimentar. E existe o perigo de, na ânsia de rebater os disparates da “comida limpa”, acabemos por parecer apologistas de uma cadeia alimentar comercial, que está a falhar na tarefa básica de nos nutrir. Edward L. Yuen, que sofreu de ortorexia, argumenta no seu livro Beating Ortorexia, publicado em 2014, que o velho lema de “tudo em moderação” já não funciona num universo alimentar em que uma alimentação “média” pode ser causadora de doenças crónicas. Quando as porções são gigantescas e os chocolates vendidos ao metro (algo que vi com os meus próprios olhos no meu supermercado local), ter uma alimentação “normal” não é uma opção equilibrada. A resposta não está numa qualquer dieta perfeita, mas na mudança da nossa mentalidade sobre o que é uma alimentação normal.
A venda de courgetes no Reino Unido subiu 20% entre 2014 e 2015, a reboque dos espiralizadores. Mas o consumo global de vegetais, tanto no Reino Unido como no resto do mundo, continua a ser extremamente baixo (74% da população britânica adulta não chega a consumir cinco por dia. Em Portugal, segundo o último relatório da OMS, só 28% dos adolescentes portugueses consomem vegetais diariamente), e muito menor do que na década de 50, quando refeições frescas diárias ainda eram algo que a maior parte das pessoas tomava por garantido.
Entre as classes favorecidas que já praticavam regimes alimentares mais saudáveis do que a maioria, as deusas do Instagram criaram um novo modelo de perfeição alimentar ao qual apontar. Para o resto da população, contudo, apenas fizeram o ideal de alimentação saudável parecer ainda mais inalcançável. Por trás das capas brilhantes dos livros de “comida limpa” está uma dura forma de exclusão económica, que professa que alguém que não tem possibilidades para comprar erva de trigo ou espirulina nunca poderá ficar “bem”.
Como a conversa que ouvi no ginásio ilustra, esta maneira de pensar é especialmente perigosa porque ignora que, na verdade, pequenas alterações nos regimes alimentares podem ter efeitos altamente benéficos. Se pensarmos que nunca seremos saudáveis a não ser que só nos alimentemos de vegetais, podemos passar ao lado do facto de que, como demonstra um estudo recente de provas recolhidas por epidemiologistas, basta aumentar a ingestão diária de frutas e vegetais de zero para apenas dois para se verificarem substanciais benefícios na saúde.
Entre as suas muitas outras ofensas, a “comida limpa” assumiu-se como “ou tudo ou nada” – o que só serve para acentuar que, como é habitual, a maior parte das pessoas fica de mãos a abanar.
Exclusivo PÚBLICO/The Guardian. Tradução de António Domingos
Este artigo encontra publicado no P2, caderno de Domingo do PÚBLICO