Prostituição e lenocínio: “política da avestruz” à portuguesa
O problema não deixa de existir se o ignoramos e regulamentar seria uma prova de maturidade da democracia lusa.
A “mais velha profissão do mundo” é, em Portugal, um “OVNI jurídico”. Com o advento da democracia, aboliu-se — e bem — a prostituição como crime, não se lhe associando qualquer juízo de ilicitude de outro ramo de Direito. Donde, um homem ou uma mulher podem prestar um serviço de venda de relações sexuais? Sim. E podem ser punidos por isso? Não. E tal é considerado uma profissão? Não. Está sujeita ao pagamento de impostos? Não. Existe algum sistema de protecção social? Em princípio não.
Caso para lembrar a famosa rábula dos “Gato Fedorento” a propósito da opinião do actual Presidente da República sobre o último referendo em matéria de aborto. Entendamo-nos: no Estado Novo a prostituição estava regulamentada, sendo admitida em locais apropriados e licenciados (“casas de passe”), com controlo sanitário, sendo punida como crime se praticada fora desses espaços. Com o 25 de Abril, os poderes públicos seguiram a política da avestruz. Descriminalizaram a conduta de quem recorre a tais serviços e de quem os presta e nada de regulamentar a profissão. Goste-se ou não, a Constituição consagra um direito fundamental à disposição sobre o próprio corpo e só concepções morais ou religiosas podem justificar o actual regime. É mais que tempo de cortar estas amarras com concepções que se não compatibilizam com a Lei Fundamental.
Não se trata de um qualquer incentivo à prostituição, mas reconhecer uma realidade e agir, sob pena de continuarmos como até aqui com “o elefante no meio da sala”. Reconheça-se legalmente a profissão e, por via disto, o enquadramento fiscal específico é possível, bem como um adequado nível de segurança social. É evidente que não se desconhece que a actual legislação tributária prevê a actividade de “outros prestadores de serviços” e que na legislação contributiva se encontra forma de estas pessoas descontarem para o sistema geral de protecção social. Mas sem o reconhecimento legislativo da profissão, é evidente que muito poucas (ou nenhumas) o fazem.
Mais: o licenciamento de “estabelecimentos de diversão nocturna” é um anacrónico eufemismo para as antigas “casas de passe”, em frontal violação do crime de lenocínio de adultos, punido pelo art. 169.º, n.º 1, do Código Penal (CP). Diz o preceito que “quem, profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição é punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos”. Tem vindo a ser discutido nos nossos tribunais superiores e no Tribunal Constitucional até que ponto esta norma (e apenas ela, pois os restantes números do artigo são essenciais) é conforme à CRP. Embora ainda maioritária a posição de que se consegue divisar um específico bem jurídico-penal atinente à liberdade sexual dos profissionais do sexo, vai havendo vozes discordantes às quais nos juntamos.
Repare-se que se punem os “proxenetas” ou quem favoreça o exercício da prostituição de qualquer forma. Preenchem o delito os senhorios que sabem que nas suas casas arrendadas se exerce aquela profissão e “fecham os olhos”, assim como os próprios órgãos de polícia criminal que tenham eventual conhecimento do que são certos “bares”. Se a prestação de serviços sexuais remunerada não é um ilícito criminal ou de outro tipo, sendo uma actividade neutra para o Direito, como justificar que quem ganhe com isso cometa um delito? Para nós, só por via de uma concepção moralista, que não cumpre ao Direito Penal proteger. Repare-se que não estamos aqui a defender as hipóteses em que os profissionais do sexo são explorados por esses indivíduos, pois estes casos têm cobertura legal nos restantes números do art. 169.º do CP. Mas se uma prostituta, p. ex., entende que beneficia com os serviços de um “proxeneta”, não se ligando à sua actividade um conteúdo de ilicitude, por que deve ser punido esse agente? Acresce que, de um prisma técnico, como justificar tal sancionamento de alguém que acaba por ser um “facilitador” quando o “autor imediato” não é punido? Julgamos existir aqui um certo enviesamento do princípio da acessoriedade da participação.
Entendemos que nas hipóteses muito precisas que aqui mencionamos — e apenas nessas — se está em face de um “crime sem vítima”, pois não se encontra dano para o/a prostituto/a ou para o/a possível cliente. E note-se que só uma visão exacerbadamente comprometida com uma certa mundivisão pode aqui encontrar como bem jurídico protegido um de natureza supra-individual, não admitido sequer pela inserção sistemática do tipo legal de crime. Seria um retrocesso, aliás, à visão de que os chamados “delitos sexuais” eram crimes contra a sociedade, o que acontecia na versão originária de 1982 do CP, e que em boa hora foi banida na revisão de 1995.
O debate tem de voltar a realizar-se sobre estas e outras questões ligadas aos trabalhadores sexuais. O problema não deixa de existir se o ignoramos e regulamentar seria uma prova de maturidade da democracia lusa. E a solução também não passa por punir o cliente, nova visão estatizante de uma certa moralidade. Como em tantos outros domínios, quem fizer como a avestruz arrisca-se a não ver o mundo passar-lhe à frente dos olhos.