Viagem com Bertrand Tavernier pelos filmes da grande esperança

Chamaram-se Jacques Becker, Jean Renoir, Julien Duvivier, Marcel Carné ou Claude Sautet, filmaram a solidariedade, as utopias e fracassos de um colectivo. Uma Viagem pelo Cinema Francês com Bertrand Tavernier é lançado dia 3 em sala, em DVD e plataformas VOD. Imagine então que está no cinema

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No princípio foi a Guerra — e a Libertação. Em Setembro de 1944, Bertrand Tavernier, 4 anos, subiu a um telhado de Lyon para observar a entrada dos aliados na sua cidade. Há outras histórias assim, em que a guerra foi o primeiro “cinema” de futuros cineastas, deu o tom ao cinema de futuros cineastas. Paul Verhoeven, por exemplo: a amoralidade dos seus filmes foi forjada no caos da II Guerra. Outro caso: John Boorman, que tinha oito anos na Londres dos bombardeamentos, teve fogo-de-artifício, possibilidade de maravilhoso. Bertrand Tavernier: “Sei que a guerra me influenciou, me deu uma visão diferente, mas não sei se posso dizer, como John Boorman, que reencontro a guerra no espectáculo dos filmes. Sei que a guerra me tornou sensível a certos sentimentos e a certas emoções: a lealdade, a defesa da moral, o patriotismo e também a solidariedade. Todas as histórias do meu pai eram mais histórias sobre a resistência do que sobre a guerra, sobre a resistência intelectual. Isso contribuiu para me formar, mesmo de maneira inconsciente.”

Esta resposta ilumina as escolhas de Uma Viagem pelo Cinema Francês com Bertrand Tavernier. Responde — síntese essencial — às mais frequentes questões colocadas nas conversas que se seguiram à apresentação, na Europa e na América, deste documentário de mais de três horas de duração. Porquê uma afirmação tão determinada do cinema francês dos anos 30 numa viagem que chega aos anos 70 e pára?

Os primeiros vinte minutos são ocupados com Jacques Becker, não há ninguém aqui com a mesma importância — para Tavernier, é o “cineasta ideal”. Onde está Max Ophuls? Resgata-se Marcel Carné, defendendo-o dos ataques que o minimizaram (porque não era bom director de actores, porque fora ajudado pelos diálogos de Jacques Prévert, porque...) e resgata-se o trabalho de outros, argumentistas por exemplo, vilipendiados pelos jovens turcos que constituiriam a nouvelle vague.  A propósito: onde fica a nouvelle vague nesta história?

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No conjunto de cineastas que Bertrand Tavernier homenageia, está um actor que é também um autor, tendo corporizado utopias e frustrações do século XX, Jean Gabin Franco Origlia/Getty Images

Cinéfilos europeus  e americanos sentiram um novo olhar a mudar hierarquias. Houve quem confessasse a Tavernier: afinal, a nouvelle vague não foi o príncípio de tudo! Blague à parte, Quentin Tarantino admitiu que, ele que viu tudo, nunca tinha visto um filme de Claude Sautet.

Sautet, o realizador de Max et les Ferrailleurs (1971), de Vincent, François, Paul... et les autres (1974) e de um film noir de início de carreira, Classe tous Risques (1960), que para Jean-Pierre Melville foi mais decisivo do que À Bout de Souffle de Godard, é outro dos resgatados.  Ele que foi arrumado, apesar de recentes reavaliações, como cineasta burguês a filmar para a burguesia.

Sautet e Melville são dois “padrinhos” de Tavernier. Foram encontros decisivos do jovem crítico e importantes para a entrada no mundo do cinema. Foram seus “padrinhos” — por coincidência, homens de lendários berros.

Temos Becker, temos Carné, temos Renoir, Melville e Sautet, temos Jean Gabin, actor de quem Tavernier fala como “autor” (maneira de responder à pergunta que já lhe fizeram: porque é que escolheu um actor e não uma actriz como corpo do cinema francês, porquê Gabin e não Danièlle Darrieux?).

O filme permite-se entrar pelos mundos desses retratados, alguns deles figuras excessivas, por vezes sombrias (Melville; mas também Renoir e a sua necessidade de agradar, o seu fascínio pela força e uma tibieza moral, da qual Tavernier, citanto Gabin — “como realizador, um génio; como homem, uma puta”  —, não foge).

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Isso cria uma experiência de tempo interior, lírica, diversa da de Uma Viagem com Martin Scorsese pelo Cinema Americano (1995), que indexava o percurso a uma série de temas, sem guinadas, mergulhos, ou desarranjos, um formato horizontal sem rupturas (de novo Tarantino: disse que o filme de Tavernier era melhor porque o francês conseguia dedicar mais do que três minutos a cada filme).

Mas o que distingue Uma Viagem pelo Cinema Francês com Bertrand Tavernier é, e começando com um desafio que de outro tempo (“Imagine que está no cinema”), repor, não uma série de filmes antigos, mas um contrato e uma expectativa essenciais. De Becker a Sautet, passando por Duvivier, Carné e Renoir, passando por esses filmes sobre a solidariedade, sobre as utopias e fracassos do grupo, a sala de cinema era o espaço onde se espelhavam as expectativas do colectivo.

A viagem não acaba aqui. Em Outubro Tavernier apresenta mais oito horas, outros tantos episódios, na TV francesa. Os anos 30 e 70 continuam a ser balizas. Mas a viagem será mais “temática”, menos subjectiva. Para já, e a partir de quinta-feira, 3, em sala, em DVD e plataformas VO, imagine então que está no cinema.

Começa o documentário com Jacques Becker (1906-1960), termina com Claude Sautet (1924-2000). Parece-me não ser coincidência, mas, se o é, a coincidência ilumina: nas obras de ambos há uma afirmação da ideia de colectivo — por exemplo, nos planos dentro dos carros, que se repetem nos filmes de Sautet, fortificava-se a solidariedade entre as personagens. O seu filme fala de uma época em que o colectivo era uma responsabilidade do espectáculo cinematográfico.
Há um laço forte, sim, penso que Sautet é o herdeiro de Becker. Mais do que qualquer cineasta da nouvelle vague, visto que cada um deles partiu em direcções diferentes, alguns em tom autobiográfico, foi Sautet que continuou Becker. E, aliás, como Becker, também foi preciso tempo para lhe darem o valor justo. A partir do momento em que comecei com Becker, sim, pensei logo acabar com Sautet. Os dois foram, a determinado momento, próximos do Partido Comunista, do qual depois se distanciaram, por causa do estalinismo mas há de facto uma formação no colectivo.

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Antoine et Antoinette, de 1947, e Les rendez-vous de Juillet, de 1949 (Jacques Becker): a aventura do quotidiano, a esperança na Paris do pós-guerra
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Em Becker havia mais utopia, porque se tinha acabado de sair da guerra, havia uma esperança, a de Antoine et Antoinette (1947), de Les rendez-vous de Juillet (1949) — Falbalas (1945) é feito durante a guerra, é um filme mais sombrio.

Sautet é um cineasta mais melancólico. Por vezes, nas sequências de que fala, essas pessoas vão nos carros em direcção a empresas que fecham, a coisas que desaparecem, há um sentimento de melancolia. Mas hoje, o filme de [Stéphane] Brizé [A Lei do Mercado, 2015], o cinema de Jacques Audiard, os meus filmes, são filmes sobre o colectivo. Mesmo Sully (2016), o formidável filme de Clint Eastwood, mostra a importância do grupo contra a tecnologia moderna, e que clama pelo grupo, pelos sentimentos do grupo — é um filme sobre a decência normal, como a maior parte dos filmes de Becker.

Pergunto-me se esse sentimento sobre o colectivo é vivido como presente, ou antes como algo que desapareceu. Em Becker, em Jean Renoir, em Julien Duvivier — por exemplo, La belle équipe (1936) — esse sentimento emanava do presente e concretizava-se na sala de cinema.
É verdade que esses sentimentos são distorcidos pelo dogmatismo do liberalismo a toda à custa, mas a força dos movimentos sociais, as surpresas eleitorais obrigam-nos para já a esbater o sentimento de perda. Houve uma série de movimentos de protesto em França que foram colectivos, alguns aproveitados para servirem o estatuto de uma pessoa, Jean-Luc Mélenchon [fundador do movimento A França Insubmissa e candidato à presidência], mas mesmo assim existiu. E recentementre Bernie Sanders [opositor de Hillary Clinton nas primárias dos democratas norte-americanos] ou Jeremy Corbyn [líder do Partido Trabalhista britânico], para surpresa geral, reagruparam pessoas à volta de temas colectivos. Isso não morreu. Só morre quando as pessoas desistirem de ser livres.

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La belle equipe (1936), de Julien Duvivier: o proletariado, a solidariedade, a França da Frente Popular
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Le trou (1960), de Jacques Becker: o “espírito de grupo” numa célula prisional

Sinto que a sua relação com a nouvelle vague, no documentário, é menos eufórica do que a relação com Becker, Duvivier, Renoir e com figuras que a nouvelle vague arrasou. Porque é que termina o documentário nos anos 70?
Foi nos anos 70 que comecei a montar a minha primeira longa-metragem [L’Horloger de St. Paul, 1974],  haveria um conflito de interesses se me pusesse a falar da obra de outros cineastas numa época em que eu já estava a fazer filmes. Parece-me um gesto de honestidade. Em 1970, havia gente, Renoir, Edmont T. Greville, Becker, com carreira feita. Já há há coisas que não posso dizer sobre Truffaut, Godard, Chabrol — de quem fui attaché de presse durante cinco filmes. Mas abro o documentário com uma citação de Godard [“Há uma coisa que nos une, a Bertrand e a mim, somos os dois crianças da Libertação e da Cinemateca”], de uma homenagem no Instituto Lumière [Lyon]. Poderia ter ido mais longe, mas o facto de ter sido eu [como attaché de presse] a convidar [Louis] Aragon para o visionamento de Pierrot le Fou [1965] prova que não sou frio em relação à Nouvelle Vague. A última palavra sobre Pierrot le Fou diz que é um filme sublime. Mas é verdade que pouco depois do período Beauregard [Georges de Beauregard, produtor] Godard tornou-se maoísta, e com isso não me relaciono, detesto mesmo o facto de se ter tornado apoiante de um dos maiores assassinos da História.

Se reparar, não me aproximo desta geração a falar de nouvelle vague, porque essa é a melhor maneira de ignorar as virtudes dos filmes. O termo é vago, e não há relação entre Rohmer e Godard ou entre Godard e Chabrol na forma de compor planos, de trabalhar com os actores. Eles são colocados numa caixa, e essa caixa é santificada. O mais interessante é ver como os filmes eram magníficos. Da mesma maneira não aceito a caixa do “realismo poético”, onde Carné, Renoir, Duvivier eram metidos.

Este cinema nasceu de uma relação entre espectadores — o colectivo — e a sala. O que ainda é uma memória, mesmo se danificada. Há melancolia aqui? Qual foi a razão última deste documentário?
Há pessoas que querem continuar essa relação, há um público que continua, há gente que mostra uma curiosidade formidável quando se editam filmes em DVD. Havia, evidentemente, a vontade de agradecer a pessoas que me salvaram a vida. Mas também queria mostrar que estes filmes antigos não são velhos filmes. São filmes que falaram de momentos de esperança, que falaram de maneira directa, forte, que eram contemporâneos de uma série de acontecimentos e que por isso são testemunhos valiosíssimos para compreender uma época. Há poucos filmes que mostram o que era a vida durante a Libertação como Antoine et Antoinette [Jacques Becker] — vale mais do que muitos livros de História. Nem todos encontraram o seu público na época. Encontram-no agora. Nem todos foram um sucesso. Casque d’or [Jacques Becker, 1952] foi um fracasso terrível, tem mais sucesso hoje do que à época. Em todos os casos, não tenho nostalgia. E na época também se dizia que era pior do que os anos 20, que era pior do que no mudo.

Tento bater-me contra a ignorância que existe e aí você tem razão, porque há ignorância enorme nos canais públicos de televisão, nas pessoas, algumas delas jornalistas, que deveriam ajudar a mostrar e explicar este património e que dizem que não se pode mostrar filmes a preto branco às 21h30, porque se vai perder espectadores — são estas as pessoas nomeadas para a chefia dos canais públicos, pessoas que não ousam confrontar o público. Contudo, recentemente, na Arte, alguns filmes a preto e branco, por exemplo, de Marcel Pagnol, tiveram resultados formidáveis. Na época os produtores também tinham medo de alguns filmes. E se alguns foram feitos foi porque, por exemplo, Jean Gabin entrava neles. Não estão no meu documentário as centenas de filmes imbecis, comédias lamentáveis, dramas miseráveis e policiais nulos que enchiam os ecrãs. Só mostro o que me tocava. Podia fazer um documentário inteiro sobre as parvoíces que tinham maior sucesso do que Le jour se lève [Marcel Carné, 1939]...

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Em cima Vincent, François, Paul... et les autres (1974), de Claude Sautet; em baixo L’horloger de St Paul (1974), de Bertrand Tavernier. Um certo ar de família....
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L’horloger de St Paul [1974] foi a sua estreia: é um filme com vedetas [Philippe Noiret, Jean Rochefort...]
... Noiret era vedeta de comédias mas não de drama... andei ano e meio à procura de financiamento, não havia ninguém a querer meter dinheiro. Noiret recebeu metade do salário habitual. Tornou-se vedeta depois...  

... isto para dizer que era um filme mainstream e que hoje poucos filmes dão contam do mundo — era a França dos anos 70 — sem ser a falar “sobre”...
Sim, tem razão.

Há o mercado de cinema adolescente e depois filmes “de tema”, a excepção, que até são sobrevalorizados — corre-se atrás deles, porque, finalmente, “eis um filme ‘adulto’”. L’horloger de St Paul filia-se na tradição que o documentário homenageia. Como os filmes de Sautet, que era acusado de ser cineasta burguês e da burguesia, e, no entanto, fez retratos de uma França pouco triunfante. A arte de falar das coisas sem pesar no programa temático deixou de ser natural do cinema.
Talvez. Na época também havia filmes que pegavam num “tema” de forma pesada — por exemplo, o cinema de André Cayatte a falar da justiça. Havia uma tradição assim no cinema francês.

Sim, é verdade que o cinema de Becker me influenciou, nessa forma de fazer passar o conteúdo atrás das coisas, mas também o film noir americano, onde o conteúdo é implícito. Não foi por acaso que chamei Jean Aurenche e Pierre Bost para argumentistas: nos filmes que escreveram havia assuntos muito sérios, La traversée de Paris [Claude Autant-Lara, 1956], En cas de malheur [Claude Autant-Lara, 1958], Jeux interdits [René Clement, 1953], mas o tema sério está no meio das emoções.

Esses argumentistas foram maltratados pelos críticos que constituiriam a nouvelle vague...
Sim, e que se enganaram redondamente...

Chamou-os para a sua primeira longa para dizer de que lado estava?
Em vez de dar ouvidos a rumores, fui rever os filmes que eles escreveram. Espantaram-me. Pela invenção dos diálogos, pela modernidade do tom, pela força da narrativa. As coisas datadas, os defeitos, eram da responsabilidade dos realizadores. Não era culpa do texto. Eram, por exemplo, grandes planos que tornavam pesados detalhes que deveriam ter sido tratados de forma ligeira. O argumento, os diálogos, pareciam-me formidáveis. Fui chamá-los pelo talento. E sabia que eles, estando a ser vilipendiados, estavam sem trabalho. E que, se se aproximasse deles um realizador jovem, eles iriam entregar-se de corpo e alma. Tê-los-ia comigo o tempo todo, o que não acontecia normalmente, se fosse necessário fazer alterações.

Recentemente a História deu-me razão, foram repostos filmes que eles escreveram, e toda a gente os aclamou. Quis trabalhar com eles, porque sabia que me iam dar isso, o conteúdo político sobre o mundo, sem o escancarar. Mas hoje há filmes que o fazem: Jacques Audiard em O Profeta (2009); A L’origine (2008), de Xavier Giannoli, filme magistral sobre a França contemporânea, ou Welcome (2009), de Philippe Lioret. São filmes em que me reencontro.

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