Está quase: já só falta um ano para o próximo Milhões de Festa
A despedida trouxe mais um concerto para recordar, o dos Meatbodies, e uns deliciosos farsantes chamados Chupáme El Dedo. A décima edição foi fiel ao espírito de um festival pequeno em dimensão mas de espírito imenso.
Um baterista com traje dourado de feiticeiro do Dungeons & Dragons e um teclista com indumentária semelhante (muda apenas a cor do traje, que é nele vermelho vivo). Tocam cumbia (mais ou menos), tocam acelerações metaleiras (ou algo semelhante). Tocam como se Crazy World of Arthur Brown, o do Fire que Brown cantava com capacete em chamas na cabeça, tivesse sido criado em Bogotá. Tocam com uma felicidade que se sente e um sentido de humor que não diminui a música — pelo contrário. São os Chupáme El Dedo, criação do colombiano Eblis Alvarez, fundador dos latino-psicadélicos Meridian Brothers, e são perfeitos para este Milhões de Festa que se despediu domingo.
Dançamos e saltamos com as viagens do sintetizador e o ritmo em ginga acelerada e ouvimo-los no fim: “CERVEZA!”, grita o baterista, Pedro Ojeda, voz transformada em guincho élfico. Também Eblis Alvarez fala com o público que gargalha, mas ele com voz de senhor dos domínios do death-metal, muito grave e distorcida, incrivelmente cómica.
Já passava da meia-noite e a 10.ª edição do festival barcelense encaminhava-se para o fim. Foi uma festa, como habitualmente, em escala que promove a proximidade entre barcelenses e entre quem vem de fora, seja público, sejam músicos, e com um cartaz que espelha o cuidado na criação de uma programação ecléctica, abrangente, que desafie e surpreenda. Os Chúpame El Dedo, colombianos, foram farsa muito divertida, um bem-vindo delírio no Palco Lovers. Antes, no Palco Milhões, os Pixvae mostraram-se um curioso encontro musical recebido calorosamente pelo público. São banda franco-colombiana que cruza a pureza tradicional das duas vozes femininas (magníficas) com a electricidade rock da guitarra e da bateria e o sopro forte de um saxofone barítono. São dança de pés firmes nas suas raízes latinas, mas aberta ao mundo. Mais uma descoberta que levamos do Milhões de Festa.
Depois da enchente do dia anterior, sábado, próximo da lotação esgotada, responsabilidade dos suecos Graveyard, o festival despediu-se em ambiente quase familiar à medida que a noite avançava, quando parte do público já viajava de regresso a casa. Muitos estavam lá, porém, quando os Meatbodies surgiram em palco como furacão sónico irresistível. A banda de Chad Ubovich, parceiro de crime rock’n’roll nos Fuzz de Ty Segall e ao lado de Mikal Cronin, é mais uma prova de que algo se passa na Califórnia, entre Los Angeles e São Francisco. Algo se passa naquela comunidade de músicos que se deitam com noise nos ouvidos para descontrair e que abraçam o garage e o punk, que idolatram o psicadelismo e que fazem de cada canção um hino ao riff bem medido (viva o headbanging!) e às qualidades libertadoras do rock’n’roll, ainda clássico, mas constantemente rejuvenescido quando tocado pelas mãos certas – como são as dos Meatbodies, autores do concerto mais memorável da despedida do Milhões de Festa 2017.
Sem cedências, sem telemóveis
Ao longo de quatro dias, Barcelos acolheu a visita habitual de público atraído pela diversidade musical em cartaz e pela vivência muito particular deste festival que transforma e se transforma com a cidade. Nasceu da forma mais seriamente romântica: os fundadores queriam ver em palco as bandas que mais gostam e a melhor forma de o conseguir era fazerem-no eles mesmos. Chegado a Barcelos em 2010, ano da terceira edição, foi mantendo esse propósito original enquanto Joaquim Durães e Márcio Laranjeira, da Lovers & Lollypops, a promotora e editora que co-organiza o Milhões com a Câmara Municipal de Barcelos, ouviam mais e viajavam mais para mais descobrir o que trazer às margens do Cávado. É Durães que nos diz, ao final da noite de domingo, que esse propósito já “deixou de ser uma preocupação para se tornar uma condição obrigatória para a realização do festival”. Nesse ponto, não há, não pode haver cedências. Essa é uma das componentes que fazem deste um festival tão atraente e surpreendente para quem o visita pela primeira vez. Depois, há o resto.
O recinto nas margens do rio Cávado e o verde natural que compõe o cenário na outra margem. As piscinas onde começa cada dia de festival, entre mergulhos, descanso na relva e a música em palco – no domingo, por lá passou o rock muito 90s, muito enérgico, dos ingleses Shame, o hip hop de Mike El Nite em conjunto com Ghost Wavvves ou o techno cósmico do americano Hieroglyphic Being. O Milhões faz-se disso e do Palco Taina onde se vê à tarde uma banda como os Italia 90 cantar raiva de classe operária brit — e a deixar-nos nos ouvidos um refrão que é palavra de ordem: “Freedom to choose! Freedom to lose!” – enquanto são servidos petiscos e vinho verde — e às 2h da manhã chegará o já famoso arroz de cabidela picante. O Milhões, diz-nos Joaquim Durães, faz-se na relação próxima com as bandas e na forma como estas se entregam ao espírito do festival. São artistas e são público, num momento estão em palco, no outro estão excitados a percutir os bidões que os faUSt e os GNOD oferecem à plateia (aconteceu sexta-feira, num dos concertos que marca a edição 2017 do festival).
Há no organizador do festival, dez edições passadas, orgulho em ver atraído até ele “um público interessado e super curioso” — “não vês telemóveis no ar a filmar” —, um público que se foi renovando e rejuvenescendo nas últimas edições. Em Barcelos, diz, “há uma geração que cresceu com o festival e com a qual se criou um relação simbiótica” — alguns estarão a trabalhar nele, a tocar nele, a formar nele a sua cultura melómana. Estarão entre o público que celebra o frenesim hardcore dos Bad Breeding, a banda que fechou o festival no Palco Milhões, ou a ouvir os Pop Dell’Arte encerrar o seu concerto, no mesmo palco, ao início da noite, com o clássico Querelle. Estarão a participar no workshop dos faUSt que decorreu durante o festival ou a ver os Bitchin’ Bajas no Paço dos Condes, espaço histórico que acolheu o concerto surpresa da tarde de sábado.
À décima edição, o Milhões de Festa, festival de pequena dimensão (o orçamento é de cerca de 200 mil euros e passam por ele, ao longo dos quatro dias, cerca de 12 mil pessoas), mas de espírito enorme, multiplicador, tem bem definida a sua identidade. Tem lugar reservado no roteiro de festivais portugueses e futuro assegurado. O protocolo celebrado com a Câmara Municipal de Barcelos termina este ano e há que aguardar pelas eleições autárquicas para avançar com a sua renovação, mas Joaquim Durães está convicto de que tal está assegurado.
Lá em baixo, uma banda de colombianos e franceses dá peso rock à tradição latino-americana. Mais tarde, para fim de festa, um DJ irlandês, DJ Fitz, homem já da casa, com diversas presenças ao longo da história do festival, oferecerá funk, electro ou música turca ao povo que dança o fim de festa — Powell fora obrigado a cancelar o concerto programado e Fitz não hesitou, duplicou o tempo de actuação previsto e ocupou o seu lugar.
No caminho de regresso a casa, faz-se o balanço do que foi o festival em 2017 — memórias dos faUSt com os GNOD, de Yussef Dayes, do encontro Cave Story + Duquesa + Ra-Fa-El, de Moor Mother, dos Meatbodies ou dos Chúpame El Dedo. No caminho para casa, alguém diz que está quase. Que já só falta um ano para o próximo Milhões de Festa.