A Faixa de Gaza está a ficar um lugar "inabitável"

População duplicou desde 2000; tudo o resto diminuiu. Tem cerca de duas horas de electricidade por dia, os esgotos não tratados vão direitos para o mar e a existência de água potável está ameaçada.

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O acesso à saúde é uma das maiores dificuldades impostas aos habitantes daquele território palestiniano Reuters/MOHAMMED SALEM

Gaza está a tornar-se um sítio em que é impossível viver. Nas primeiras três semanas do mês de Julho, morreram três bebés por não terem conseguido autorização para serem tratados de urgência na Cisjordânia ou Israel. A maioria das famílias tem duas horas de electricidade por dia e a única central local encerrou. As culpas são repartidas: entre o Hamas, no poder há dez anos; o Governo de Israel, que decide tudo o que entra e sai do território; e a Autoridade Palestiniana liderada pela Fatah, rival do Hamas, que agora reduziu o pagamento de energia, exacerbando ainda mais a crise no território.

Há meses, o Comité Internacional da Cruz Vermelha alertava para o risco de "colapso sistémico" no território. A ONU disse este mês que a Faixa de Gaza está num processo de "des-desenvolvimento".

Pior, a natalidade aumentou mais do que o antecipado e o número de habitantes ronda os 2 milhões – a população quase duplicou desde 2000 – tudo o resto está numa trajectória contrária.

A falta de electricidade causa, claro, problemas óbvios na vida do dia-a-dia: é impossível ter comida (ou medicamentos) no frigorífico, não há alívio para o calor, os elevadores nos prédios altos não funcionam, os hospitais recorrem a geradores.

Uma criança de onze anos que viva em Gaza "não terá tido nunca mais de 12 horas de electricidade num dia em toda a sua vida", diz o relatório da ONU. Nos últimos meses, havia entre 4 a 6 horas de electricidade por dia, mas a recente medida da Autoridade Palestiniana fez com que diminuísse para entre duas e três horas diárias (há quem diga que o líder da Autoridade Palestiniana, Mahmoud Abbas, quer impressionar o novo Presidente americano com a sua determinação em pressionar o Hamas).

43 piscinas de esgoto no mar

O principal problema da falta de electricidade é, neste momento, que as poucas horas diárias não são suficientes para fazer funcionar o tratamento de águas e esgotos. A cada dia, a quantidade de esgotos não tratados que chegam ao mar é maior – a ONU estima que seja uma quantidade equivalente a 43 piscinas olímpicas por dia.

"Não vamos poder nadar no mar, nem comer peixe fresco", dizia o analista do International Crisis Group Azmi Keshawi numa carta aos seus colegas – os pescadores já enfrentam uma série de restrições de Israel, não podendo afastar-se muito da costa.

Pior, a ameaça de água não potável (a estação de dessalinização também precisa de energia) é real.

Há décadas que a Faixa de Gaza tem sido alvo de medidas de restrição de saída de pessoas e entrada de bens, mas nos últimos dez anos estas têm ficado cada vez mais estritas.

A Faixa de Gaza é governada há 10 anos pelo movimento islamista Hamas. Desde as eleições palestinianas de 2006, que deram a vitória ao Hamas – e que foram o início de uma sequência de acontecimentos que culminou na divisão dos territórios, o Hamas no poder em Gaza e a Fatah na Cisjordânia – os palestinianos só voltaram a votar em eleições locais.

Três operações militares de Israel em Gaza, em reposta ao disparo de rockets artesanais do território contra localidades israelitas, deixaram vastas áreas destruídas.

75 mil deslocados

O material que seria necessário à reconstrução não entra na Faixa de Gaza porque Israel não o considera seguro, já que poderia servir para construir túneis (estes serviram para anos de contrabando tanto do Egipto como de Israel, mas também para que atacantes conseguissem passar de Gaza para Israel).

Assim, há ainda 75 mil pessoas deslocadas em resultado da última guerra, em 2012, e algumas vivem nos escombros do que foram as suas casas, com panos no lugar do que foram janelas. Outros efeitos da guerra: nas escolas, juntaram-se turmas de alunos mais novos e mais velhos. Isto porque muitas crianças morreram.

O autor do relatório da ONU que considera que a Faixa de Gaza se está a tornar inabitável, Robert Piper, disse à rádio pública norte-americana NPR que esta classificação poderá até aplicar-se já ao momento actual. "Para muitos de nós, este limiar foi já ultrapassado – como é que se consegue viver neste tipo de condições?"

O desemprego jovem é de 60%. Mais de 40% dos habitantes de Gaza vivem no limiar de pobreza, e 80% são dependentes de ajuda externa. "Tanto em termos de saúde, de desemprego, de energia, de acesso a água, em tudo isto há um declínio cada vez mais rápido", diz Piper. E cada vez há mais pessoas.

"Os cidadãos de Gaza, especialmente os jovens, sentem que não há horizonte, que as coisas não podem melhorar por causa do bloqueio. Centenas de universitários aqui pensam que o futuro é sombrio porque o cerco fez parar todas as formas de vida em Gaza", disse à Euronews o estudante Moahamad al Saiqaly.

Um dos mais responsáveis do processo de paz do Médio Oriente, Nicolai Mladenov, avisou para as consequências da falta de electricidade e deterioração das condições de vida. "De todas as questões com que lidamos – o processo de paz, a construção de instituições palestinianas, a região – esta é a questão me faz perder o sono", disse ao diário britânico The Independent. "E tudo isto vai acabar por aparecer à porta de Israel."

Na revista Economist, um antigo major general israelita, Noam Tibon, foi mais duro: "Passei anos a matar terroristas do Hamas. Mas é preciso dar alguma esperança às pessoas. Quando se está encurralado, não se tem outra hipótese que não tentar sair aos pontapés. É no interesse de Israel apoiar a economia de Gaza, não estrangulá-la."

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