Feminismo mas que feminismo?
Sou feminista. Não tenho qualquer dúvida que graças ao feminismo todos vivemos de forma mais igualitária no trabalho, em casa, nas relações sociais ou sexuais. Não obstante, o feminismo, como o entendo, é identicamente para mulheres e homens e quer muito mais do que igualdade entre mulheres e homens. Deseja transformar o mundo de raiz.
Nos últimos tempos, em grande parte pela comunicação nas redes sociais, mas também pelo contexto de crise sistémica que vivemos na última década, com toda a gente a procurar respostas que não se vislumbram no horizonte e sem que exista uma grande narrativa aglutinadora, regressaram em força as lutas identitárias particularizadas.
Nada contra. Admiro essa força generosa. O que questiono são os resultados dessa contenda, se não forem interseccionais e se focados apenas nas aspirações de segmentos minoritários da população, muitos deles da alta classe média. Da mesma forma interrogo-me se um processo de fragmentação de lutas sociais em movimentos de diversas identidades não será uma forma de neutralizar combates de cunho mais aprofundado que abalem os modelos capitalistas de produção mais perversos, gerador de injustiças sociais e de preconceitos, dos mais agrestes aos mais subtis.
Ao mesmo tempo dá que pensar se um dos efeitos colaterais não antecipados desse fraccionamento, com grupos a competirem por visibilidade, não acaba por ser ocultar os que não têm mesmo voz, os que foram abandonados, os que não se sentem representados. Mas, sobretudo, questiono-me se ao insistirmos tanto nesses combates particularizados que ocupam o espaço público, não estaremos a negligenciar aquela que é talvez a grande questão que atravessa o nosso tempo e que cruza todas as outras lutas – seja contra o machismo, xenofobia, homofobia, transfobia ou capacitismo. A nova luta de classes.
Correndo o risco de generalizar diria que, hoje, para os jovens-adultos, urbanos, mundanos, pertencentes à classe média-alta, como para o espectro político parlamentar, tornou-se relativamente consensual afirmarmo-nos pela igualdade entre homens e mulheres, invocando direitos humanos, a democracia e a liberdade. A nova luta de classes não está nesse patamar. Ainda é conotada como sendo coisa arcaica, de um outro tempo, como também se dizia até há pouco do feminismo.
Continua a existir uma visão romantizada da luta de classes. Algo de revolucionário provocado pelo andar de baixo contra o andar de cima da sociedade, o proletariado contra a burguesia, a periferia contra o centro. Esta perspectiva reducionista não consegue percepcionar que o conflito na actualidade gira, sobretudo, em torno da conservação das formas de dominação através das instituições, leis e costumes, com impacto nas assimetrias e na ineficaz redistribuição, seja do capital, das oportunidades, dos poderes ou dos acessos à saúde, à educação e à plena cidadania.
Estamos todos dentro do mercado, mas muitos de nós estão fora da história – desempregados, jovens sem perspectivas, trabalhadores precários, refugiados e, sim, também muitas mulheres. Nesse sentido a ideia de luta de classes serve para dar uma base comum para milhares de conflitos dispersos no capitalismo global. A crise atinge todos porque todos são trabalhadores. Combater as desigualdades entre mulheres e homens passa também pelo desafio de mobilizar e ampliar a participação desses homens e mulheres nas lutas sociais que lhes são comuns.
A melhor forma de combater injustiças, incluindo as de género, é garantir que podemos viver numa sociedade onde a larga maioria de nós sente que todas as discriminações e todas as desigualdades tendem a ser atenuadas e não a aumentar, sejam elas fundadas no género, cor da pele, classe, nacionalidade ou outras que não têm grande reconhecimento, como as geracionais, ou as que remetem para a enorme discrepância entre as qualificações e o trabalho que muitos de nós acabam por realizar.
Como feminista parece-me que, sem esquecer os factos parcelares, é importante olhar para a realidade de forma global, interrogando, estando atento, lutando ao lado de todos os que se sentem discriminados (e existem tantos que não têm voz e não cabem nas prateleiras que passamos o tempo a nomear) e com um objectivo progressista em comum. Ser eficaz, neste caso, é ir à raiz dos problemas. O resto serve mais para apaziguar consciências do que provocar verdadeiras mudanças.
Esta crónica encontra-se publicada no P2, caderno de Domingo do PÚBLICO