O meltdown turco
Nenhum país no mundo tem tantos jornalistas presos como a Turquia. Não estão sozinhos. No último ano, foram detidas 50 mil pessoas. Numa espiral de loucura, Erdogan já despediu 100 mil funcionários públicos. Agora, foi presa a directora da Amnistia Internacional.
Milena Buyum devolve a chamada já ao fim do dia e pede desculpa por não ter atendido mais cedo. Quase não dormiu e passou as últimas 28 horas a telefonar para a Turquia para tentar saber o que aconteceu. Houve mais uma detenção inimaginável.
Habituada às más notícias diárias dos últimos 12 meses, Milena Buyum não estava à espera. Idil Eser, directora da Amnistia Internacional na Turquia, foi presa e, com ela, mais nove pessoas, entre as quais sete activistas de direitos humanos, quase todos advogados. Ilknur Üstün, da Coligação das Mulheres; Günal Kursun e Veli Acu, da Associação Agenda para os Direitos Humanos; Nalan Erkem e Özlem Dalkiran, da Assembleia dos Cidadãos; Nejat Tastan, da Associação Equal Rights Watch; e Seyhmuz Özbekli, estavam a participar num workshop de rotina sobre segurança digital ao pé de Istambul quando a polícia entrou e prendeu-os. Com o grupo, foram também detidos dois formadores, da Alemanha e da Suécia, e o dono do hotel onde a reunião decorria. Depois de centenas de démarches, Milena Buyum, que segue a Turquia na sede da Amnistia Internacional, em Londres, ainda não conseguiu saber os nomes.
Esta foi a má notícia inimaginável de Julho, depois da má notícia inimaginável de Junho, quando a polícia prendeu Taner Kiliç, o presidente da Amnistia na Turquia. Não me lembro de ver nada assim. Milena Buyum confirma: “É a primeira vez nos quase 60 anos de história da Amnistia que temos um presidente e um director presos.”
A Turquia está mergulhada num meltdown de direitos humanos — estão simplesmente a desaparecer. Desde o golpe falhado de Julho de 2016, foram detidas 50 mil pessoas, entre as quais 170 jornalistas e pessoas que trabalham nos media, 100 mil funcionários públicos foram despedidos e centenas de órgãos de comunicação social e ONG foram fechados. "A escala é chocante", diz Buyum. E o padrão é claro. Os críticos do regime são acusados de tentar derrubar o regime e nenhuma prova concreta é apresentada. São presos pelo que dizem e pelo que pensam. O director de um jornal foi condenado a prisão perpétua. A Turquia aboliu a pena de morte em 2004, mas Erdogan pediu ao Parlamento que votasse a sua reposição.
Milena Buyum ainda não sabe de que é acusada Idil Eser. "Sabemos apenas que foi interrogada com base em artigos da lei do terrorismo." Sobre o presidente da AI já se sabe alguma coisa.
Taner Kiliç, um advogado que está na direcção da AI há 15 anos, foi acusado de ligações ao movimento de Fethullah Gülen, que Erdogan considera um "grupo terrorista". A prova? Em Agosto de 2014 descarregou no seu telefone a byLock, uma app de troca de mensagens encriptadas que se gabava de garantir um nível se sigilo semelhante ao usado pelos militares. As autoridades acham isso suspeito porque os seguidores de Gülen também a usavam. Eles mais um milhão de pessoas.
Criada em Agosto de 2014, o seu criador — provavelmente um bem-intencionado libertário preocupado com os abusos dos serviços secretos — despublicou-a três meses depois e no seu mini-blogue explica que não consegue gerir tantos utilizadores e por isso viu-se obrigado a retirar a app do mercado. E acrescenta: “Como precaução adicional, também bloqueei alguns endereços de IP (quase todos de países do Médio Oriente) porque detectei ligações maliciosas.” Fiquei sem perceber como é que, garantindo comunicações encriptadas, o inventor anónimo consegue ver quem fala com quem. Afinal é isso que acontece com o WhatsApp, o Messenger do Facebook, o Viber e o Skype que todos usamos todos os dias e que prometem ligações encriptadas? De qualquer modo, parece evidente que é pouco para prender alguém. Taner Kiliç diz que nem conhecia o nome da app até ser acusado de a ter. E que nunca a descarregou. Deve haver forma rápida de confirmar.
"Queria falar sobre a possibilidade do regresso da pena de morte na Turquia, não era?", lembra-se às tantas Milena Buyum, ela própria turca. “Tenho de ser franca: não estamos concentrados nessa questão. Não houve passos concretos desde o apelo de Erdogan, poderá ser só retórica. Mas, sobretudo, há muitas coisas a acontecer."